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Proc. nº 292/95
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - Na Repartição de Finanças do 10º Bairro Fiscal de Lisboa, em autos de execução fiscal instaurados contra A. e relativos a dívida de imposto profissional e acréscimos correspondentes ao ano de 1987, foi deduzida oposição pela interessada peticionando-se a anulação da respectiva execução.
Os autos foram remetidos ao Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, onde, por sentença de 3 de Julho de 1992, foi a oposição julgada improcedente.
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2 - Desta sentença levou a executada recurso ao Supremo Tribunal Administrativo, rematando as alegações entretanto oferecidas com as seguintes conclusões:
'a) o § 2º do artigo 19º do CIP declara expressamente válidas para todos os efeitos as deliberações tomadas sem a participação do delegado representante do contribuinte - como é o caso da deliberação objecto da presente oposição;
b) no âmbito do recurso por preterição de formalidades essenciais previsto no §
1º do artigo 20º do CIP não pode, portanto, incluir-se a deliberação tomada nas circunstâncias descritas em a);
c) sendo-lhe vedada essa via de impugnação, tem a recorrente o direito de se opôr à execução com base na alínea g) do artigo 286º CPT;
d) as regras legais e a garantia constitucional do acesso ao direito não permitem que outra interpretação das normas antes citadas se impusesse à recorrente;
e) assim não se decidindo, são violadas as regras dos artigos 19º, § 2º e 20º
(corpo e § 1º) do CPT, 9º do CC, e 20º da Constituição da República.'
Por acórdão de 22 de Março de 1995, aquele Alto Tribunal negou provimento ao recurso e confirmou a decisão impugnada.
Para tanto, e na parte que aqui importa reter, suportou-se na fundamentação seguinte:
'Mas, conforme claramente resulta do disposto nos artºs 268º, nº 4, da Constituição, 5º do CPCI e 20º, § 1º, do CIP, dessa deliberação cabia recurso contencioso com vista a obter precisamente a sua anulação.
Por isso não tem razão a recorrente quando invoca a al. g) do nº 1 do artº 286º do CPT, que só permite se conheça, em oposição a execução fiscal, de eventual ilegalidade do procedimento administrativo-tributário como é este vício de forma invocado pela ora recorrente, se a lei não assegurar outro meio contencioso prévio de impugnação do acto administrativo em questão.
5.2 Também carece a recorrente de razão quando alega ofensa da garantia de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos consagrada no artº 20º, nº 1, da Constituição, pois tinha ao seu dispor o referido meio de recurso contencioso que lhe dava plena protecção: a julgar-se aí procedente a sua alegação de ilegalidade da questionada deliberação, esta seria necessariamente anulada, com a consequente nulidade de todos os actos posteriores, incluindo a liquidação do imposto aqui exequendo.'
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3 - Inconformada com o assim decidido, e sob invocação do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, interpôs então a executada recurso para este Tribunal em ordem à 'apreciação da inconstitucionalidade das normas do artigo 20º e § 1º do Código do Imposto Profissional, e da alínea g) do artigo 286º do Código de Processo Tributário, conforme foram interpretadas pelo Tribunal Tributário de 1ª Instância e pelo STA'.
E, nas alegações que depois produziu concluiu do modo seguinte:
'a) o dever de conhecimento e obediência à lei não abrange o dever de destrinça entre leis constitucionais e leis inconstitucionais e a consequente não obediência a estas;
b) o princípio da plenitude da garantia constitucional administrativa impede que se condicione a protecção efectiva do direito, ou interesse, do contribuinte ao recurso a determinado instrumento específico de impugnação;
c) a imperatividade deste princípio é manifesta quando a única defesa com efeito útil que resta ao contribuinte é a arguição por via de excepção da nulidade, ou da inexistência, do acto administrativo;
d) nestes casos impõe-se particularmente que a interpretação da lei tenha em vista o pensamento do legislador constitucional, fundamento primeiro da unidade do sistema jurídico;
e) porque não interpretou as normas do § 1º do artigo 2º do CIP e da alínea g) do nº 1 do artigo 286º do CPT nesta conformidade, o acórdão recorrido violou os artigos 3º, nºs 2 e 3, 20º, nº1, 106º, nº 3 e nºs 268º, 3º e 4º, e 5º todos da CR.
Por seu turno, contralegando, o representante da Fazenda Pública, argumentou em sentido contrário ao da recorrente, fechando o seu discurso com as conclusões seguintes:
'A - A deliberação tomada pela CDR com ausência dos delegados dos contribuintes não fere a Constituição, já que: A.1 - A situação encontra-se convalidada pelo § 2º do art. 19º do CIP;
A.2 - Se se entender que em tal deliberação existe preterição de formalidades legais, a mesma é susceptível de recurso contencioso de anulação para o tribunal Tributário de 1ª Instância, conforme está previsto nos §§ 1º e
4º do art. 20º do CIP.
B - Mesmo que assim não fosse, à Recorrente assista--lhe o direito de impugnar judicialmente a deliberação da CDR, ao abrigo dos arts. 120º a 154º do CPT, porque desde há muito existe jurisprudência pacífica no sentido de considerar como inconstitucional e sem eficácia prática, o corpo do art. 20º do CIP inconstitucional e sem eficácia prática.
C - Porque a Recorrente não utilizou qualquer dos meios legais indicados nas conclusões anteriores, não pode socorrer-se do disposto na alínea g) do nº 1 do art. 286º do CPT, porque: C.1 - A lei prevê expressamente meios de impugnação judicial e/ou de recurso contencioso para o caso da Recorrente.
C.2 - Dado que a Recorrente não utilizou esses meios, não pode, posteriormente, socorrer-se dum instrumento inidóneo.
C.3 - Assim, a deliberação da CDR tornou-se consolidada na Ordem Jurídica, perante a passividade da Recorrente.
D - O nº 5 da Constituição é irrelevante para o caso em apreço, já que esta norma só tem aplicabilidade prática quando, em concreto, não existam ou não possam ser postos em funcionamento outros meios de defesa, nomeadamente os consagrados no nº 4 desse preceito; o que não foi o caso conforme está demonstrado.
E - É irrelevante a questão da notificação suscitada pela Recorrente, dado a mesma constituir um acto extrínseco e posterior à liquidação. Assim sendo, a deliberação da CDR, antes de consolidada na Ordem Jurídica, sempre poderia ser questionada pelos meios indicados nas conclusões 'A' e 'B'.
F - Por força do que foi dito nas conclusões anteriores o princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa não foi violado, dado que a lei colocou à disposição da Recorrente e com anterioridade, os meios necessários e suficientes para a sua cabal defesa.
G - Por palavras bem mais sábias, estes foram os argumentos utilizados pelo Venerando Tribunal 'a quo' no douto Acórdão ora recorrido. Daí que o mesmo seja inatacável, ao contrário do pretendido pela Recorrente.'
Foram corridos os vistos de lei, cabendo agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - No quadro normativo do Código do Imposto Profissional
(CIP) aplicável à situação em apreço [o imposto profissional veio a ser abolido pelo Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro, que aprovou o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS)], a fixação da matéria colectável poderia, mediante reclamação, 'ser objecto de revisão pelo chefe da repartição de finanças ou, no caso de este a desatender no todo ou em parte, por uma comissão distrital' constituída pelo director de finanças e por três delegados, sendo um da Fazenda Nacional e dois da respectiva categoria de contribuintes (artigo 15º, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 209/75, de 18 de Abril).
As deliberações das comissões distritais eram tomadas por maioria, sendo válidas para todos os efeitos, ainda que faltassem os delegados representantes dos contribuintes, quer por não comparecerem, quando tivessem sido devidamente convocados, quer por não terem sido designados. (artigo 19º, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 312/76, de 28 de Abril).
E, na esteira desta disciplina, o artigo 20º e seu § 1º, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 209/75, dispunham assim:
Artigo 20º
O rendimento colectável fixado pelo chefe da repartição de finanças ou pela comissão distrital não é susceptível de reclamação ou impugnação nos termos do Código de Processo das Contribuições e Impostos.
§ 1º - No caso de preterição de formalidades legais, poderão os contribuintes recorrer da decisão do chefe da repartição de finanças ou da deliberação da comissão distrital de revisão para o Tribunal de 1ª Instância das Contribuições e Impostos.
Nos termos do § 4º deste mesmo preceito o recurso, que não tinha efeito suspensivo, deveria ser interposto no prazo de um ano a contar da data da decisão ou da deliberação.
Por outro lado, o Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 154/91, de 23 de Abril, que revogou o Código de Processo das Contribuições e Impostos, e em vigor a partir de 1 de Julho de 1991, ao tratar dos fundamentos da oposição à execução, prescreve assim no artigo 286º, nº 1, alínea g):
Artigo 286º
(Fundamentos da oposição à execução)
1 - A oposição só poderá ter algum dos fundamentos seguintes:
..................................................... .
g) Ilegalidade da liquidação da dívida exequenda, sempre que a lei não assegure meio judicial de impugnação ou recurso contra o acto de liquidação.
A oponente, ao requerer a anulação da deliberação da comissão distrital que fixou a matéria colectável do seu imposto profissional, invocou como fundamento do pedido vício de forma por preterição de formalidades legais.
Será que, no contexto a que se reporta a presente fiscalização concreta de constitucionalidade, as normas questionadas, na interpretação que lhes foi dada na decisão impugnada, sofrem dos vícios de inconstitucionalidade que lhes são assacados?
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2 - A Constituição, no artigo 268º, nº 4, garante aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma, que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
Diferentemente do que acontecia nos correspondentes preceitos saídos da versão originária e da revisão de 1982 - artigos 269º, nº 2 e 268º, nº
3, respectivamente, - não se fala agora em actos administrativos 'definitivos e executórios' mas sim em actos administrativos que, independentemente da sua forma lesem 'direitos ou interesses legalmente protegidos'.
Como assinala António Vitorino, Constituição da República Portuguesa, edição da A.A.F.D.L., Lisboa, 1989, pp. XCIV e XCV, a alteração introduzida no texto actualmente em vigor procurou 'ultrapassar algumas dificuldades geradas pelas diferentes interpretações das características de executoriedade e definitividade do acto administrativo expressas abundantemente quer na doutrina quer na jurisprudência, pretendendo assim não excluir do contencioso administrativo actos que, embora de qualificação duvidosa, efectivamente produzam o resultado que se pretende reprimir: afectem direitos ou interesses legalmente protegidos. E também nesta inovação se pode reconhecer uma assinalável preocupação de comprometer de forma mais decisiva o contencioso administrativo numa via de ductilização das suas formas processuais tendo em vista a preocupação de garantir os direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados contra os actos administrativos que, independentemente da forma, os lesem ou afectem'.
A garantia do recurso contencioso assim constitucionalmente assegurada traduz-se, antes de tudo, num meio de impugnação de um acto administrativo interposto perante o tribunal administrativo competente, a fim de obter a anulação ou a declaração de nulidade ou inexistência desse acto.
Ora, talqualmente se ponderou no acórdão recorrido, a recorrente dispunha de um meio contencioso de impugnação para contrariar a deliberação da comissão distrital que fixou, na sequência de reclamação, a matéria colectável do respectivo imposto profissional.
Mas, não o utilizando, isto é, não lançando mão da faculdade que lhe era concedida pelo § 1º do artigo 20º do CIP (e dado que se invocara como causa de anulação a preterição de formalidades legais nada obstava à interposição do recurso contra a fixação da matéria colectável) a recorrente inviabilizou que a mesma matéria, transformada já em 'caso decidido' pudesse vir a ser reaberta aquando da dedução da oposição à liquidação.
É que, no processo de oposição à execução fiscal (artigos
285º a 295º do CPT), como anotam Alfredo José de Sousa e José da Silva Paixão, Código de Processo Tributário, Coimbra, 1991, p. 545, em princípio, não pode discutir-se 'a legalidade em concreto da liquidação das dívidas cobradas neste processo'.
Todavia, o legislador, tendo porventura em atenção certas situações muito particulares [v.g. dívida exequenda decorrente de indemnização fixada pelos prejuízos causados nas estradas nacionais (artigo 158º do Estatuto das Estradas Nacionais, aprovado pela Lei nº 2037, de 19 de Agosto de 1949)] veio a consentir inovatoriamente na alínea g) do nº 1 do artigo 286º, a discussão, na oposição à execução fiscal, da ilegalidade da liquidação da dívida exequenda em termos restritos.
É que, como referem aqueles autores (cfr. ob. loc. cit.), 'a ilegalidade em concreto da dívida exequenda, segundo o preceituado nessa alínea g), só é susceptível de fundamentar a oposição à execução, quando, à mingua de disposição legal, o executado não pôde reagir contra o acto de liquidação, mediante impugnação ou recurso'.
E assim sendo, porque na situação em apreço a lei assegurava
à interessada 'meio judicial de impugnação ou recurso contra o acto de liquidação' - credenciado na regra constitucional da garantia de recurso contencioso com fundamento em ilegalidade, mas também na própria norma do § 1º do artigo 20º do CIP - não era invocável como fundamento da oposição, em termos do artigo 286º, nº 1, alínea g), a 'ilegalidade da liquidação da dívida exequenda'.
Resulta do exposto que do quadro normativo questionado pela recorrente - a norma do artigo 20º não foi convocada pelo acórdão recorrido como norma decisória - as disposições ali efectivamente aplicadas, com sentido e alcance positivo ou negativo - § 1º do artigo 20º do CIP e alínea g), do nº 1, do artigo 286º do CPT - não contrariam nem a garantia do recurso contencioso, nem o princípio geral de acesso aos tribunais para defesa de direitos e interesses legítimos, consagrados, respectivamente, nos artigos, 268º, nº 4 e
20º, nº 1, da Constituição.
Com efeito, a recorrente, dispunha de um instrumento processual de impugnação da deliberação da comissão distrital através do qual, pela via contenciosa, podia ter peticionado a sua anulação com a consequente nulidade de todos os actos posteriores, incluindo a liquidação do imposto exequendo.
E assim sendo, não pode proceder a tese da inconstitucionalidade dos preceitos que vêm questionados.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, consequentemente, o acórdão recorrido.
Lisboa, 20 de Novembro de 1996
Antero Alves Monteiro Diniz
Maria Fernanda Palma
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Alberto Tavares da Costa
José Manuel Cardoso da Costa