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Processo nº 511/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A. - arguida em autos de inquérito que o Ministério Público lhe move - registados sob o nº 452/96.1, pendentes no 4º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa - veio arguir a nulidade de busca efectuada em estabelecimento de cabeleireiro, o que foi indeferido.
Inconformada, recorreu para o Tribunal da Relação desse despacho, recurso que veio a ser admitido, 'para subir com o recurso que venha a ser interposto da decisão que puser termo à causa e com efeito meramente devolutivo - artigos 399º, 400º, 401º, nº 1, alínea b), 407º, nº 3, 408º, nº
1, alínea a), 411º nºs. 1 e 3, do Código de Processo Penal'.
Reclamou, então, da decisão que lhe reteve o recurso, sem êxito, porém, uma vez que o Senhor Desembargador Presidente, por despacho de 10 de Maio último, a julgou improcedente:
'É óbvio [disse] que a situação dos autos não cabe em qualquer das previsões das alíneas a) e j) do nº 1 do artigo 407º do Código de Processo Penal.
E, assim, o recurso só poderia e deveria subir imediatamente se se concluísse que a sua retenção o tornaria absolutamente inútil (nº 2 do mesmo preceito).
Mas é óbvio que não é esse o caso deste recurso já que, do seu eventual provimento, sempre resultará a anulação da diligência probatória em causa com a natural repercussão no contexto probatório da acção penal'.
Não aceitando o decidido, recorreu a interessada para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 407º do Código de Processo Penal
(CPP), dado considerar violar a mesma o disposto nos artigos 28º, nº 2, 32º, nº
1, e 32º, nº 6 da Constituição da República (CR).
Recebido o recurso, alegou oportunamente a recorrente concluindo do seguinte modo:
'1º Arguindo-se a nulidade de uma busca, deve a mesma ser declarada em qualquer fase do procedimento, como resulta dos artgsº 118,119 e
120 do C.P.P.
2º Com efeito estando em causa matéria referente à prova, nenhum sentido fará tratar-se a mesma como perfeitamente válida durante o processo e sujeitar-se o arguido a julgamento e condená-lo com base em factos que podem ser declarados nulos e de nenhum efeito e que ainda por cima tornam inválidos não só o acto em que se verificaram, bem como todos os que dela dependerem.
3º É claramente uma situação que prejudica alguém, e que só pode ser o arguido, tratando-se claramente de uma ofensa, ao princípio instituído no artgº 32 nº 1 da C.R.P., de que o processo criminal assegura todos os direitos de defesa.
4º Também será curial atentar no facto ou em situações em que a nulidade da prova joga com a situação processual de um detido, ou seja, aqueles casos, em que a prova arguida de nulidade é a que está na base da prisão.
5º Nesses casos acima referidos, a prisão não se mantinha se a prova fosse declarada inválida, pelo que submeter-se a apreciação da validade ou invalidade da mesma para momento último é claramente uma violação do disposto no artgº 28 nº 2 da C.R.P.
6º Por último prescreve o artgº 32 nº 6 da C.R.P. que são nulas todas as provas mediante as condições aí estabelecidas, mas entre as quais se conta a abusiva intromissão na vida privada ou no domicílio.
7º A referência a provas pressupõe no nosso entendimento que a nulidade terá de ser declarada antes que as provas possam servir para formar convicção, por isso se refere que são nulas as provas e assim sendo nenhum sentido fará, ou será ilegal, julgar-se um processo com provas eivadas de nulidade, ou cuja nulidade haja sido tempestivamente arguida, e só depois de se estabelecer uma condenação com base nessas mesmas provas, se possa, a posteriori, vir discutir a validade das mesmas.
Nestes termos e nos melhores de Direito doutamente supridos deverá ser dado provimento ao presente recurso e por via do mesmo declara-se a Inconstitucionalidade do artgº 407 nº 2 do C.P.P. se interpretado no sentido de que um recurso onde se argui a nulidade de uma busca, deverá subir apenas a final com o que eventualmente vier a ser interposto da decisão que ponha termo ao processo, fazendo-se assim Justiça.'
Por sua vez, o Senhor Procurador-Geral Adjunto contra-alegou, assim concluindo:
'1º
Não é inconstitucional, pois não viola qualquer princípio ou preceito da Lei Fundamental, a norma constante do nº 2 do artigo 407º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de estabelecer um regime de subida diferida, com o recurso que eventualmente venha a ser interposto da decisão final, para o recurso do despacho que indeferiu a arguição de nulidade de uma busca, na fase do inquérito.
2º
Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.'
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1.- O objecto do presente recurso é constituído pela interpretação dada na decisão recorrida à norma constante do nº 2 do artigo 407º do CPP - nos termos da qual sobem imediatamente os recursos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis - interpretação essa que entendeu ser de subida diferida o recurso do indeferimento da arguição de nulidade de uma diligência de busca.
Colhe-se da leitura dos autos a seguinte matéria fáctica subjacente à questão:
a) no âmbito do processo de inquérito em referência realizou-se, em 26 de Março de 1996, uma busca ao estabelecimento de cabeleireiro da recorrente, de acordo com o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 174º do CPP, o que se fez com o consentimento da própria;
b) a apresentação desta ao respectivo juiz de instrução e a validação daquela diligência por esse magistrado [nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 269º do CPP] só ocorreram, no entanto, no dia 28, ou seja, para além do prazo máximo de 24 horas referido no nº 4 do artigo 268º do citado Código;
c) sendo certo dispor o nº 5 do artigo 174º do mesmo diploma dever a realização da diligência ser comunicada imediatamente ao juiz de instrução e por este apreciada, sob pena de nulidade, a magistrada que validou a busca considerou dever entender-se este nº 5 do artigo 174º no sentido do 'humanamente possível', tendo em conta a amplitude das operações efectuadas, o número de detidos apresentados e, bem assim, a elaboração de todo o expediente relacionado com o caso.
Ora, foi desta decisão que a interessada interpôs recurso, admitido em 17 de Abril seguinte, para subir com o recurso que venha a ser interposto da decisão que puser termo à causa e com efeito meramente devolutivo.
Na respectiva motivação alegara a interessada violação do disposto nos artigos 268º, nº 4, e 269º, nºs. 1 e 2, do CPP; na reclamação dirigida ao Presidente da Relação do despacho que lhe reteve o agravo veio, então, suscitar a inconstitucionalidade da interpretação concedida à norma em causa, alegando violação do disposto no nº 2 do artigo 28º e nos nºs.
1 e 6 do artigo 32º, ambos da CR.
2.- Defende a recorrente que a interpretação dada à norma em sindicância afecta as garantias de defesa do arguido que o processo criminal deve assegurar, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 32º da CR, do mesmo passo que viola o previsto no nº 6 do mesmo normativo, segundo o qual são nulas todas as provas obtidas nas circunstâncias aí descritas, entre as quais se conta a 'abusiva intromissão na vida privada ou no domicílio'.
Sendo aquele nº 1, essencialmente, uma 'expressão condensada' de todas as normas restantes do artigo (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 202) poderá nele entender-se assegurar o processo criminal aos arguidos todos os direitos e os instrumentos necessários para a defesa da sua posição, entre eles se incluindo o direito de recorrer.
Não obstante, o direito ao recurso não é concebido constitucionalmente de modo ilimitado, mesmo na área do processo penal, considerando a jurisprudência do Tribunal Constitucional que, ressalvando o
'núcleo essencial' do direito de defesa, centrado no direito de recorrer da sentença condenatória, e dos actos judiciais que privem ou restrinjam a liberdade do arguido ou afectem outros direitos fundamentais seus, o direito de recorrer pode ser restringido ou limitado em certas fases do processo, podendo mesmo não ser admitido relativamente a certos actos do juiz, como também não impõe um terceiro grau de jurisdição (cfr., a este propósito, inter alia, o acórdão nº 474/94, publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Novembro de 1994, que, neste ponto, se segue de perto).
A esta luz, pode, desde já, diz-se não violar as garantias de defesa reconhecidas no artigo 32º da CR uma norma como a do nº 2 do artigo 407º do CPP quando interpretada no sentido de não se tornar o recurso absolutamente inútil se postergada para final a apreciação da validade de uma busca como a versada nos autos.
A subida diferida dos recursos - como se observou no citado acórdão nº 474/94 - assenta claramente numa exigência de celeridade processual. 'Assim [escreveu-se], fazendo a lei processual penal subir imediatamente apenas os recursos cuja utilidade se perderia em absoluto se a subida fosse diferida, obvia-se a que a tramitação normal do processo seja afectada por constantes envios do processo à 2ª instância para apreciação de decisões interlocutórias e, por outro lado, pode vir a evitar-se o conhecimento de muitos destes recursos que podem ficar prejudicados no seu conhecimento pelo sentido da decisão final'.
Se é certo que o eventual provimento do recurso leva à inutilização dos actos processuais que forem praticados após a sua interposição e que estejam na dependência do acto ou despacho recorrido - o que, no entanto, será um 'risco' inerente à ponderação das exigências de celeridade - também é exacto não estabelecer o texto constitucional que os cidadãos não sejam submetidos a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a sua presumível condenação, como, por seu lado, se frisou no referido acórdão, citando, por sua vez, entre outros, o nº 31/87, publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Abril de 1987.
Também no sentido da não inconstitucionalidade da norma em causa se pronunciou muito recentemente este Tribunal, no acórdão nº
964/96, de 11 de Julho último, inédito.
No caso vertente, bem pode dizer-se não ser
'absolutamente inútil' o recurso interlocutório, se eventualmente provido a final, pois que, a suceder assim, eliminar-se-iam do processado o acto julgado nulo e os subsequentes dele dependentes.
O entendimento professado afasta, igualmente, uma alegada violação do nº 6 do artigo 32º, cuja arguição, aliás, mal se compreende se se tiver em conta que a própria arguida autorizou a busca (de qualquer modo,
é aspecto que não está ora em causa).
Finalmente, observar-se-á não se vislumbrar violação da norma do nº 2 do artigo 28º da CR, nos termos da qual a prisão preventiva não se deve manter sempre que possa ser substituída por caução ou por qualquer outra medida mais favorável prevista na lei. Trata-se de uma norma aplicável à situação do detido que a recorrente pretende articular com a alegada nulidade da busca mas que nada tem a ver com a norma sindicada, directa ou indirectamente, sendo certo que, mesmo que assim se não entendesse, seria de afastar qualquer juízo de censura in casu, manifestamente infundado face ao antecedente discurso argumentativo. III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 27 de Novembro de 1996 Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes
Maria Fernanda Palma
(vencida nos termos de declaração junta ao Acórdão nº 964/96, para a qual se remete) José Manuel Cardoso da Costa