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Proc.Nº 481/94
Sec. 1ª
Rel. Cons. Vítor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. – A. propôs, pelo Tribunal do Trabalho de Lisboa, uma acção emergente de contrato individual de trabalho, com processo sumário, contra a firma B. pedindo a condenação desta no pagamento da quantia diferencial de
1.669.251$00.
A acção foi julgada parcialmente procedente e a ré condenada a pagar ao autor a quantia de 799.737$50.
O autor, não se tendo conformado com a decisão na parte em que considerou improcedente a alegada justa causa de rescisão do contrato de trabalho por sua iniciativa, veio interpôr recurso da sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa.
2. - Após as alegações, a Relação proferiu, em 4 de Maio de 1994, um acórdão pelo qual decidiu negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Para tanto, suportou-se no seguinte encadeamento argumentativo:
- o contrato de trabalho pode cessar por rescisão com invocação de justa causa por iniciativa do trabalhador, com direito a indemnização;
- em tal hipótese, constituem justa causa os comportamentos da entidade patronal mencionados no artigo 35º do Decreto-Lei nº
64-A/89, de 27 de Fevereiro, cuja enumeração é taxativa;
- de acordo com o artigo 11º, nº 1, daquele diploma, a entidade patronal pode suspender preventivamente o trabalhador com a notificação da nota de culpa, ficando assim este impedido de prestar a actividade a que se obrigara pelo contrato;
- no diploma em vigor - ao contrário do Decreto-Lei nº
372-A/75 - a suspensão preventiva não está condicionada a certos comportamentos do trabalhador, podendo este ser suspenso com a notificação da nota de culpa sem que seja necessário invocar razões determinantes de tal suspensão;
- sendo o poder de suspender o trabalhador por parte da entidade patronal discricionário, não pode considerar-se que na sua aplicação haja uma violação das garantias legais do trabalhador;
- no regime em vigor da suspensão do contrato de trabalho não há qualquer restrição na aplicação daquela medida, pelo que não existe qualquer garantia do trabalhador, como existia no domínio do Decreto-Lei nº 372-A/75;
- a entidade patronal pode suspender preventivamente o trabalhador sempre que instaure um processo disciplinar, vise este ou não o despedimento, bastando que considere inconveniente a presença do trabalhador no local de trabalho;
- assim, a aplicação de tal suspensão não se integra na alínea b) do nº1 do artigo 35º e, nomeadamente, não consubstancia a violação do direito à ocupação efectiva, de onde decorre que não pode a suspensão 'fora e antes da notificação da nota de culpa' ser motivo de rescisão do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador, com fundamento em justa causa decorrente da violação das garantias legais.
3. - O trabalhador não se conformou com tal decisão e dela interpôs recurso para este Tribunal, pretendendo que se apreciasse a conformidade ao artigo 58º da Constituição da interpretação conjugada dos artigos 11º e 35º do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, feita na decisão recorrida.
Face a tal requerimento, o recorrente foi notificado para esclarecer qual a exacta interpretação feita na decisão recorrida.
A esta notificação, respondeu o recorrente pela forma seguinte:
'1º Uma das questões suscitadas nos autos é a de saber se a R. podia ou não suspender o A. ainda que sem perda de retribuição e se tal suspensão violava ou não o direito de ocupação efectiva consagrado constitucionalmente no art. 58º da Constituição Portuguesa - art. 5º da petição inicial.
2º Tanto mais que não ocorrera circunstância prevista no art. 11º do Dec.-Lei
64-A/89 - suspensão do trabalhador na pendência de processo disciplinar após a entrega da nota de culpa elaborada no mesmo.
3º No Acórdão recorrido analisando-se essa questão diz-se que o poder de suspender o trabalhador é um poder discricionário do empregador que este pode usar mesmo nos casos em que não tenha havido remessa da nota de culpa ao trabalhador em processo disciplinar, sem que tal suspensão constitua violação das garantias legais do trabalhador.
4º E é essa interpretação que se considera violadora do art. 58º da Constituição não garantindo o direito de ocupação efectiva do trabalhador.'.
4. - Notificadas as partes para produzirem as competentes alegações, apenas o recorrente alegou, formulando as seguintes conclusões:
1. O recorrente intentou acção judicial contra a recorrida onde em suma alegava que esta o havia suspendido impedindo a sua entrada na empresa e consequentemente o desempenho da sua função, invocando em consequência o direito de rescindir o contrato de trabalho nos termos do art. 35º do Dec.-Lei 64-A/89 por haver da parte do empregador a violação do direito de ocupação efectiva nos termos das disposições conjugadas dos arts. 11º do Dec.-Lei 64-A/89 e 58º da Constituição - art. 5º da petição inicial;
2. O douto Acórdão recorrido apreciando o pedido e a causa de pedir do recorrente veio no entanto defender que o poder de suspender o trabalhador é um poder descricionário do empregador que por isso o pode usar sem que tal possa ser considerado uma violação das garantias legais do trabalhador;
3. Tal entendimento, no entender do recorrente, constitui aplicação de uma norma legal com um sentido interpretativo claramente violador do princípio constitucional do direito de ocupação efectiva e do direito ao trabalho que o art. 58º da Constituição claramente consagra.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
5. - A questão que vem suscitada nos autos consiste em saber se a suspensão preventiva do trabalhador determinada pela entidade patronal depois de instaurado o processo disciplinar mas antes da remessa da nota de culpa viola o artigo 58º, da Constituição, na dimensão respeitante ao direito de ocupação efectiva do trabalhador.
As normas, cuja interpretação feita na decisão recorrida
é considerada inconstitucional pelo recorrente, são as do artigo 11º, nº1, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, conjugada com a do artigo 35º, nº1, alínea b), do mesmo diploma.
É o seguinte o teor deste preceito:
'Artigo 35º
1. Constituem justa causa de rescisão do contrato pelo trabalhador:
[...]
b) Violação culposa das garantias legais ou convencionais do trabalhador;
[...]'
Pelo seu lado, o artigo 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº
64-A/89, sob a epígrafe 'Suspensão preventiva do trabalhador', estabelece que:
'1. Com a notificação da nota de culpa, pode a entidade empregadora suspender preventivamente o trabalhador, sem perda de retribuição.'
Segundo o recorrente, da norma do artigo 11º, nº1, decorre a proibição de a entidade patronal suspender preventivamente o trabalhador antes da remessa da nota de culpa, pelo que, se o fizer, tal facto confere ao trabalhador o direito a rescindir unilateralmente com fundamento em justa causa o contrato de trabalho (artigo 35º, nº1, alínea b).
No entendimento da decisão recorrida, a suspensão preventiva do trabalhador 'no regime actual tal como no que resultava do artº
31º, nº2 da L.C.T. [...] assenta na discricionariedade da entidade patronal, a qual pode suspender o trabalhador a partir do momento que lhe notifique a nota de culpa, sem sequer invocar as razões determinantes dessa suspensão', mas correndo o risco da suspensão indevida pela entidade patronal, que responderá pelos eventuais prejuízos causados. Mas, tratando-se de um poder discricionário, a sua aplicação não pode causar violação das garantias legais do trabalhador, pelo que não ocorre qualquer violação do direito de ocupação efectiva do trabalhador.
Porém, mais adiante, escreve-se na decisão recorrida:
..'A verdade é que no regime actual não há qualquer restrição na aplicação daquela suspensão, não existindo, pois, qualquer garantia do trabalhador como a que do Dec.Lei nº 372-A/75 se fazia decorrer'.
'Pode, pois, a entidade patronal suspender preventivamente o trabalhador sempre que contra ele seja instaurado o processo disciplinar, vise ou não o seu despedimento. Basta que a entidade patronal, no seu arbítrio considere inconveniente a presença do trabalhador no local de trabalho. Consequentemente, a aplicação desta suspensão não se integra na alínea b) do nº1 do artº 35º e, nomeadamente, não consubstancia a violação do direito à ocupação efectiva'.
Na decisão recorrida entendeu-se ainda que 'o não cumprimento do estatuído no nº1 daquele artº 11º, não deixa de constituir uma violação ao regime estabelecido no Dec.Lei nº 64-A/89. Só que essa violação tem uma punição que é própria - a referida no artº 60º, nº1, al.c) - a qual, porém, não vai influir na validade do processo disciplinar, por não se integrar nele, nem possuir a virtualidade de vir a integrar-se na alínea b) do nº1 do falado artº 35º'.
6. - É esta interpretação da norma conjugada do nº1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 64-A/89 com a do artigo 35º, nº 1, al. b), do mesmo diploma, no sentido de que o poder de suspender preventivamente o trabalhador sujeito a procedimento disciplinar é um poder discricionário que o empregador pode usar mesmo quando não enviou a nota de culpa sem que tal suspensão viole as garantias legais do trabalhador. É isto que constitui objecto do presente recurso.
O que está em causa é o artigo 58º da Constituição da República Portuguesa.
Esta norma estabelece que :
'1. Todos têm direito ao trabalho.
2. O dever de trabalhar é inseparável do direito ao trabalho, excepto para aqueles que sofram de diminuição de capacidade por razões de idade, doença ou invalidez.
[...]'.
O direito ao trabalho é o primeiro dos «direitos económicos, sociais e culturais» que a Constituição enumera e no qual se tem incluído, segundo alguma doutrina, o direito a exercer efectivamente a actividade correspondente ao posto de trabalho contratado, no qual se inclui a proibição de manutenção arbitrária do trabalhador na inactividade ou a suspensão não justificada nos termos da lei (neste sentido, cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, 'Constituição da Republica Portuguesa Anotada', 3ª edição revista, Coimbra, 1993, pág. 315).
Não é, todavia, pacífica na doutrina juslaboralística tal fundamentação para o eventual direito de ocupação efectiva.
Assim, Menezes Cordeiro ('Manual de Direito do Trabalho', Coimbra, 1991, pág. 654 e ss) considera que o dever de ocupação efectiva, enquanto concretização do dever de colaboração do empregador-credor na execução da prestação do trabalho mais não é do que uma consequência do carácter contratual da remissão de dívidas, de acordo com o preceituado no artigo 863º do Código Civil, acrescendo também argumentos laborais relacionados com a concepção do trabalho como meio de realização pessoal.
Por seu turno, Nunes de Carvalho ('Sobre o dever de ocupação efectiva do Trabalhador', in Revista de Direito e Estudos Sociais
(RDES), 2ª série. 1991, nº 3/4, pág. 261 e ss) faz entroncar o dever de ocupação efectiva na tutela da profissionalidade dos trabalhadores, depois de concluir pela impossibilidade de construir um dever geral de ocupar o trabalhador a partir das várias normas constitucionais, partindo para tal construção teórica do sistema de promoções consagrado nas convenções colectivas, sendo exigência de justiça uma avaliação efectiva das capacidades dos trabalhadores a fazer em situação de igualdade, situação que só ocorre se todos os trabalhadores executarem a respectiva prestação, podendo surgir aqui o verdadeiro dever de ocupação efectiva.
Porém, este autor, após fazer uma recensão crítica das posições que defendem a tese do dever de ocupação efectiva do trabalhador e do correlativo direito deste a exigir a integração na organização produtiva e a prestação do trabalho efectivo em tal organização, acaba por concluir pela possibilidade de a entidade patronal prescindir da actividade de certo ou certos trabalhadores, continuando a pagar a retribuição, sendo porém, necessário, segundo os deveres da boa-fé, fundamentar a decisão em critérios objectivos e coerentes com a razão de ser do poder de direcção da entidade patronal (ibidem, pág. 323)
Com uma fundamentação baseada na actividade profissional do trabalhador, mas que chega a resultados bem diferentes, Jorge Leite ('Direito de exercício da actividade profissional no âmbito do contrato de trabalho', in Revista do Ministério Público, vol. 47, págs. 9 a 34) propõe uma leitura do direito de ocupação efectiva como um meio de satisfação do interesse próprio, autónomo, de exercer a sua (do trabalhador) actividade profissional, interesse este que só o seu efectivo exercício poderia satisfazer com plenitude.
Pelo seu lado, Monteiro Fernandes reconhecendo embora a existência no contrato de trabalho de certas obrigações acessórias que insere dentro de um conjunto de «deveres ético-jurídicos» do dador de trabalho, que incluíria o dever de dar trabalho, começou por não aceitar que o empregador estivesse obrigado a colaborar com o trabalhador por forma a que este pudesse realizar efectivamente a sua actividade laboral - posição que manteve até à 5ª edição das suas 'Noções Fundamentais de Direito de Trabalho', tendo inflectido a sua posição essencialmente a partir de 1983 (cfr. o trabalho 'Uma sentença em Questão: existe um direito a trabalhar?', in Pessoal, nº1 (2ª série), 1983), orientação esta depois confirmada, no sentido do reconhecimento no ordenamento laboral português de um direito geral de ocupação efectiva (v. 'Noções Fundamentais...', 6ª edição, Coimbra, Almedina, 1987, pág. 190 e ss). Como fundamentação aduz-se que 'o contrato de trabalho envolve o compromisso da ocupação efectiva (até como imperativo da boa-fé), não merecendo protecção as motivações (como a de combater a concorrência ou, até, obstar directamente ao desenvolvimento profissional do trabalhador) que levem o empregador a manter o trabalhador inactivo podendo objectivamente ocupá-lo'.
Barros Moura ('Direito do Trabalho - notas de estudo', Lisboa, FDL, 1980/81, pág. 642) coloca a questão de forma directa, referindo que
'o que se discute neste ponto é o de saber se o poder do empregador sobre a empresa comporta também o direito de manter o trabalhador desocupado e improdutivo, impedindo-o de trabalhar (embora lhe pague a retribuição) ou se, pelo contrário, pode falar-se de um verdadeiro direito do trabalhador a prestar efectivamente o trabalho'; a sua resposta é afirmativa quanto a este direito, na medida em que, no preceito constitucional que institui o direito ao trabalho, este é entendido como 'direito à realização pessoal através do trabalho'.
Furtado Martins ('Despedimento ilícito, reintegração na empresa e direito à ocupação efectiva', in Direito e Justiça - Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica - Suplemento, Lisboa, 1992, pág.
173 e ss; 'A relevância dos elementos pessoais na situação jurídica de trabalho subordinado', in Revista do Ministério Público, Ano 12º, nº 47, pág. 35 e ss.) entende que a fundamentação do dever de ocupação efectiva 'deve ser procurada através da conjugação do princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações
(adaptado na sua aplicação às características particulares das situações jurídicas de trabalho subordinado) com os valores próprios do direito do trabalho, os quais estão subjacentes a algumas das normas constitucionais e legais atrás referidas'. Parte, assim, do princípio da boa-fé para construir um dever geral de ocupação efectiva do trabalhador a cargo da entidade patronal, configurando-o como um dos deveres acessórios que integram a situação jurídica de trabalho subordinado. O reconhecimento de tal dever de ocupação efectiva deve ocorrer sempre que 'o trabalhador, tendo presente os interesses contrapostos das partes, tenha um interesse legítimo nessa ocupação', cabendo ao empregador a prova, caso a caso, de uma circunstância justificante da não ocupação'.
Bernardo Xavier ( 'Curso de Direito de Trabalho', Verbo,
2ª edição, 1993, pág, 338/339), depois de considerar que 'parece acertada a posição de Nunes de Carvalho' e que 'só se poderá falar de ilícito patronal a este propósito quando a conduta do empresário que não permita a execução corresponda a uma quebra do dever de boa-fé ou constitua abuso de direito', entende que 'o crédito patronal às prestações do trabalho dos vários trabalhadores ao serviço serve os fins organizacionais da empresa pela qual o empresário é o principal responsável', e, assim, 'esse crédito não está juridicamente finalizado ao objectivo de proporcionar ocupação ao seu devedor'. Reconhece este autor que 'poderá haver situações raras em que o desaproveitamento da prestação envolve uma atitude dolosa do empresário, a qual será ilícita'. Porém, refere logo a seguir, 'uma coisa é valer-se da constância do vínculo para prejuízo do trabalhador, fazendo-o perder experiência profissional, lesando-o na sua capacidade criativa e assumindo, assim, condutas inspiradas pela má-fé (situações em que o empresário se coloca fora do Direito) e outra é a existência de um mirífico dever de ocupar e de fazer trabalhar às vezes quem não tem para isso oportunidade no quadro de uma boa gestão empresarial'. Argumenta ainda que 'levando esse pretenso dever às últimas consequências, sustentar-se-á que a entidade patronal não pode sem consentimento do trabalhador dispensá-lo do serviço por algumas horas ou dias, ou mantê-lo inactivo enquanto espera a oportunidade de lançar um produto ou uma linha de produção, ou sequer fazê-lo suportar os períodos mortos determinados por uma reorganização'.
Outros autores nacionais se poderiam citar, mas as posições relevantes da doutrina ficam expostas.
No que se refere ao direito estrangeiro, é sabido que esta questão não tem suscitado problemas no direito espanhol, no qual existe uma disposição legal a consagrar o direito à ocupação efectiva para a generalidade das situações jurídicas respeitantes ao trabalho subordinado (artigo 4º, 2, alínea a), do 'Estatuto de los Trabajadores').
No direito italiano, a posição tradicional desenvolvida ainda no âmbito do regime da mora do credor na relação do trabalho (cfr. GHEZZI,
'La mora del creditore nel rapporto di lavoro', Milão, Giuffré, 1965) entendia-se que o empregador não estava, em regra, obrigado a receber a prestação do trabalho, a não ser nos casos (concebidos como excepções concretizadoras de um princípio geral) em que a recusa da prestação efectiva podia prejudicar a sua formação ou o aperfeiçoamento profissional. Com a publicação do 'Statuto dei Lavoratori', grande parte da doutrina italiana afirma a existência de um dever geral de ocupação do trabalhador como manifestação do princípio da tutela da sua profissionalidade (cfr. G.GIUGNI, 'Qualifica, mansioni e tutela della profissionmalitá', in Revista Giuridica del Lavoro e della Previdenza Soziale', 1973,nº1-2, pág.14 e ss.).
No direito laboral alemão, para terminar esta pequena incursão pelo direito comparado, originariamente, só se reconhecia o direito do trabalhador à execução do trabalho em casos excepcionais, derivando-se o direito
à ocupação do princípio da boa-fé; posteriormente a 1960, passou a afirmar-se a existência de um dever geral de ocupação quer ligado à tutela dos elementos personalizantes da relação laboral quer decorrente dos princípios do Estado de direito ou ainda derivado dos princípios gerais do direito obrigacional (cfr. para maiores desenvolvimentos, Furtado Martins, ob.cit., pág.178).
7. - Qualquer que seja, porém, o verdadeiro fundamento do direito ou dever de ocupação efectiva, o certo é que para a resolução do caso em apreço, interessa essencialmente saber se existe, à face da nossa Constituição um tal direito, qual a sua extensão e qual o seu âmbito de protecção.
A este respeito, o Tribunal Constitucional, em apreciação de uma norma pela qual se concedia 'à entidade empregadora a faculdade de suspender a prestação de trabalho, sem embargo de manter a retribuição e o direito de acesso aos locais destinados ao exercício das actividades próprias dos representantes dos trabalhadores' e em relação à qual se questionava a violação do artigo 59º, nº1 da Constituição (texto correspondente ao actual artigo 58º, nº1), escreveu:
'O direito ao trabalho enquanto assegura a realização do homem numa dimensão pluridireccional, deve haver-se como algo mais complexo do que uma pura relação económica, na qual o acento tónico seja posto na retribuição auferida pelo trabalhador.
Sendo esta uma das componentes essenciais do respectivo direito, outras porém existem que não podem deixar de a ele estar indissoluvelmente associadas. Entre estas deve conter-se o próprio exercício do trabalho ou do emprego, do qual o trabalhador, não pode, salvo motivo lícito, ser afastado ou impedido de o actuar.'(acórdão nº 107/88, de 31 de Maio de 1988, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 11º Vol., pág. 43).
Nesta decisão, o Tribunal afirma que o 'exercício do trabalho ou do emprego' é uma das componentes do direito ao trabalho, constitucionalmente reconhecido no artigo 59º, nº1, não podendo o trabalhador ser impedido de o concretizar, excepto ocorrendo um motivo lícito.
Ainda a este respeito, no voto de vencido aposto ao acórdão (voto dos Conselheiros Cardoso da Costa e Messias Bento), escreveu-se para fundamentar solução diversa da adoptada no acórdão:
'Decerto que entre as dimensões deste direito [o direito fundamental ao trabalho] vai incluída a que respeita ao próprio «exercício» de uma actividade laboral - ao exercício efectivo do trabalho - enquanto uma das expressões essenciais da realização de cada homem como pessoa. Seria essa dimensão do direito ao trabalho - e só ela - a que poderia estar aqui em causa.
Simplesmente, ainda aceitando que, nessa sua específica dimensão, um tal direito assume, não apenas a natureza de um «direito social»
(cujo conteúdo «positivo» corresponderá, em via de máxima, à «incumbência que é cometida ao Estado pelo nº 3 do artigo 59º [hoje, nº3 do artigo 58º]), mas também a natureza de uma «liberdade» (a que corresponderá o dever «negativo» quer do Estado quer das entidades privadas, de se absterem de condutas que obstem ao exercício do trabalho), certo é também que não poderão deixar de reconhecer-se «limites» a essa mesma dimensão do direito em causa. E tanto mais quanto do artigo 59º se não retira o «direito subjectivo a um concreto posto de trabalho» (nesse sentido, por todos, v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., vol.1º, p.319, nota III)'.
Reconhece, assim, o Tribunal Constitucional, como uma das dimensões do direito ao trabalho constante do artigo 58º, nº1, da Constituição, o direito ao exercício do trabalho ou do emprego, sem todavia dilucidar (por tal não ser relevante, no caso), a questão de saber se sobre a entidade patronal recai apenas um ónus de cooperação para criar ao trabalhador as condições da prestação da sua actividade, ou se o empregador tem um dever jurídico de efectiva ocupação do trabalhador (isto é, um dever de não recusar a prestação, que inclua a prática dos indispensáveis actos de cooperação).
O fundar-se no direito ao trabalho o dever de ocupação efectiva é tese controvertida na doutrina (cfr. Nunes de Carvalho, 'Sobre o dever de ocupação efectiva' citado, pág. 302), pois se entende que 'constituído um vínculo laboral, concretizado o acesso a uma ocupação profissional, não parece que a afirmação do direito ao trabalho seja título bastante para limitar o exercício do poder patronal de gestão da prestação do trabalho', ao que acresce 'a clara natureza programática do preceito' (ibidem).
Mas quem porventura aceite tais criticas não pode certamente deixar de reconhecer a decorrência de um tal dever de ocupação efectiva da norma do artigo 59º , nº1, alínea b), da Constituição, enquanto iluminada pelo disposto nos seus artigos 1º e 2º. Com efeito, a nossa Lei Fundamental assenta na dignidade da pessoa humana, que é o fundamento de todo o ordenamento jurídico, base do próprio Estado, ideia que unifica todos os direitos fundamentais e que perpassa também pelos direitos sociais, que incluem o próprio direito ao trabalho.
Assim, a Constituição ao determinar que 'todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal', para além de estabelecer uma clara limitação conformadora do conteúdo negativo da liberdade de organização do empregador, estabelece também por forma mais concretizadora, o direito de o trabalhador realizar o pleno desenvolvimento da sua personalidade pela forma socialmente mais dignificante, que é, indubitavelmente, trabalhando, ou seja, exercendo a prestação pessoal e profissional para que foi contratado.
Este direito a uma efectiva ocupação do trabalhador enquanto dimensão do direito ao trabalho, na perspectiva concretizadora do direito a uma organização do trabalho que permita a plena realização pessoal do trabalhador, não é nem pode ser um direito absoluto; tem que ter limites: desde logo, os casos em que o empregador pode, legitimamente, fazer cessar o contrato de trabalho invocando justa causa ou a extinção do posto de trabalho por causa objectiva: depois, os casos em que o empregador pode suspender legalmente o contrato de trabalho, os casos das férias, faltas e feriados, em que se suspende a prestação do trabalho, em princípio, sem perda de retribuição: por fim as hipóteses de suspensão disciplinar da prestação laboral, também sem perda de retribuição. Uma coisa é, porém, certa: a suspensão da prestação do trabalho tem de assentar num motivo lícito, sob pena de se ter de concluir pela violação do direito de trabalhar o que fará incorrer o empregador em responsabilidade pela violação, para o que se exigirá a sua imputação a título de culpa.
Voltando agora ao caso dos autos.
8. - Como se expôs antes, e agora se pode formular mais concretizadamente, a questão que foi suscitada nos autos foi a de saber se, tendo o empregador comunicado ao trabalhador a sua suspensão preventiva, na sequência da instauração de um processo disciplinar, mas antes de lhe ter remetido qualquer nota de culpa, tal suspensão é um acto culposo, violador do direito ao trabalho, na dimensão atrás perspectivada, e consagrado numa norma complexa retirada dos artigos 2º, 58º, nº1 e 59º, nº1, alínea b), todos da Constituição, uma dimensão integradora do direito de ocupação efectiva do trabalhador.
A questão da violação deste direito e a eventual violação das garantias legais do trabalhador vem, assim, a colocar-se em sede de exercício do poder disciplinar da entidade patronal.
Vejamos, pois, as normas relevantes para a decisão.
O Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho aprovado pelo Decreto-Lei nº 49 408, de 24 de Novembro de 1969, não foi expressamente revogado pelo Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro. Este diploma, de acordo com o artigo 1º, 'aprova o regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato de trabalho a termo, que é publicado em anexo ao presente diploma, dele fazendo parte integrante.'
Não constando aquele diploma de 1969, do elenco que integra o artigo 2º (norma revogatória) do Decreto-Lei nº 64-A/89, não deixam algumas das suas normas de poderem considerar-se derrogadas pela nova regulamentação da matéria que contemplam, designadamente as relativas à cessação do contrato individual de trabalho e ao contrato a termo.
A doutrina e a jurisprudência juslaboralista nacional têm entendido que o artigo 31º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho (Decreto-Lei nº 49 408, de 24 de Novembro de 1969 - LCT) se mantém em vigor na parte relativa à suspensão do trabalhador relativamente ao qual o empregador moveu um processo disciplinar, fazendo-se a sua compaginação com o artigo 11º, nº1, do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho (Decreto-Lei nº 64-A/89. de 27 de Fevereiro) pela forma seguinte: nos termos do artigo 31º, nº 2 da LCT, o empregador que mover um processo disciplinar a um trabalhador poder suspender preventivamente a prestação do trabalho deste se a presença do trabalhador se mostrar inconveniente, mantendo sempre a obrigação do pagamento da retribuição; pelo seu lado, segundo o artigo
11º referido, o empregador, logo que notifique o trabalhador da nota de culpa, pode suspendê-lo preventivamente sem que seja necessário invocar qualquer motivo, mas não pode suspender a retribuição (veja-se, neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27 de Janeiro de 1993, in 'Colectânea de Jurisprudência', 1993, 1º, pág. 182; Abílio Neto, 'Contrato de Trabalho - Notas Práticas', pág. 706; Menezes Cordeiro, 'Manual de Direito do Trabalho', Coimbra,
1991, pág. 758).
No caso em apreço, a decisão recorrida entendeu que 'a entidade patronal pode suspender preventivamente o trabalhador sempre que contra ele seja instaurado o processo disciplinar, vise ou não o seu despedimento. Basta que a entidade patronal no seu arbítrio considere inconveniente a presença do trabalhador no local de trabalho'.
Daqui parte a decisão recorrida para a questão de saber se a suspensão preventiva antes da nota de culpa pode integrar-se na alínea b) do nº 1 do artigo 35º do Decreto-lei nº 64-A/89, para efeitos de violação do direito do trabalhador à ocupação efectiva, fazendo entroncar a conclusão de que não há qualquer violação na consideração de que é legítima a suspensão do trabalhador antes da nota de culpa quando o empregador afasta o trabalhador do local de trabalho (o que se verificou, no caso, conforme o teor da carta a comunicar a suspensão).
Assim sendo e tendo-se apurado que o reconhecimento constitucional do direito de ocupação efectiva do trabalhador não é absoluto, devendo reconhecer-se-lhe alguns limites, entre os quais não pode deixar de se integrar o afastamento temporário do local de trabalho com vista ao apuramento isento de factos que permitam ao empregador o exercício do poder disciplinar, tem de se concluir que, no caso em apreço, a interpretação conjugada das normas dos artigos 11º, nº1 e 35º, nº1, alínea b), do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho, constante do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, não violou o direito de ocupação efectiva do trabalhador e recorrente.
Efectivamente, a suspensão surge, nas circunstâncias do presente caso, funcionalizada ao exercício de poderes legítimos do empregador, que foram indubitavelmente postos em prática, e não como expressão de um poder absoluto e arbitrário. Absoluto e arbitrário no sentido de o seu exercício prescindir, de todo, das suas implicações na esfera jurídica da contraparte. É que esta é titular de um direito de sentido oposto, também ele não absoluto nem unilateral, que, não se oferecendo com a consistência suficiente para neutralizar o primeiro, lhe impõe contudo restrições.
Em situações de conflito a ponderação das posições relativas torna-se obrigatória. A suspensão do trabalhador antes da nota de culpa, com manutenção da retribuição determinada no âmbito de um procedimento disciplinar e com vista à prossecução das finalidades visadas por esse procedimento constitui uma solução normativa que, no quadro dos valores em confronto, não merece censura por excessiva ou desequilibrada.
Tem, assim, de se concluir não ocorrer a violação do princípio constitucional do direito de ocupação efectiva do trabalhador ou de outro qualquer outro princípio ou norma constitucional com a interpretação feita na decisão recorrida, pelo que o recurso tem de improceder.
III - DECISÃO:
Nos termos do exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida, na parte impugnada.
Lisboa, 10 de Julho de 1996 Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta)
Votei vencida a decisão proferida no presente Acórdão, por entender que não é sustentável admitir como objecto do juízo de constitucionalidade uma interpretação divergente da letra da lei do artigo 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 64-A/89, no sentido de que a entidade empregadora possa suspender preventivamente o trabalhador, sem perda de retribuição, antes da nota de culpa, e vir a considerar tal interpretação como não inconstitucional.
Na realidade, parece-me que o objecto do juízo de constitucionalidade seria, no caso concreto, delimitável como sendo a interpretação do artigo 35º, nº 1, alínea b) do referido diploma, segundo a qual a suspensão preventiva do trabalhador antes da nota de culpa não constituiria violação culposa das suas garantias legais, independentemente do artigo 11º, nº
1 (isto é, mesmo que tal suspensão anteceda a nota de culpa).
Ora, assim sendo, não se deveria apreciar a constitucionalidade do artigo 11º, nº 1, cujo teor é apenas o de que 'com a notificação da nota de culpa, pode a entidade empregadora suspender preventivamente o trabalhador, sem perda de retribuição'. Deveria sim, eventualmente, apreciar-se a interpretação segundo a qual a suspensão antes da nota de culpa não corresponderia a uma violação culposa das garantias legais do trabalhador.
Divergindo, desde logo, da delimitação do objecto do recurso, penso, ainda, que é muito duvidoso o julgamento de não inconstitucionalidade, na medida em que considero não adequada à Constituição
[artigos 2º, 58º, nº 1, e 59º, nº 1, alínea b)] uma redução teleológica em matéria de garantias legais e uma aplicação analógica em matéria de poderes excepcionais de restrição dos direitos do trabalhador pela entidade empregadora.
Maria da Assunção Esteves (vencida nos termos da declaração de voto junta)
Votei vencida.
A tese do acórdão passa ao lado da 'norma-objecto' do artigo 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, elegendo, antes, como pauta de regulação, a norma do artigo 31º, nº 2 do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho (Decreto-Lei nº 49.408, de 24 de Novembro de
1969) em conjugação com a norma [ela sim, também 'norma-objecto'] do artigo 35º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 64-A/89.
Esta conjugação transmuda-se, depois, em norma do caso:
é uma norma do caso sem correspondência na concreta opção legislativa que se acolheu como objecto do recurso.
E, no entanto, é pela norma do caso que a mesma tese empreende, a final, um regresso à forma originária desse objecto, a que é dada pelos artigos 11º, nº 1, e 35º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 64-A/89.
Mas assim, se a norma do artigo 11º, nº 1, foi metodicamente afastada, ela não poderia constituir-se em objecto do recurso, porque não foi tida por aplicada.
E se essa norma subentra no objecto do recurso [como se me afigura que subentra], o resultado só pode ser o da procedência do recurso - porque, claramente constitucional, sobre ela empreendeu a decisão recorrida uma verdadeira interpretação 'contra legem'. José Manuel Cardoso da Costa