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Proc. nº 577/96
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. No Tribunal Judicial de Paredes, veio o Ministério Público instaurar, em 15 de Abril de 1996, execução para pagamento de coima, tarifas e custas contra A., com sede em ------------------, do concelho de
----------------, referindo que a sociedade executada não pagara voluntariamente a coima de 2.000$00 que lhe fora aplicada pela Câmara Municipal de Paredes, quantia que era exigida, acrescida do valor de 4.200$00, correspondente às tarifas não pagas, bem como as custas no montante de 540$00. A contra-ordenação em causa estava prevista e era punível nos termos da versão de 1995 de um regulamento municipal de Paredes.
O juiz mandou juntar aos autos cópia da Postura sobre Sistema de Lixo e Higiene Pública, aprovada pela Assembleia Municipal de Paredes em 15 de Janeiro de 1988 e alteração em 1995, após o que proferiu despacho liminar de indeferimento da execução, com base no disposto no art. 474º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil. Para tal, desaplicou a norma do nº 2 do art. 10º da mesma Postura, por entender que a mesma estava afectada de inconstitucionalidade formal e orgânica. Pode ler-se nesse despacho:
' O Ministério Público promoveu a presente execução para pagamento da coima aplicada ao executado pela Câmara Municipal de Paredes por decisão datada de 24 de Julho de 1995, em que o executado foi considerado autor da prática de uma contra-ordenação prevista e punida na alínea C. a) do artigo 17º da Postura sobre Sistema de Lixo e Higiene Pública aprovada na segunda reunião da sessão ordinária da Assembleia Municipal de Paredes de 30 de Dezembro de 1987, realizada no dia 15 de Janeiro de 1988, com a redacção que foi aprovada pela Assembleia Municipal de Paredes na segunda reunião da sessão ordinária de 15 de Setembro de 1995, realizada em 13 de Outubro de 1995.
A referida norma (cfr. fls. 21 e ss. dos autos) pune o não pagamento da tarifa devida pela recolha e depósito do lixo.
Ora, a norma constante desse regulamento que impõe a todos os munícipes a obrigação de pagar a dita tarifa, e em cuja violação a aplicação da coima em causa se baseia, enferma, conforme se decidiu no recurso da contra-ordenação nº
392/95, que correu os seus termos neste 1º Juizo do Tribunal de Comarca de Paredes, de um vício de inconstitucionalidade formal e orgânica.
Em primeiro lugar, e quanto à questão da inconstitucionalidade formal, no regulamento onde a referida norma se insere não é feita qualquer referência à lei que habilita a Assembleia Municipal a regulamentar sobre essa matéria
(competência subjectiva e objectiva) - é certo que no edital com que se procurou dar publicidade ao regulamento em causa é referido que a postura foi aprovada ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 39º do Dec-Lei 100/84, de 29 de Março.
No entanto, o edital é um elemento externo ao regulamento, além de que essa referência apenas diz respeito à competência subjectiva desse órgão da autarquia, sendo totalmente omissa quanto à competência para emitir normas sobre aquela concreta matéria.
Violou-se, assim, o princípio da primazia da lei consagrada no nº 7 do art.
115º da CRP.
Por outro lado, ao definir a posição de devedor em função da qualidade de munícipe, independentemente da existência de uma contraprestação, o nº 2 do art.
10º da postura em causa consagra um imposto local, invadindo a reserva de competência da Assembleia da República sobre a matéria - viola, por conseguinte, a alínea i) do nº 1 do art. 168º da CRP.' (a fls. 43 dos autos)
Desta decisão interpôs recurso de constitucionalidade a Magistrada do Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Este recurso foi admitido por despacho de fls. 47.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apenas alegou o Ministério Público, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1º. Não é formalmente inconstitucional, por preterição do preceituado no nº.7 do artigo 115º. da Constituição da República Portuguesa, o regulamento local que cita expressamente, embora de modo eventualmente insuficiente, a respectiva lei habilitante, no instrumento destinado a possibilitar a sua publicação junto dos munícipes.
2º. A tarifa de saneamento, estabelecida como contraprestação de um serviço especificamente prestado pela autarquia no âmbito da recolha e tratamento de lixos, independentemente da dimensão e grau com que tal serviço foi efectivamente solicitado e prestado, deve ser qualificada como taxa, não se situando consequentemente no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, decorrente do estatuído no artigo 168º, nº.1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa'.(a fls. 59-60)
3. Foram dispensados os vistos, atendendo a que todos os Juízes do Tribunal são relatores em processos idênticos.
Por não haver motivos que a tal obstem, cumpre conhecer do objecto do recurso.
II
4. A fls. 21 a 42 dos autos, acha-se junto um exemplar da Postura sobre o Sistema de Lixo e Higiene Pública do Município de Paredes, aprovada na 2ª reunião de sessão ordinária da Assembleia Municipal de Paredes, de 30 de Dezembro de 1987, realizada em 15 de Janeiro de 1988, bem como as alterações à mesma Postura, aprovadas pela mesma assembleia na 2ª reunião de sessão ordinária de 15 de Setembro de 1995, realizada em 13 de Outubro de 1995.
Acha-se também junta aos autos cópia do edital subscrito pelo Presidente da Câmara de Paredes, datado de 23 de Outubro de 1995, através do qual se torna público que a respectiva assembleia municipal 'deliberou aprovar a
«POSTURA SOBRE SISTEMA DE LIXOS E HIGIENE PÚBLICA - AJUSTAMENTOS E NÍVEL DA SUA MELHOR INTERPRETAÇÃO E DA SUA APLICAÇÃO PRATICA», de conformidade com o disposto na alínea a) do nº 2 do art. 39º do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, na redacção dada na Lei nº 18/91, de 12 de Junho' (a fls. 42 dos autos).
5. Na referida Postura, depois de se referir que é da competência exclusiva da Câmara Municipal de Paredes 'ordenar o depósito, recolha e destino final dos lixos, em todo o Concelho de Paredes', sem prejuízo de, 'casuisticamente' poder essa Câmara, 'sempre que necessário conceder o exercício das funções referidas (...) a outras entidades' (art. 1º, nºs. 1 e 3), estabelece-se uma classificação dos lixos consoante a sua tipologia (domésticos, comerciais, industriais e especiais) e estabelecem-se regras sobre o depósito de cada um dos tipos de lixo, prevendo-se as tarifas a pagar pelos munícipes relativamente a esses tipo de lixos nos arts. 18º, 18º-A e 18º-B.
Dispõe o artigo da Postura onde se encontra a norma desaplicada, na redacção introduzida em 1995:
' Artigo 10º
1- A recolha de detritos previstos no artigo 2º e depositados nos termos do artigo 3º está sujeita ao pagamento das tarifas respectivas, na presente postura previstas.
2- O pagamento das tarifas previstas no artigo 18º desta postura é obrigatório a todos os munícipes, sejam pessoas singulares ou colectivas, e é independente da quantidade de lixo produzida e ou depositada.
3- O regime de cobrança das tarifas previstas no presente diploma será definido através de deliberação do executivo camarário.'
Como resulta do despacho recorrido, o Senhor Juiz de Paredes desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade, o nº 2 deste artigo, por ser a norma que, em última análise, serve de base ao ilícito de mera ordenação social previsto no ponto C), alínea a), do artigo 17º (alteração de 1995): 'o não pagamento das tarifas previstas no artigo 18º dentro dos prazos definidos nos artigos 18º-A e 18º-B constitui contra-ordenação punida com coima de
2.000$00 a 5.000$00 acrescida do pagamento do valor relativo às tarifas não pagas'. Esta norma sancionatória acha-se em conformidade com o que prescreve o art. 21º, nºs. 1 e 2, da Lei das Finanças Locais (Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro).
6. Terá razão o Senhor Juiz de Paredes quando indeferiu o requerimento inicial de execução, com fundamento na inexistência das dividas exequendas, decorrente de inconstitucionalidade formal e orgânica das normas desaplicadas, nomeadamente do nº 2 do art. 10º da Postura sobre o Sistema de Lixo e Higiene Pública, na versão de 1995?
Responde-se negativamente a tal questão.
De facto, a 2ª Secção do Tribunal Constitucional teve ocasião recentemente de conceder provimento a idênticos recursos de constitucionalidade interpostos de decisões do mesmo teor, proferidas pelo Senhor Juiz do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Paredes.
Seguir-se-á, por isso, de perto o Acórdão nº 1141/96, tirado em 6 de Novembro de 1996, ainda inédito.
7. Antes de mais, importa abordar a questão de inconstitucionalidade decorrente da invocada violação do nº 7 do art. 115º da Constituição.
Não restam dúvidas de que o nº 2 do art. 10º da Postura - que foi expressamente desaplicado na decisão recorrida, com fundamento em inconstitucionalidade - faz parte de um regulamento de eficácia externa, sendo, pois, uma norma regulamentar externa na medida em que projecta os seus efeitos para o exterior, atingindo todos os munícipes de Paredes que ficam obrigados ao que nela se dispõe.
Por outro lado, só no edital que publicitou em 1995 as alterações introduzidas à Postura se invocou, como sua lei habilitante, o art. 39º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, na redacção dada pela Lei nº 18/91, de 12 de Junho.
Ora, como se demonstrou no referido Acórdão nº 1141/96, a menção da lei habilitante nestes termos cumpriu a exigência do nº 7 do art. 115º da Constituição, decorrendo do próprio texto da Postura a sua ligação à competência camarária prevista na alínea h) do nº 1 do art. 51º do Decreto-Lei nº 100/84, de
29 de Março (redacção da Lei nº 18/91, de 12 de Junho). Pode ler-se nesse acórdão:
' É certo que, no Edital, se cita apenas a norma legal que define a competência da assembleia municipal para aprovar posturas e regulamentos, sob proposta da câmara (o mencionado artigo 39º., nº.2, alínea a), do Decreto-Lei nº.100/84), e não também a que inclui na competência dos municípios deliberar sobre «remoção, despejo e tratamento de lixos, detritos e imundícies domésticas» (artigo 49º., nº.3, do Código Administrativo), nem tão-pouco a que confere à câmara municipal competência para, ela própria, «fixar tarifas pela prestação de serviços ao público pelos serviços municipais (...), no âmbito da (...) recolha, depósito e tratamento de lixos» (artigo 51º., nº.1, alínea h), do Decreto-Lei nº.100/84).
Simplesmente, para cumprir a exigência do artigo 115º, nº 7, da Constituição, o que importa é que os destinatários dos regulamentos fiquem a saber qual a norma ou normas legais que habilitam o seu autor a editá-los.
Ora, tendo em conta que o Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, contém a definição da competência subjectiva e objectiva para a emissão de um regulamento deste tipo, a sua invocação é bastante para que os cidadãos fiquem a saber qual a habilitação legal do regulamento aqui em causa.
Também não obsta à legitimidade constitucional da norma aqui sub iudicio o facto de a citação da lei habilitante se fazer apenas no Edital com que se lhe deu publicidade.
De facto, a Constituição, ao impor à Administração o dever de citar, da forma expressa, nos próprios regulamentos, a lei habilitante, o que pretende é que os destinatários das normas regulamentares saibam em que norma legal se funda o poder com base nas quais elas são editadas, já que isso constitui garantia de segurança e de transparência.
Ora, sendo essa a ratio da exigência constitucional, logo se vê que, para que aquele desiderato seja atingido, basta que a indicação de lei habilitante se faça no acto que dá publicidade ao regulamento (no caso, no edital que o deu a conhecer aos munícipes)'. (nº 4)
8. Tão-pouco se pode qualificar a tarifa em causa como um imposto local.
De facto, o nº 3 do art. 240º da Constituição inclui, entre as receitas próprias das autarquias locais 'as cobradas pela utilização dos seus serviços', receitas essas que abrangem o produto das taxas de utilização e de tarifas e preços de serviços (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 891).
O Tribunal Constitucional teve ocasião de considerar a criação de taxas como uma 'manifestação típica da autonomia local' (Acórdão nº 76/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º volume, p. 331), consideração que a Assembeia da República também acolheu ao publicar a Lei das Finanças Locais (art. 4º, nº 1, alínea h), da Lei nº 1/87, onde se estabelece que constituem receitas dos municípios 'o produto da cobrança de taxas ou tarifas resultantes da prestação de serviços pelo município').
Ora, a distinção entre imposto e taxa, no plano constitucional, tem sido feita por contraposição entre o carácter unilateral daquele e a natureza bilateral ou sinalagmática da taxa, como resulta de jurisprudência firme do Tribunal Constitucional (por todos, vejam-se os Acórdãos nºs. 76/88, agora citado, 640/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 17, de 20 de Janeiro de 1996, e 1108/96, ainda inédito).
Pode ler-se no Acórdão nº 1141/96 que se vem acompanhando:
' Pois bem: recorda-se que, na área do concelho de Paredes, a recolha e destino definitivo do lixo estão a cargo dos Serviços de Limpeza da respectiva Câmara Municipal (cf. artigo 1º., nº.2, da Postura) e que o pagamento das tarifas devidas por essa recolha e destino é obrigatório para todos os munícipes, tanto pessoas singulares, como colectivas (cf. artigo 10º, nº.2, aqui sub iudicio). E acrescenta-se que o montante dessas tarifas, quando estiverem em causa indústrias, hospitais, centros de saúde ou supermercados, é determinado em função da área de cada estabelecimento (cf. artigo 18º., alínea D), na redacção de 13 de Outubro de 1995).
A tarifa é, pois, uma quantia coactivamente paga pela utilização de um serviço
- o serviço de recolha e destino do lixo -, que é um bem semipúblico, que a Câmara Municipal de Paredes, através do respectivo Serviço de Limpeza, põe à disposição dos munícipes que o pretendam utilizar.
Trata-se, assim, de uma taxa.
Tal tarifa não perde a natureza de taxa pelo facto de ser paga por todos os munícipes (pessoas singulares ou colectivas), sendo o seu pagamento
«independente da quantidade de lixo produzido e/ou depositado».
É que - como se sublinhou no citado Acórdão nº.76/88, a propósito de uma tarifa cobrada pela Câmara Municipal de Lisboa pela prestação, por parte do município, do serviço «de recolha, depósito e tratamento de lixos» (designada tarifa de saneamento) -, de um lado, «pela própria natureza do serviço em questão, é verdadeiramente impossível uma determinação rigorosa do universo dos utentes»; de outro, «o esquema de identificação previsto (na) deliberação não se configura como ilógico ou irrealista», pois «o índice de identificação escolhido para esse efeito envolve uma presunção muito forte de que os sujeitos tributados realmente utilizam o serviço de recolha, depósito e tratamento de lixos», já que todos os munícipes são produtores de lixo; por último - e recordando a lição de Teixeira Ribeiro - «as utilizações dos bens por que se pagam taxas (...) podem ser voluntárias ou obrigatórias. E as utilizações obrigatórias, por seu turno, ainda podem ser ou não solicitadas».' (nº 5)
Atendendo, por outro lado, a que apenas foi desaplicada a norma do nº 2 do art. 10º da Postura em causa, não tem sentido averiguar se os montantes fixados pelo art. 18º poderiam ou não ser tidos por desproporcionados, no caso de serem superiores ao custo do serviço prestado pela Câmara (cfr. citado Acórdão nº 640/95).
9. Não sofre, assim, de inconstitucionalidade a norma desaplicada, não se mostrando violada a alínea i) do nº 1 do art. 168º da Constituição.
III
10. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser reformado em conformidade com a decisão sobre as questões de constitucionalidade.
Lisboa, 4 de Dezembro de 1996 Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida