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Processo nº 415/95
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
(Consª Assunção Esteves)
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1.- A., notificado do despacho do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, de 6 de Junho de 1994, que lhe negou o pedido de reconhecimento do direito de asilo oportunamente deduzido, requereu a suspensão da eficácia do acto, em ordem à interposição de recurso contencioso de anulação.
Alegou, para o efeito, que da execução do acto advirá a sua prisão por crime não cometido, 'aplicado por razões estritamente políticas', tornando de difícil ou mesmo impossível reparação o prejuízo daí adveniente e esvaziando de sentido o recurso que interpõe da decisão de indeferimento do pedido de asilo, encontrando-se igualmente preenchidos os requisitos previstos nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 76º da Lei nº 70/93, de 29 de Setembro (na realidade, terá querido dizer Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho - Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, até porque a Lei nº
70/93 - Lei do Asilo - não contém artigo com essa numeração nem outro de conteúdo equivalente).
O Supremo Tribunal Administrativo - STA - por acórdão de 4 de Maio de 1995, indeferiu o pedido de suspensão por não considerar verificado o requisito enunciado na alínea a) do nº 1 daquele artigo
76º - o que o dispensou de analisar os demais.
Considerou, em síntese, não existir o condicionalismo concreto exigido: a saída de Portugal não implica forçosamente que o recorrente regresse ao seu país de origem; de qualquer modo, nada se sabe sobre a natureza e a gravidade do ou dos aludidos processos judiciais porventura pendentes contra ele; a sua eventual saída não constituirá condição objectiva dos prejuízos alegados, não havendo por isso de formular posterior juízo de adequação.
2.- Inconformado, interpôs o interessado recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, fundamentando-se na interpretação feita pelo acórdão recorrido da norma do artigo 76º da LPTA - aplicada conjuntamente com os artigos 18º, nº 1, e 20º, nº 5, ambos da Lei nº 70/93, e 72º do Decreto-Lei nº
59/93, de 3 de Março - no sentido que permite a expulsão de um cidadão estrangeiro que tenha apresentado pedido de asilo ainda não definitivamente recusado.
Na sua perspectiva, a mencionada interpretação normativa viola 'a garantia constitucional do pedido e do direito de asilo previsto no artigo 33º, nºs. 5 e 6 da Constituição da República Portuguesa
(CRP), e, conjugados com aquela, as garantias constitucionais de fiscalização judicial dos actos administrativos e do acesso à justiça administrativa, previstos nos artigos 268º, nºs. 4 e 5, da CRP'.
O recurso não foi admitido por despacho de 1 de Junho de 1995 do Senhor Conselheiro relator, dado não ter sido suscitada no processo a questão de inconstitucionalidade - abonando-se, para o efeito, no disposto nos artigos 70º, nº 1, alínea b), e 76º, nº 2, da Lei nº 28/82 e na jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdãos nºs 36/91 e 57/91, publicados no Diário da República, II Série, de 22 de Outubro e 1 de Julho de
1991, respectivamente).
3.- Notificado, reclamou o recorrente para este Tribunal, de acordo com o disposto no nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82, defendendo a tese da impossibilidade de suscitação da questão em momento anterior, considerando a inesperada interpretação da lei feita pelo Supremo. Na tese por si propugnada, a questão de inconstitucionalidade só terá surgido no momento da decisão, na interpretação literal adoptada quanto à alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, alínea que - em seu entender - deverá ser interpretada como referente tão só 'às situações em que a questão de inconstitucionalidade deva e possa ser suscitada antes da própria decisão que aplique norma interpretada em termos que se julguem eventualmente inconstitucionais, contrariamente ao que sucedeu nestes autos, casos em que deverá ser suscitada no primeiro acto após o seu conhecimento'.
Submetido o caso à apreciação da conferência, o Supremo, por acórdão de 29 de Junho de 1995, manteve o despacho reclamado.
Retomando o ponderado no Acórdão nº 36/91, já citado, do Tribunal Constitucional, escreveu-se, então, que o STA tinha que saber que devia pronunciar-se sobre a referida inconstitucionalidade, que, no entanto, nunca foi suscitada.
O Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, nos termos que se passam a transcrever:
'A presente reclamação não merece, a nosso ver, provimento, já que, ao contrário do que sustenta o reclamante, a interpretação - de algum modo exigente e 'restritiva' - do requisito de admissibilidade da suspensão de eficácia do acto administrativo, constante da alínea a) do nº 1 do artº 76º da LPTA é a que corresponde à jurisprudência largamente dominante do STA.
Efectivamente, vem sendo entendido, de modo uniforme, que o requerente daquele incidente de suspensão da executoriedade tem o ónus de alegar os factos concretos demonstrativos dos prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação e de os especificar e concretizar - devendo repercutir-se na sua esfera jurídica e ser consequência directa e imediata da execução do acto que causa, e não meramente indirectos, possíveis ou eventuais.
Neste termos, a formulação, na decisão recorrida, de uma exigência de prognose e adequação entre a execução do acto e os danos invocados não constitui, de nenhum modo, solução 'insólita e imprevisível', interpretação justificadamente 'inesperada' do regime legal em vigor - mas, bem pelo contrário, interpretação dos comandos legais atinentes à matéria conforme a jurisprudência corrente do contencioso administrativo.
Cumpria, pois, ao ora reclamante, se actuasse no processo com a diligência devida, ter logo suscitado, no próprio requerimento de suspensão, a questão de inconstitucionalidade da (provável) interpretação da alínea a) do nº
1 do artº 76º da LPTA que, com fundamento no carácter puramente eventual, hipotético e não 'adequado' dos danos invocados, lhe denegasse a referida suspensão de executoriedade da expulsão.
Não o tendo feito, é evidente que a mera surpresa 'subjectiva' face ao teor da decisão recorrida não é idónea para dispensar, no recurso de constitucionalidade fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, a suscitação da questão de inconstitucionalidade antes da prolação de tal decisão.'
Corridos os demais vistos a que alude o nº 3 do artigo 77º da Lei nº 28/82, cumpre decidir, sendo certo que, por vencimento, operou-se, entretanto mudança de relator.
II
1.- O recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 consagra, entre os seus pressupostos de indispensável verificação, uma concepção funcional do que deve considerar-se suscitação durante o processo, de modo a entender-se que a questão só é suscitada relevantemente, para efeitos de recurso, se o for a tempo de o tribunal recorrido se poder pronunciar sobre ela, ou seja, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr., neste sentido, v.g., J.M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, Coimbra, 2ª ed.,
1992, pág. 51, e, na jurisprudência deste Tribunal, por todos, os acórdãos nºs.
80/92 e 155/95, publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de
1992 e de 20 de Junho de 1995, respectivamente).
Por outro lado, a questão tem de ser suscitada com a clareza e a perceptibilidade necessárias de modo que o tribunal saiba que a tem de resolver e conheça os termos em que a mesma lhe é apresentada (cfr., inter alia, o Acórdão nº 269/94, publicado no citado Diário, II Série, de 18 de Junho de 1994).
Ao ponderar a oportunidade de suscitação, o intérprete deverá, no entanto, ter presente aqueles casos em que a parte não usufruiu anteriormente de intervenção processual (como o Acórdão nº 51/90, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Julho de 1990, contempla) ou se confronta com uma interpretação judicial de todo imprevisível ou insólita, com que razoavelmente não poderia contar (cfr., por todos, o Acórdão nº 479/89, publicado no Diário citado, II Série, de 24 de Abril de 1992).
Considera-se que, em casos como esses, cessa o ónus que sobre as partes recai de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas susceptíveis de convocação e, de igual modo, se lhes dispensa o encargo de adoptarem uma estratégia processual adequada, de prevenção dessas possibilidades (cfr., entre outros, os Acórdãos nºs. 61/92 e
370/94, publicados no Diário citado, II Série, de 18 de Setembro de 1992 e 7 de Setembro de 1994, respectivamente).
2.- Ora, pretende o reclamante justificar-se, no caso concreto, a dispensa da prévia suscitação.
Sem razão, adiante-se desde já.
Na verdade, o acórdão recorrido procedeu à exegese do nº 1 do artigo 76º da LPTA na linha interpretativa habitual que um significativo acervo jurisprudencial existente sobre a matéria suporta. Foi nessa óptica - de habituação - que se pronunciou sobre a exigência de prejuízo de difícil reparação e, bem assim, quanto ao ónus da prova a recair sobre o requerente.
Pode, é certo, defender-se que se não terá atendido suficientemente à área garantística em que se situa a tutela cautelar do direito em causa, porventura a exigir uma valoração plurilinear, reforçada, aliás, se confrontado o novo regime de efeitos atribuídos à 'recusa de asilo' introduzido pela Lei nº 70/93 com o que anteriormente dispunha a Lei nº 38/80, de 1 de Agosto, no nº 3 do seu artigo 10º, na redacção do Decreto-Lei nº 415/83, de 24 de Novembro.
No entanto, não pode afirmar-se a imprevisibilidade da interpretação feita, de modo a não se considerar exigível ao interessado acautelar-se com oportuna arguição de inconstitucionalidade.
Mais ainda, este, não só não o fez - e podia tê-lo feito - como que aceitou 'as regras do jogo', na exacta medida em que invoca o artigo 76º da LPTA e procura dar como provados os requisitos nele previstos para viabilizar a suspensão, tais como a jurisprudência do S.T.A. os tem concebido.
Sendo assim, não se censura, no âmbito da competência do Tribunal Constitucional, o despacho que não recebeu o recurso de constitucionalidade por inverificação dos pressupostos exigidos pela alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, nem o acórdão que o confirmou: face ao sumariamente exposto no ponto imediatamente antecedente, a questão de constitucionalidade não foi, efectivamente, suscitada durante o processo. E, não obstante, ao reclamante foi dado adoptar, cautelarmente, a estratégia processual adequada na própria peça processual em que requereu a suspensão de eficácia.
III
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação condenando-se o seu autor nas custas do processo, com taxa de justiça que se fixa em 5 (cinco) unidades de conta.
Lisboa, 10 de Julho de 1996
Alberto Tavares da Costa
Antero Alves Monteiro Diniz
Vítor Nunes de Almeida
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos de declaração de voto junta).
Votei vencida por me parecer excessiva e desproporcionada a vinculação ao formalismo processual dos pressupostos da admissibilidade do recurso de constitucionalidade, onde o reclamante pudesse plausivelmente contar com uma interpretação jurídica favorável, em nome de uma previsibilidade interpretativa do texto legal - da sua ratio legis - configurada no caso concreto.
Apesar de a exegese jurisprudencial dominante sobre o preceito sub judicio, o nº 1 do artigo 76º da LPTA, conduzir à necessidade de prova pelo requerente de um prejuízo de difícil reparação, uma tal jurisprudência, formulada para uma multiplicidade de casos situados em outros contextos sistemáticos, não torna automaticamente previsível a sua aplicação num contexto especificamente garantístico como é o da tutela do direito de asilo. A norma do caso é, na realidade, a que resulta da conjugação das normas que regulam o direito de asilo com o artigo 76º, nº 1, da LPTA, entendido como instrumento processual de efectivação do direito de asilo - e essa norma não torna irremediavelmente previsível a interpretação feita pelo STA, à luz de uma perspectiva de confiança na interpretação mais plausível e garantisticamente adequada das normas jurídicas. Nunca será, assim, previsível, em face do princípio da confiança, uma interpretação anti-garantística (por exemplo).
Por outro lado, onde a interpretação realizada, mesmo que previsível segundo índices formais, não for acautelada pela suscitação da questão da inconstitucionalidade, e tal interpretação for manifestamente inconstitucional, sempre se justificará não obstar ao julgamento de uma notória inconstitucionalidade pela submissão, estritamente formal, aos pressupostos processuais de admissibilidade do recurso.
Armindo Ribeiro Mendes
Maria da Assunção Esteves (vencida nos termos de declaração de voto junta)
Votei vencida. Nos termos, que reitero, do projecto que apresentei como primeira relatora.
1. O recurso de constitucionalidade foi delimitado no artigo
76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos em conexão com os artigos
18º, nº 1, e 20º, nº 5, da Lei nº 70/93, de 29 de Setembro (Lei do Asilo). Na reclamação, diz-se que a interpretação das normas, no seu sentido e na sua relação de sistema, operada pelo acórdão recorrido do Supremo Tribunal Administrativo é surpreendente, por isso que a questão de constitucionalidade só foi suscitada no momento do recurso!
De outro lado, a decisão por que a Conferência do STA manteve o despacho que não admitiu o recurso funda-se numa ideia de previsibilidade daquela mesma interpretação, com o argumento central dirigido ao problema da prova do nexo de causalidade entre a denegação do asilo e a superveniência de prejuízos irreparáveis para o requerente. Esse problema, segundo a mesma decisão, sempre teve o mesmo tratamento na jurisprudência corrente do Supremo Tribunal Administrativo.
2. O grau de previsibilidade da interpretação plasmada no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo não deve, porém, analisar-se na perspectiva unilinear da jurisprudência existente em torno da interpretação do artigo 76º, nº 1, alínea a), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos. A configuração do caso deve também ser convocada para a análise do problema e, depois, o artigo 76º, nº 1, não existe isolado no sistema nem a sua interpretação se pode furtar ao postulado da unidade da ordem jurídica.
Deve perguntar-se então se, na perspectiva do acesso ao Tribunal Constitucional, ou seja, na perspectiva do preenchimento dos pressupostos do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
é possível afirmar aqui uma previsibilidade da interpretação concreta do acórdão recorrido, de tal modo que ao interessado fosse exigível advertir para ela com uma arguição de inconstitucionalidade.
3. Da relação entre o artigo 76º, nº 1, alínea a), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, a natureza da matéria controvertida e as normas legais que a regulam [Lei do Asilo] resulta que ao recurso do acto administrativo que denega o asilo corresponde a suspensão da eficácia do mesmo acto. Se assim não fosse, não fariam sentido e não teriam utilidade as normas conjugadas do artigo 17º, nº 2 da Lei do Asilo ['No caso de decisão negativa deve mencionar-se na notificação o direito de recurso no prazo de 20 dias para o Supremo Tribunal Administrativo'] e do artigo 18º, nº 1 ['No caso de decisão final de recusa de asilo, o requerente pode permanecer em território nacional durante um período transitório, até 30 dias, para o efeito de procurar asilo noutro país ou regressar àquele que já lho tinha concedido'].
De essas normas se seguirem imediatamente no sistema da lei, resulta que a 'decisão final' a que se refere o segundo preceito só pode significar a 'decisão final dos tribunais'. Se a lei fixa um período transitório de permanência para o momento posterior a essa decisão, não pode querer afirmar, ao mesmo tempo, a impossibilidade de permanecer antes de proferida essa mesma decisão! Isso constituiria uma contradição lógica e mesmo axiológica.
E se bem que neste processo se não veja claramente se é na verdade de processo normal [Lei do Asilo, Capítulo III, Secção I] ou antes de processo acelerado que se trata [Lei do Asilo, Capítulo III, Secção II], em ambos os casos porém se impõe a mesma inelutabilidade da suspensão. Numa interpretação constitucionalmente adequada da lei, o processo acelerado vale no plano da ordem administrativa, não no plano das garantias dos direitos individuais.
Perante o caso impendia, pois, um bloco de legalidade - o que é dado pela conjunção do artigo 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e a Lei nº 70/93, de 29 de Setembro - que modula a providência da suspensão da eficácia como uma necessidade jurídica da garantia de recurso do acto de denegação do asilo. E de ser assim, perde oportunidade o discurso sobre a prova da causalidade adequada dos danos prováveis.
Ora, se no sistema jurídico a Lei do Asilo vem articular-se com o artigo 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, modulando uma pretensão regulativa que afasta o discurso da prova [porventura porque a admite pelo menos como provisoriamente evidente] a interpretação que exige essa mesma prova é surpreendente.
Por isso que não era exigível ao recorrente contar com e prevenir o chamamento de uma jurisprudência corrente do Supremo Tribunal Administrativo cuja temática é justamente a da prova no quadro do artigo 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
Estamos, pois, perante uma daquelas situações excepcionais em que, mesmo suscitada a questão de constitucionalidade em momento posterior ao do acórdão recorrido, o interessado ainda pode aceder ao Tribunal Constitucional.
A tese vencedora assenta no mesmo pressuposto que conduziu à decisão surpreendente do Supremo Tribunal Administrativo: o de que o artigo 76º da L.P.T.A. é norma fechada e não aberta. Nos dois lugares, a interpretação enclausura-se numa relação entre norma e problema e não entre sistema e problema.
Luís Nunes de Almeida