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Processo n.º 166/12
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, A. veio apresentar recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
No requerimento de interposição de recurso, o recorrente delimitou o objeto respetivo, nos seguintes termos:
“(…) a apreciação da constitucionalidade (…) [dos] artigos 174.º, n.º 2 e 3, 176.º, 177.º, 178.º, e 269.º, n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal (…) de acordo com o seguinte entendimento: em situações de partilha por diversos indivíduos de uma habitação a autorização de busca pode abarcar as divisões onde cada um dos indivíduos desenvolve a sua vida, ainda que não visados por tais diligências.”
Invoca o recorrente que a interpretação normativa enunciada viola os artigos 32.º, n.os 1 e 8 e 34.º, n.º 2, ambos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
2. O presente recurso integra-se em processo de natureza criminal, em que o recorrente figura como arguido.
Com fundamento em “fortes suspeitas da prática de um crime de tráfico de estupefacientes”, por um determinado indivíduo, e na existência de indícios “de que seria no interior da sua residência que poderiam ser encontrados bens e objetos relevantes para a prova do ilícito”, foi autorizada, por despacho judicial, “ao abrigo das normas conjugadas dos artigos 174.º, n.ºs 2 e 3, 176.º, 177.º, 178.º e 269.º, n.º 1, al. c), todos do Código de Processo Penal, “ a realização de uma busca domiciliária à residência” de um determinado indivíduo, mencionando-se a sua localização e definindo-se que a diligência incluiria “anexos, garagens e outros espaços fechados dela [por referência à residência] dependentes”
Em cumprimento dos mandados de busca e apreensão, cuja emissão foi ordenada no referido despacho, o órgão de polícia criminal procedeu à diligência, cerca das 18h10 do dia 27 de setembro de 2011, efetuando uma “busca minuciosa” nomeadamente à sala, onde apurou dormir o indivíduo referido nos mandados, e ao quarto onde apurou dormir o agora recorrente.
Na sequência da busca e apreensões efetuadas, o recorrente foi detido e apresentado para primeiro interrogatório judicial. Na sequência dessa diligência, foi proferido despacho que – na parte que aqui interessa – julgou improcedente a arguição de nulidade da busca efetuada e determinou a prisão preventiva do recorrente.
Do referido despacho judicial, consta, relativamente à arguição de nulidade, o seguinte:
“Vem o arguido A. suscitar a nulidade da busca que decorreu no quarto onde reside, uma vez que não a autorizou.
Ora, dos elementos constantes dos autos resulta evidente, que o arguido A. reside na mesma casa que o arguido B., tal como foi informado no relatório intercalar de fls 511 a 513, sobre o qual veio a recair a promoção do MP de fls. 516 e seguintes.
Ou seja, no dia de ontem, já era conhecido que o arguido B. residia com pelo menos mais uma pessoa, pois que a tal faz referencia o OPC, bem como o Ministério Público.
Manifestamente quando proferimos o despacho judicial a autorizar a busca domiciliária à residência do arguido que então apenas conhecíamos como A1, A2, A3 ou A4 também já tínhamos conhecimento de que na residência poderiam ser encontrados outros co-habitantes.
No entanto nunca entendemos que deveria ser excluída da autorização de busca qualquer dependência da residência, e claro que tal no pressuposto de que a mesma se encontrasse em estado tal que permitisse a todos os que aí se encontrassem, aceder a qualquer um dos espaços.
Nada resultando dos autos, ou sendo sequer invocado por qualquer um dos arguidos no sentido de que viviam de forma isolada e compartimentada relativamente a quem com eles co-habitasse, não se imporia que o mandado se limitasse a procurar e apreender bens ilícitos que se viessem a encontrar em determinado quarto, nomeadamente no quarto do arguido B..
Afigurando-se que a residência permitia e servia uma vida em comunidade, sem espaços reservados, entendemos, que a autorização de busca domiciliária se teria que estender a todos os compartimentos, até porque a qualquer um deles os arguidos poderiam aceder e aí reservar os objetos que se visavam apreender.
Nestes termos a busca domiciliaria que decorreu na residência de B. e A. é formal e substancialmente valida, inexistindo qualquer invalidade que afete as apreensões efetuadas e, em consequência, a detenção do arguido A.. ”
Inconformado, o arguido, aqui recorrente, interpôs recurso para o Tribunal da Relação.
Por acórdão de 10 de janeiro de 2012, o Tribunal da Relação de Évora pronunciou-se, quanto à questão “da legalidade da busca efetuada ao quarto ocupado pelo recorrente”, nos seguintes termos:
“De acordo com o n.º 2 do art. 174.º do Código de Processo Penal, uma busca apenas pode e deve ser realizada quando houver indícios de que objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público.
As buscas são, em princípio, ordenadas ou autorizadas por despacho da autoridade judiciária competente, podendo, no entanto, nos casos delimitados no n.º 5 dessa mesma disposição legal, ser efetuadas por órgão de polícia criminal sem a mencionada ordem ou autorização.
Tratando-se de uma busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada a competência para a ordenar ou autorizar esse ato pertence ao juiz (art. 177.°, n.° 1), sem prejuízo de, em determinados casos, ela poder também ser ordenada pelo Ministério Público ou efetuada por órgão de polícia criminal (n.° 3 desse mesmo
preceito).
Tal acontece, nomeadamente, quando «os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado» [al. b) do n.° 5 do art.174.° e n.° 3 do art. 177.° do Código de Processo Penal].
No caso dos autos, foi efetuada uma busca à residência de um indivíduo então conhecido por A1, “A2”, “A3” ou “A4”, que se identificou como A1, mas que também está referenciado como sendo B., relativamente ao qual recaíam fortes suspeitas da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, com vista à apreensão quer de produtos estupefacientes, quer do produto da venda de produtos ilícitos, quer de objetos usualmente utilizados para o corte e acondicionamento dessas substâncias.
Essa busca foi autorizada pela Meritíssima juíza de instrução criminal e incluía não só a residência, como os anexos, garagens e outros espaços fechados dela dependentes, como decorre do despacho judicial que a decretou.
Alega o recorrente que a entidade policial nunca poderia ter acesso à divisão da casa que lhe serve de habitação, pois, em relação a ele, inexistiam em absoluto quaisquer indícios da prática por este de qualquer ilícito criminal.
Sem razão, porém.
Em primeiro lugar, a busca é um meio de obtenção de prova que incide, sempre, sobre lugares, e não sobre pessoas.
No caso, a busca foi autorizada por quem de direito e abrangia toda a residência, sem exclusão de qualquer divisão da mesma, nomeadamente do quarto que o ora recorrente nela ocupava (desconhecendo-se a que título), tendo sido passado e executado o respetivo mandado.
A questão que coloca de ter sido buscado um quarto por si ocupado, que faz parte da casa de habitação (apartamento), cuja busca foi autorizada, pode relevar num outro domínio, onde já tem sido encarada, mas que é alheio à situação presente. Referimo-nos à questão de saber se a autorização para busca numa casa de habitação, por parte do seu titular abrange os quartos aí existentes ocupados exclusivamente por terceiros cujo consentimento não foi obtido.
Mas, no caso sujeito, não se coloca a questão do consentimento, pois foi autorizada por despacho judicial que definiu os seus limites, sendo certo que a lei não faz depender a busca da relação entre o titular de habitação e os objetos que se procuram, mas da sua existência em determinado local.
Em segundo lugar, como decorre dos autos recursivos, o ora recorrente, em data anterior à diligência aqui em causa, já havia sido abordado por agentes da PSP e conduzido à Esquadra de Investigação Criminal de Faro, por suspeita de tráfico de cocaína, e, no tocante ao coarguido B., visado pela busca havia fortes indícios de que vinha dedicando à venda de cocaína.
As buscas e apreensões destinam-se a estabelecer a prática de crimes e a identidade dos seus autores.
Assim, se pressupõe indícios, eles referem-se à existência de objetos relacionados com um crime em determinado lugar, pois que a recolha de indícios e de provas do crime e seus autores é exatamente o que se pretende obter com as buscas e não o contrário.
Neste sentido, e sobre questão idêntica, decidiu o STJ no seu aresto de 09-03- 2006, citado pelo Ministério Público.
Assim, a busca efetuada no quarto do ora recorrente é válida, como válidas são as apreensões nele efetuadas e que constam do auto de fls.76 e 77.
Não é, por isso, afetada de nulidade a prova assim obtida, nem foi feita qualquer afronta ao disposto nos art. 32.°, n.°1 e 8 e 34.°, n.°2 da CRP e 8.°, n.°l e 2 da CEDH.”
É deste acórdão que o recorrente interpõe o presente recurso de constitucionalidade.
3. Notificado para o efeito, o recorrente apresentou alegações, onde conclui, nos termos seguintes:
“I- As normas dos artigos 174.°, n.° 2 e 3, 176.°, 177.°, 178.°, e 269.°, n.° 1 al. c) do C.P.P. , na interpretação perfilhada pelo Tribunal recorrido de que em situações de partilha por diversos indivíduos de uma habitação ( em que os co-habitantes não são familiares entre si nem vivem de modo comunitário) a autorização de busca pode abarcar as divisões onde cada um dos indivíduos desenvolve a sua vida, ainda que não visados por tais diligências, viola os artigos 32.°, n.° 1 e 8 e 34.° n.° 2 da Constituição da República Portuguesa.
II- Com efeito, a propósito de buscas domiciliárias, o conceito de “ domicílio” deve entender-se como “projeção espacial da pessoa” distinguindo-se do conceito civilístico de residência previsto no art. 82.° do CC.
III- Pelo que, expressamente autorizada no douto despacho judicial, ao abrigo das normas conjugadas dos artigos 174.°, n.° 2 e 3 176.°, 177.°, 178.° e 269, n.°1 al.c) do C.PP.., a realização de busca domiciliária à “residência” do suspeito (“ incluindo-se anexos, garagens e outros espaços fechados dela dependentes”) e verificando-se que o visado pela busca desenvolve a sua vida apenas numa das divisões da casa (sala onde dorme) não pode a busca abarcar outras assoalhadas do apartamento onde vivem de modo compartimentado outros indivíduos (incluindo o Recorrente), por constituirem essas divisões, outras tantas “residências”, de outros co-habitantes não visados por tal diligência.
IV- Com efeito, a autorização ou ordem para efetuar a busca na divisão da casa que servia de habitação ao ora recorrente sempre dependeria da existência de indícios de que o mesmo ocultava em lugar reservado e não livremente acessível ao público quaisquer objetos relacionados com um crime. (art. 174.°, n.° 2 do C.P.P.)
V- Entende-se, aliás, a este propósito que não basta uma mera suspeita, mas têm que existir “indícios”,ou seja, prova bastante de que o suspeito alvo de uma diligência probatória como a busca domiciliária está efetivamente envolvido nos factos denunciados.
VI- Ora, em relação aos restantes co-habitantes como em relação ao recorrente inexistiam em absoluto quando foi proferido o douto despacho judicial a autorizar a busca, quaisquer indícios da prática pelos mesmos de qualquer ilícito criminal. VII- Pelo que nem mesmo por despacho do Mm.° Juiz de instrução seria possível ordenar a busca à residência ou espaço na casa que estava a uso do recorrente uma vez que não existiam indícios da prática pelo mesmo de um crime.
VIII- Como se decidiu no Ac. Tribunal Constitucional n.° 507/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, titular do direito à inviolabilidade do domicílio é não só o residente solitário mas também o que tem que residir em comum.
IX- Tanto assim é que “no caso de várias pessoas partilharem a mesma habitação, deve ser exigido o consentimento de todas”. (Ac. Tribunal Constitucional n.° 507/94 disponível em www.tribunalconstitucional.pt)
X- Pelo que, em face do exposto, não pode deixar de entender-se que as referidas normas legais não permitem a realização da busca realizada na divisão onde o recorrente desenvolvia a sua vida, o que torna nula a apreensão efetuada.
XI-Assim não se entendendo, são violados os princípios constitucionais da plenitude das garantias de defesa do arguido em processo penal e o princípio da inviolabilidade do domicílio.
XII- De acordo com o art. 32.° , n.° 1 e 8 da CRP, o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa e são nulas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, no domicílio.
XIII- E dispõe o art. 34.º, n.° 2 da CRP: A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei.
TERMOS EM QUE:
Devem as normas dos artigos 174.°, n.° 2 e 3, 176.°, 177.°, 178.°, e 269.°, n.°1al. c) do Código de Processo Penal com a leitura que lhe foi dada pelo Tribunal recorrido ser julgada inconstitucional e, em consequência ordenada a reforma da decisão recorrida de acordo com tal juízo.”
4. O Ministério Público igualmente apresentou alegações, concluindo da seguinte forma:
“1.º
A busca domiciliária em apreço foi ordenada por despacho judicial, com menção expressa de que devia incidir sobre a totalidade do imóvel, incluindo anexos, garagens ou outros espaços fechados dependentes da residência.
2.º
Face ao despacho judicial que autorizou a busca e definiu os seus limites, o órgão de polícia criminal que executou a busca tinha acesso a todos esses espaços da residência, incluindo, obviamente, o alegado quarto do arguido A., independentemente do consentimento do seu ocupante, ou da prévia existência, contra o seu ocupante, de prova indiciária da prática de crime.
3.º
Efetivamente, as buscas incidem sobre lugares, são um dos meios de prova previstos no CPP, e visam a apreensão de objetos relacionados com o crime, ou que possam servir de prova (art.ºs 174.º a 178.º do CPP).
4.º
De todo o modo, o arguido, ora recorrente, já se encontrava referenciado pelas autoridades policiais como suspeito pelo crime de tráfico de estupefacientes.
5.º
É pacífico que o princípio constitucional da inviolabilidade do domicílio deve ceder quando confrontado com outros princípios constitucionais relevantes que, àquele, em determinadas circunstâncias se sobrepõem.
6.º
No caso, essa cedência impõe-se para garantir a prossecução da segurança dos cidadãos, por via do exercício pelo Estado do jus puniendi, que pressupõe uma investigação eficaz.
7.º
Isto, sem prejuízo da garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos e do arguido, que deve ser assegurada, como foi no caso concreto, nomeadamente, através da intervenção do Juiz de Instrução, que validou a busca e as apreensões efetuadas, a quem foi presente o arguido detido para 1º interrogatório judicial, e que validou essa detenção, ordenando a sua prisão preventiva.
8.º
Assim sendo, a interpretação e aplicação das normas dos artigos 174, n.º 2 e 3, 176.º, 177.º, 178.º e 269.º, n.º 1, alínea c), todos do Código do Processo Penal, efetuada pelo acórdão recorrido, mostra-se conforme a Constituição, designadamente, com os seus artigos 32.º, n.ºs 1 e 8 e 34.º, n.º 2.
9.º
Pelo que, deve ser julgado improcedente o recurso, mantendo-se o acórdão recorrido.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
5. Comecemos por delimitar o objeto do recurso, que o recorrente enuncia, no requerimento de interposição respetivo, nos seguintes moldes:
“(…) a apreciação da constitucionalidade (…) [dos] artigos 174.º, n.º 2 e 3, 176.º, 177.º, 178.º, e 269.º, n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal (…) de acordo com o seguinte entendimento: em situações de partilha por diversos indivíduos de uma habitação a autorização de busca pode abarcar as divisões onde cada um dos indivíduos desenvolve a sua vida, ainda que não visados por tais diligências.”
Os preceitos, selecionados como suporte da interpretação normativa em análise, contêm as seguintes estatuições:
“Artigo 174.º
Pressupostos
(1 - Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista.)
2 - Quando houver indícios de que os objetos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca.
3 - As revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência.
(…)
Artigo 176.º
Formalidades da busca
1 - Antes de se proceder a busca, é entregue, salvo nos casos do n.º 5 do artigo 174.º, a quem tiver a disponibilidade do lugar em que a diligência se realiza, cópia do despacho que a determinou, na qual se faz menção de que pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por pessoa da sua confiança e que se apresente sem delonga.
2 - Faltando as pessoas referidas no número anterior, a cópia é, sempre que possível, entregue a um parente, a um vizinho, ao porteiro ou a alguém que o substitua.
3 - Juntamente com a busca ou durante ela pode proceder-se a revista de pessoas que se encontrem no lugar, se quem ordenar ou efetuar a busca tiver razões para presumir que se verificam os pressupostos do n.º 1 do artigo 174.º Pode igualmente proceder-se como se dispõe no artigo 173.º
Artigo 177.º
Busca domiciliária
1 - A busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efetuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena de nulidade.
2 - Entre as 21 e as 7 horas, a busca domiciliária só pode ser realizada nos casos de:
a) Terrorismo ou criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada;
b) Consentimento do visado, documentado por qualquer forma;
c) Flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.
3 - As buscas domiciliárias podem também ser ordenadas pelo Ministério Público ou ser efetuadas por órgão de polícia criminal:
a) Nos casos referidos no n.º 5 do artigo 174.º, entre as 7 e as 21 horas;
b) Nos casos referidos nas alíneas b) e c) do número anterior, entre as 21 e as 7 horas.
4 - É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 6 do artigo 174.º nos casos em que a busca domiciliária for efetuada por órgão de polícia criminal sem consentimento do visado e fora de flagrante delito.
5 - Tratando-se de busca em escritório de advogado ou em consultório médico, ela é, sob pena de nulidade, presidida pessoalmente pelo juiz, o qual avisa previamente o presidente do conselho local da Ordem dos Advogados ou da Ordem dos Médicos, para que o mesmo, ou um seu delegado, possa estar presente.
6 - Tratando-se de busca em estabelecimento oficial de saúde, o aviso a que se refere o número anterior é feito ao presidente do conselho diretivo ou de gestão do estabelecimento ou a quem legalmente o substituir.
Artigo 178.º
Objetos suscetíveis de apreensão e pressupostos desta
1 - São apreendidos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova.
2 - Os objetos apreendidos são juntos ao processo, quando possível, e, quando não, confiados à guarda do funcionário de justiça adstrito ao processo ou de um depositário, de tudo se fazendo menção no auto.
3 - As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária.
4 - Os órgãos de polícia criminal podem efetuar apreensões no decurso de revistas ou de buscas ou quando haja urgência ou perigo na demora, nos termos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 249.º
5 - As apreensões efetuadas por órgão de polícia criminal são sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas.
6 - Os titulares de bens ou direitos objeto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 5 do artigo 68.º
7 - Se os objetos apreendidos forem suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o. A autoridade judiciária prescinde da presença do interessado quando esta não for possível.
Artigo 269.º
Atos a ordenar ou autorizar pelo juiz de instrução
1. Durante o inquérito, compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar:
(…)
c) buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do artigo 177.º”
6. Face à enunciação da interpretação normativa, cuja constitucionalidade é questionada, conclui-se que o arco de disposições legais selecionado pelo recorrente é demasiado amplo, incluindo preceitos que, em rigor, não constituem suporte do critério normativo em apreciação.
Acresce que, nas alegações, o recorrente utiliza, na sua argumentação, especificações que correspondem à sua interpretação subjetiva dos factos, sem projeção, de resto, na ratio decidendi da decisão recorrida – nomeadamente que os co-habitantes do domicílio “não são familiares entre si nem vivem de modo comunitário”, mas de forma “compartimentada” – pelo que convirá relembrar que a delimitação do objeto do recurso terá em consideração o enunciado formulado no requerimento de interposição respetivo, que aliás fixa tal objeto de forma definitiva.
Relativamente ao arco de disposições legais escolhido, por conter o núcleo essencial de suporte do critério normativo, cuja constitucionalidade é questionada, considera-se cumprido, de forma suficiente, o respetivo ónus de especificação, apenas se procedendo, neste momento, a uma delimitação mais precisa, por forma a tornar mais claro o âmbito da questão sobre a qual o Tribunal se pronunciará.
Assim, o critério normativo que será analisado corresponde à interpretação normativa, extraída da conjugação dos artigos 174.º, n.os 2 e 3, 177.º, n.º 1 e 269.º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Processo Penal, segundo a qual a autorização judicial de busca domiciliária, em situações de partilha por diversos indivíduos de uma habitação, pode abarcar as divisões onde cada um dos indivíduos desenvolve a sua vida, ainda que não visado por tal diligência.
7. Antes de entrarmos na análise da concreta interpretação normativa identificada, torna-se necessária uma densificação conceitual da diligência processual problematizada.
A busca, prevista no Código de Processo Penal, é uma diligência tendente à obtenção de objetos relacionados com um crime ou que possam servir de respetiva prova ou ainda à detenção de um indivíduo, fundamentando-se a sua realização na existência de indícios de que os mesmos se encontrem em lugar reservado ou não livremente acessível ao público.
Estruturalmente, tal diligência processual encontra-se associada a uma entrada em espaço de acesso restrito ou vedado e a uma atividade direcionada à descoberta de algo – objetos ou indivíduo a deter – que se encontrará tendencialmente escondido ou dissimulado.
Face ao objeto do presente recurso, centrar-nos-emos apenas na dimensão da busca que respeita à descoberta ou apreensão de objetos.
Relativamente a esta, a ênfase da diligência assenta particularmente na localização espacial de tais bens, em detrimento relativo do apuramento da respetiva titularidade subjetiva. Os indícios em que se baseia apontam para a existência de objetos relacionados com um crime em determinado lugar, ou para a ocultação daqueles objetos em determinado lugar.
Porém, tal ênfase não pode fazer esquecer que o caráter intrusivo da busca – que abrangerá a abertura, nomeadamente com recurso a arrombamento, de portas, armários, gavetas; a visualização e o manuseamento de objetos de uso lícito, estranhos à investigação em curso – tem uma incidência virtualmente lesiva, de devassa, sobre as pessoas que ocupam o espaço que é alvo da busca.
Tal intromissão acentua-se no caso das buscas domiciliárias, face ao caráter especialmente reservado desse espaço.
8. A Constituição da República Portuguesa consagra a proteção da reserva do domicílio, no artigo 34.º, referindo que o mesmo é inviolável.
A abrangência da noção de domicílio, para efeito de interpretação desta disposição constitucional, é mais ampla do que o âmbito de idêntico conceito, operatório no domínio do Código Civil.
A este propósito, referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, p. 540):
“Tendo em conta o sentido constitucional deste direito, tem de entender-se por domicílio, desde logo, o local onde se habita – a habitação - , seja permanente, seja eventual; seja principal ou secundária. Por isso, ele não pode equivaler ao sentido civilístico, que restringe o domicílio à residência habitual (mas, certamente incluindo também as habitações precárias, como tendas, “roulottes”, embarcações), abrangendo também a residência ocasional (como o quarto de hotel) (…)”
Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2010, p. 759), por sua vez, escrevem:
“Qualquer tentativa de aproximação ao conceito de domicílio não pode perder de vista o bem jurídico que este direito fundamental pretende proteger, no caso concreto a chamada “esfera privada espacial”. Assim, a qualificação de qualquer espaço como domicílio implica, necessariamente, que aí se resida, isto é, que aí se pratiquem atos relacionados com a vida familiar e com a esfera íntima privada.”
Mais acrescentam os mesmos Autores (ibidem) que “(…) é possível extrair um requisito fundamental para a determinação do conceito de domicílio: a existência de uma compartimentação espacial suscetível de evitar ou limitar a possibilidade de violações ou entradas.”
Conclui-se, nestes termos, que o conceito de domicílio, para efeito de proteção constitucional, corresponde ao espaço funcionalmente utilizado como habitação humana, local reservado que é o centro da vida pessoal e familiar de cada um, ou seja, “aquele espaço fechado e vedado a estranhos, onde, recatadamente e livremente, se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar” (cfr. Acórdão n.º 452/89, disponível in www.tribunalconstitucional.pt).
9. O direito à inviolabilidade do domicílio surge associado à proteção de vários bens jurídicos fundamentais, como a dignidade da pessoa, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e, sobretudo, a garantia da liberdade individual, autodeterminação existencial e garantia da reserva da vida privada (cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, op. cit, p. 539). Corresponde, essencialmente, à proteção da habitação, “enquanto projeção espacial da pessoa' (Amorth, La Costituzione Italiana, página 62), ou, mais incisivamente ainda, enquanto 'instrumento necessário de uma completa manifestação da liberdade individual ' (Florian, apud Novissimo Digesto Italiano, volume VI, página 180)” (em especial, Acórdão n.º 452/89, mas também, v.g., o Acórdão n.º 507/94, no mesmo sítio da internet).
Sintetizando o sentido da jurisprudência constitucional, a propósito deste direito, pode ler-se no Acórdão n.º 274/07 (igualmente no referido sítio da internet):
“ (…) dir-se-á agora, apenas, que a inviolabilidade do domicílio densifica um direito fundamental que garante à pessoa, numa precipitação que traduz o reconhecimento da sua dignidade ética e concretiza a tutela jusfundamental do seu livre desenvolvimento (cf. artigo 26.º), um elementar espaço de vida” – elementaren Lebensraum –, ou uma “esfera privada espacial” – räumliche Privatsphäre – (cf. BverfGE 51, 97 e BverfGE 109, 279), colocada na livre disponibilidade do seu titular.
Formulação esta que acompanha de perto as considerações vertidas no recente Acórdão de 4 de março de 2004 do Bundesverfassunsgericht (…), onde se considerou que “a inviolabilidade do domicílio (Unverletzlichkeit der Wohnung) está intimamente relacionada com a dignidade humana e, ao mesmo tempo, com o mandamento constitucional de respeito incondicional por uma esfera do cidadão para um exclusivamente privado – “personalíssimo” – desenvolvimento (eine ausschließlich private - eine 'höchstpersönliche' – Entfaltung)”, daí decorrendo a necessidade de garantir o “direito de ser deixado em paz”, maxime no que concerne às “dependências domiciliares” onde a pessoa desenvolve, em reserva, a sua vida privada.”
10. A proteção da inviolabilidade domiciliária, à semelhança dos restantes direitos fundamentais, não consubstancia um direito absoluto ou ilimitado.
De facto, a própria Constituição, no n.º 2 do artigo 34.º, admite que a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei.
Fica, assim, definida uma autorização constitucional expressa para o estabelecimento de restrições à inviolabilidade do domicílio, que estão sujeitas à reserva de lei – que definirá os seus concretos termos – e ao controlo da autoridade judicial competente.
Isso mesmo se retira do Acórdão n.º 364/2006, no qual se pode ler que “não existe norma constitucional de que possa retirar-se a completa imunidade de um espaço a buscas judiciais: basta, para o efeito, atentar no disposto no artigo 32.º, n.º 8, da Constituição, que proíbe a abusiva intromissão na vida privada e no domicílio, o que obviamente significa que existem intromissões constitucionalmente permitidas. Entre estas situam-se, sem dúvida, as buscas judiciais que tenham lugar nos casos e segundo as formas previstas na lei, que a Constituição admite quando se trata da entrada no domicílio dos cidadãos (cfr. artigo 34.º, n.º 2, da Constituição)”.
Na mesma linha, resulta do n.º 8 do artigo 32.º da Lei Fundamental que a nulidade das provas obtidas por intromissão na vida privada, nomeadamente no domicílio, se verifica quando tal intromissão seja “abusiva”, devendo considerar-se abrangida por tal qualificativo a intromissão “efetuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial (artigo 34.º, n.os 2 e 4), quando desnecessária ou desproporcional ou quando aniquiladora dos próprios direitos (cfr. artigo 18.º, n.os 2 e 3)” (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, op. cit., p. 524).
11. A restrição do âmbito máximo de proteção do domicílio deve ser entendida à luz da necessidade de proteger outros direitos e interesses constitucionalmente tutelados.
A busca domiciliária, autorizada por despacho do juiz competente, ao abrigo do artigo 177.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, consubstancia uma restrição do direito à inviolabilidade do domicílio, que é justificada pela necessidade de salvaguardar o interesse da realização da justiça. Como atrás se sublinhou, a opção da lei processual penal de viabilizar a busca domiciliária coativa, sujeitando-a, em regra, a prévia autorização e conformação judicial – quanto à determinação dos seus termos e extensão – alicerça-se na autorização constitucional expressa do artigo 34.º, n.º 2, da CRP.
Na verdade, a importância dos bens jurídicos tutelados pelo direito criminal – que comportam uma necessária referência à ordem axiológica constitucional, correspondendo a uma concretização de valores ligados, primacialmente, aos direitos, liberdades e garantias, no âmbito do direito penal clássico ou de justiça, e ainda à concretização de valores constitucionais ligados aos direitos sociais e à organização económica, como se verifica, em regra, no caso do direito penal secundário (cfr. J. de Figueiredo Dias, “O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, “Jornadas de Direito Criminal”, C.E.J., 1983, p. 323.) – justifica uma compressão de direitos fundamentais, como a da inviolabilidade do domicílio, desde que a mesma não se mostre excessiva.
A exigência legal de uma autorização judicial prévia da busca domiciliária pretende assegurar uma ponderação casuística entre o valor do contributo previsível da diligência para o apuramento da verdade material e a violação da reserva da vida privada que a sua realização acarreta. Esta exigência da autorização comporta a garantia de uma prévia e casuística ponderação confiada a quem, como já referimos, é matricialmente assumido como o garante, por excelência, dos direitos fundamentais. É assim, nos termos da lei, ao juiz que incumbe decidir sobre se, perante as circunstâncias concretas, o interesse da procura da verdade material justifica a medida intrusiva da busca.
A propósito desta diligência lê-se no Acórdão n.º 278/2007 que “atenta a relevância do valor em causa e a correspondente gravidade da sua ofensa, considera-se constitucionalmente imposto que a verificação da legitimidade desta ofensa, para salvaguarda de outros valores ou interesses constitucionalmente tutelados, seja sujeita a controlo judicial”. A intervenção do juiz, aferindo da existência de uma suspeita razoável, e fixando os termos em que a busca pode ter lugar, incluindo a sua abrangência espacial, tem, assim, uma função predominantemente garantística.
De facto, como já se defendeu no Acórdão n.º 114/95, no tocante ao “controlo judicial da existência de indícios de ocultação, em casa habitada, de quaisquer objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova (…) a intervenção do juiz é exigida pela preocupação de controlar a legalidade da diligência e, bem assim, garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, no caso, o direito à inviolabilidade do domicílio”.
Fica, deste modo, cometida ao juiz a tarefa de ponderar, casuisticamente, se, perante as circunstâncias concretas, nomeadamente o grau de indiciação da ocultação dos objetos, no local referenciado, se justifica a diligência intrusiva.
12. Dúvidas não há de que a restrição, constitucionalmente autorizada, do direito de inviolabilidade do domicílio imposta pela norma que permite que o juiz ordene uma busca domiciliária quando existam indícios de que alguém oculta, num local de residência, objetos relacionados com um crime que possam servir de prova, demonstra aptidão para alcançar o objetivo da prossecução do princípio da investigação ou da verdade material e, de uma maneira geral, de realização da justiça, que a justificam, não onerando de forma imponderada aquele direito.
Mas, no caso em análise, a questão está em saber se pode a lei prever que a autorização judicial de busca domiciliária possa abranger o domicílio partilhado por vários indivíduos, que o utilizam em comum, abarcando as divisões em que cada um desenvolve a sua vida, ainda que não visados pela diligência.
Ponderando as implicações de tal situação de partilha, o Acórdão n.º 507/94 julgou inconstitucional o entendimento de que o consentimento exigido para a busca domiciliária em casa habitada, realizada por órgão de polícia criminal, poderia ser prestado apenas por quem, não sendo visado por tal diligência, tivesse a disponibilidade do lugar em que a busca é efetuada. Seguiu-se, em tal aresto, a tese defendida nomeadamente por Costa Andrade que, citando Amelung, refere que “cada um dos que habitam na mesma casa é portador de um direito fundamental na forma de exigência de omissão dirigida ao Estado e só pode dispor-se de um direito alheio na base de autorização bastante. Na medida em que falta uma autorização no mínimo concludente, o consentimento de uma só pessoa não basta para legitimar as buscas na casa habitada por vários (…) Quando um dos membros da casa autoriza que outro dos habitantes permita a entrada de pessoa particular ou do homem do gás, daí não pode concluir-se que o autorize também a franquear a porta a quem vem preparar a sua condenação, isto é, a inflição de um mal” (Amelung apud M. da Costa Andrade, op. cit., pgs. 51 e 52.).
Em suma, sem uma prévia intervenção judicial garantística, o consentimento do visado pela diligência de busca assumiria um papel fulcral.
A situação é, porém, substancialmente diversa, no presente caso, já que, na norma em apreciação, não está em causa a exigência de consentimento para a realização da busca, mas sim a abrangência da autorização judicial prévia à execução coativa de tal diligência.
Neste contexto, convém não esquecer que um domicílio alvo da busca pode ser, como na situação em apreço, residência de outros indivíduos que não os visados, sobre os quais não recaem quaisquer suspeitas de envolvimento na prática ilícita em investigação. A lei não faz depender a busca da relação entre o titular de habitação e os objetos que se procuram, mas da sua existência em determinado local.
Acontece que a busca, como meio investigatório, envolve, na maior parte das vezes, uma relativa indeterminação sobre a exata titularidade do domicílio – v.g., quanto à natureza do título de ocupação ou ao número de residentes – cuja intromissão é exigida pela medida.
Envolve, também, uma relativa indeterminação dos concretos objetos a apreender e da respetiva titularidade, em conformidade com o juízo meramente indiciário que a fundamenta.
Acresce que, como facilmente se compreende, a reserva do domicílio – ainda que partilhado com outras pessoas, em muitos casos ligadas por laços familiares, ou de proximidade existencial, geradores de relações de confiança e solidariedade, naturalmente inibidoras de denúncias – propicia o resguardo pretendido para a ocultação de objetos incriminadores.
Assim, a obrigatoriedade de que a extensão da busca judicialmente autorizada estivesse limitada aos espaços integrantes do domicílio comum, especialmente destinados ao uso do suspeito ou arguido, com exclusão dos restantes que lhe são acessíveis, determinaria uma desproporcionada ineficácia da diligência.
De facto, não existindo áreas de privacidade exclusivas dos vários habitantes, cuja acessibilidade seja fisicamente vedada aos restantes, mas, ao invés, sendo patente uma partilha de um domicílio unitário, em que – não obstante a eventual coexistência de uma consensual divisão de ocupação de espaço físico – os residentes podem circular livremente, a eficácia da pretensão punitiva do Estado, dependente da utilidade prática da busca, carece da possibilidade de expansão da diligência a todo o espaço integrante da habitação.
Aliás, se assim não se considerasse, seria excessivamente fácil e previsível que o agente do crime, para tornar a sua atividade ilícita imune a qualquer busca, optasse por ocultar os objetos incriminatórios no espaço tendencialmente afeto aos outros residentes, com ou sem o seu conhecimento.
A restrição da reserva do domicílio dos co-habitantes de uma residência sujeita a busca, ainda que não visados pela diligência como suspeitos, é um resultado inerente à circunstância de partilharem do mesmo domicílio, sendo certo que tal diligência tem uma incidência sobretudo espacial e não pessoal.
Por outro lado, recorde-se que a norma segundo a qual a autorização judicial de busca domiciliária, em situações de partilha por diversos indivíduos de uma habitação, pode abarcar as divisões onde cada um dos indivíduos desenvolve a sua vida, ainda que não visado por tal diligência, pressupõe que a autorização judicial da busca (e definição da sua extensão) implica, ela mesma, um juízo prévio sobre os respetivos pressupostos, que avaliará, no caso concreto, a adequação, necessidade e proporcionalidade de tal medida, juízo que é realizado por quem, por imposição constitucional, protege os direitos fundamentais.
Assim, a possibilidade de a autorização judicial de busca domiciliária envolver a permissão de devassa de todo o espaço da habitação, incluindo as divisões que, embora de utilização predominante por outros habitantes, sejam acessíveis ao suspeito visado pela diligência, não apenas comporta uma restrição do direito à “esfera privada espacial” adequada à prossecução do princípio da investigação ou da verdade material e, de uma maneira geral, de realização da justiça, que a justificam, como se revela necessária, porque, em concreto (como se assinalou), indispensável à eficácia da diligência, bem como proporcional, em sentido estrito, por se apresentar como correspondente a uma equilibrada ponderação do peso relativo de cada um dos concretos bens jurídicos constitucionais em confronto, ou seja, do peso do agravo produzido para o titular afetado no direito que é objeto da restrição (direito à inviolabilidade do domicílio) e do benefício que justifica a restrição (a realização da justiça - refletido na viabilização do efeito útil da busca domiciliária, como diligência de investigação - que se consubstancia na efetivação do direito à tutela jurisdicional efetiva de outros tantos direitos fundamentais protegidos pelas normas incriminadoras).
Pelo exposto, conclui-se que o critério normativo em apreciação não constitui restrição inconstitucional do princípio da inviolabilidade do domicílio, não comportando violação do disposto no artigo 32.º, n.º 8 e 34.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Igualmente, não constitui violação do princípio da plenitude das garantias de defesa do arguido, que, de resto, o recorrente invoca, mas não densifica autonomamente, não se vislumbrando que assuma pertinência como questão independente das proibições de prova consagradas no n.º 8 do artigo 32.º, já analisadas.
Nestes termos, conclui-se pela não inconstitucionalidade da interpretação normativa, extraída da conjugação dos artigos 174.º, n.os 2 e 3, 177.º, n.º 1 e 269.º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Processo Penal, segundo a qual a autorização judicial de busca domiciliária, em situações de partilha por diversos indivíduos de uma habitação, pode abarcar as divisões onde cada um dos indivíduos desenvolve a sua vida, ainda que não visado por tal diligência.
IV - Decisão
13. Pelo exposto, decide-se:
- julgar não inconstitucional a interpretação normativa, extraída da conjugação dos artigos 174.º, n.os 2 e 3, 177.º, n.º 1 e 269.º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Processo Penal, segundo a qual a autorização judicial de busca domiciliária, em situações de partilha por diversos indivíduos de uma habitação, pode abarcar as divisões onde cada um dos indivíduos desenvolve a sua vida, ainda que não visado por tal diligência
- e, em consequência, julgar improcedente o recurso interposto.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 24 de abril de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.