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Proc. nº 625/95
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., juiz desembargador a desempenhar funções no Tribunal
---------- ------------, foi pronunciado pela prática do crime previsto e punido pelo art. 260º do Código Penal de 1982, através de despacho de um juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça designado como instrutor, proferido em 22 de Junho de 1995, após debate instrutório. Segundo consta da respectiva acta, resultara indiciariamente do inquérito e da instrução que o magistrado arguido detinha em seu poder, em 18 de Julho de 1991, uma pistola de sua propriedade de calibre 9 mm, marca ------, com o nº --------------, estriada, arma semi-automática com carregador para ----- munições, bem como ------------ munições para esse calibre. O magistrado arguido detinha essa arma na referida data, quando se encontrava no interior de um bar na cidade --------------.
Notificado deste despacho, dele veio interpor recurso de constitucionalidade, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, indicando como objecto do recurso as questões de constitucionalidade do art. 260º do Código Penal, na interpretação efectuada pela acusação, e do art. 73º, nº 1, alínea b), aplicável por força da alínea a) do art. 71º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei nº 21/85, de 30 de Julho), por violação dos princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade, dos direitos adquiridos e do nº 2 do art. 205º da Constituição. Indicou ter suscitado essas questões no requerimento de abertura da instrução e na exposição anexa ao requerimento sobre justo impedimento (a fls. 453-454 dos autos).
Este recurso foi admitido por despacho de fls. 455, proferido em 20 de Setembro de 1995.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
O recorrente apresentou alegações em que formulou dezassete conclusões, pronunciando-se no sentido de que deviam ser julgados inconstitucionais o art.
260º do Código Penal de 1982, na medida em que considera que os magistrados judiciais não têm direito a uso e porte de arma de qualquer calibre e que estão obrigados a proceder ao manifesto e registo dessas armas, bem como os arts. 73º, nº 1, alínea b), e 71º, alínea a), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, pelo efeito automático e desproporcionado das respectivas medidas.
Pode ler-se nessas conclusões:
'A- Os Magistrados Judiciais têm direito ao uso e porte de arma de qualquer calibre.
B- Não são obrigados a proceder ao manifesto e registo dessas armas, a não ser quando abandonem o exercício das suas funções.
C- O Código Penal de 1982 não revogou as disposições existentes à [data da] sua entrada em vigor, sobre o uso e detenção de arma por parte de Magistrados, tendo o próprio art. 17º/1 da Lei 21/85 mantido, nas suas linhas gerais, os direitos especiais atribuídos aos Magistrados.
D- Para além de se poder entender que tais direitos especiais conferiam um
«direito adquirido» por parte do Recorrente,
E- ou, noutra perspectiva, uma emanação do «direito à segurança».
F- Seguramente tais direitos especiais deverão ser configurados como uma emanação do estatuto constitucional dos Magistrados, enquanto titulares de
órgãos de soberania, sendo o órgão máximo repressor da violação da legalidade democrática.
G- O princípio da igualdade exige que se tratem igualmente situações semelhantes, e diferentemente situações diversas,
H- pelo que não viola tal princípio a concessão de direitos especiais atribuídos aos Magistrados.
I- Tal princípio de igualdade seria, sim, violado, se, no caso dos autos, os Magistrados fossem equiparados ao cidadão comum.
J- Tais direitos especiais são a emanação de uma prorrogativa do «poder» dos Magistrados, assim como do especial risco e responsabilidade derivados das suas funções constitucionais (julgam em nome do Povo).
K- SEMPRE, no nosso ordenamento jurídico-constitucional (nas suas mais diferentes expressões), foi reconhecido aos Magistrados o uso de direitos especiais em relação ao comum dos cidadãos.
L- O próprio princípio de igualdade seria violado se se reconhecessem menos direitos aos Magistrados, do que em relação a funcionários da administração pública e a outros titulares de órgãos de soberania.
M- Também foi violado o princípio da proporcionalidade, na medida em que o Magistrado, como titular de um órgão de soberania, estaria limitado de uma maneira excessiva num direito próprio inerente à sua função.
O- Viola ainda o princípio da proporcionalidade a medida de suspensão que se aplicaria ao Recorrente, suspensão essa que duraria de um modo arbitrário e incerto.
P- A formulação da pronúncia teria ainda o efeito automático do tempo da suspensão de funções do Recorrente ser-lhe descontado para efeito de antiguidade, envolvendo com isso a perda de direitos profissionais.
Q- Sendo uma situação provisória, torna-se-ia definitiva por efeito de uma eventual condenação, cerceando os direitos de defesa do Arguido, ao inibi-lo de recorrer sob pena de agravar o desconto de tempo para efeitos de antiguidade!
R- Foram violadas as disposições dos arts. 260º do C. Penal, arts. 1º e segs. do Decreto-Lei nº 37.313, de 21 - Fevereiro - 1949, art. 6º do Dec-Lei nº
400/82, de 23 de Setembro, arts. 13º, 16º, 17º, 18º, 27º, 205º e 217º da Const. Política e mais disposições legais aplicáveis'. (a fls. 472 e 473 dos autos)
O representante do Ministério Público, por seu turno, suscitou a questão prévia de não conhecimento do recurso por considerar que o recorrente não tinha impugnado 'perante as secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça - competentes para a prolação da decisão instrutória e para a pronúncia ou não pronúncia do arguido - a decisão proferida pelo juiz que, no processo exercia as funções de instrutor', razão por que não se mostravam esgotados os recursos ordinários possíveis, faltando um dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto. Considerou ainda nessas alegações que não teria sido suscitada com suficiente clareza durante o processo a questão de inconstitucionalidade do art. 260º do Código Penal de 1982 e que não tinham sido aplicadas pela decisão recorrida as normas dos arts. 73º, nº 1, e 71º, alínea a), do Estatuto dos Magistrados Judiciais. Para a hipótese de o Tribunal conhecer da questão de constitucionalidade do art. 260º do Código Penal, sustentou-se nestas alegações que a questão de constitucionalidade era manifestamente improcedente, por não ter sentido 'pretender fundar um direito dos magistrados à posse e detenção, sem registo ou manifesto, de quaisquer tipos de armas de fogo em «direitos adquiridos» com base em legislação eventualmente revogada numa «emanação do estatuto constitucional dos magistrados» ou numa violação do «princípio de igualdade»' (a fls. 480-481).
O recorrente pronunciou-se sobre as questões prévias suscitadas pelo Ministério Público.
3. Através do Acórdão nº 363/96, proferido em 6 de Março de 1996
(a fls. 490 a 500 dos autos), o Tribunal Constitucional decidiu desatender as questões prévias suscitadas, salvo a que se referia à exclusão do objecto do recurso das normas dos arts. 73º, nº 1, e 71º, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, decidindo que o processo devia 'prosseguir para julgamento do objecto do recurso, que é o da questão de constitucionalidade do art. 260º do Código Penal de 1982, na interpretação acolhida no despacho recorrido'. Esta decisão transitou em julgado.
4. Foram corridos os vistos legais.
Importa, por isso, conhecer da questão de constitucionalidade suscitada.
II
5. Dispunha o art. 260º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, norma que foi aplicada nos presentes autos e relativamente à qual foi suscitada a questão da sua inconstitucionalidade no segmento aplicável ao caso sub judicio:
' A importação, fabrico, guarda, compra, venda ou cedência por qualquer título, bem como o transporte, detenção, uso e porte de armas proibidas, engenhos ou materiais explosivos ou capazes de produzir explosões nucleares, radioactivas ou próprios para a fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes, fora das condições legais ou em contrário das prescrições das autoridades competentes, serão punidos com prisão até 3 anos ou multa de 100 a 200 dias'.
No despacho recorrido, o ora recorrente foi pronunciado pelo facto de deter, na data e local indicados na decisão instrutória, uma pistola de sua propriedade de calibre 9 mm, marca ----------- com o nº ---------------- estriada, arma semi-automática, e um carregador com capacidade para ----------- munições bem como --------------- munições do mesmo calibre, invocando-se ainda que tal arma não se encontrava manifestada, nem registada (a fls. 449).
A questão de constitucionalidade a discutir nos autos refere-se apenas ao segmento da norma do art. 260º do Código Penal aplicável ao caso sub judicio:
' A ... detenção, uso e porte de armas proibidas ... fora das condições legais
... serão punidos com prisão até 3 anos ou multa de 100 a 200 dias'.
Não é a norma penal questionada que define quais as armas proibidas. Embora com discordância do ora recorrente, o despacho de pronúncia considerou implicitamente que a detenção, uso e porte de uma pistola de calibre 9 mm marca
---------------- era detenção, uso e porte de arma proibida, por não estar manifestada e por não ser arma de defesa, isto por aplicação do art. 3º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 207-A/75, de 17 de Abril (sobre a vigência desta norma, vejam-se Manuel Oliveira Leal Henriques e Manuel J. Carvalho Sinas Santos, O Código Penal de 1982 - referências doutrinárias, indicações legislativas e resenha jurisprudencial, vol. 3º, Lisboa, 1986, págs. 272 e seguintes; Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 7ª ed., Coimbra, 1994, págs.
586 e seguintes; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 1989, onde foi tirado assento, in Boletim do Ministério de Justiça, nº 386, págs. 103 e seguintes). A igual conclusão conduziria de resto a aplicação do disposto no nº 2 do art. 1º do Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei nº 37.313, de 21 de Fevereiro de 1949, visto estar em causa a detenção de uma arma de guerra (art.
7º, § único, desse diploma e art. 10º).
Cabe ainda ter presente, no contexto de delimitação do objecto do pedido, o disposto no art. 17º, nº 1, alínea b), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, Estatuto dos Magistrados Judiciais, que estabelece que são, entre outros,
'direitos especiais' dos magistrados os de 'uso, porte e manifesto gratuito de armas de defesa e a aquisição das respectivas munições, independentemente de licença ou participação, podendo requisitá-las aos serviços do Ministério da Justiça, através do Conselho Superior da Magistratura'.
6. Importa ver quais as razões por que o recorrente sustenta que a referida norma é inconstitucional, na interpretação perfilhada no despacho recorrido e na medida em que se considera que a mesma é aplicável a magistrados judiciais no activo.
Segundo o recorrente, importará atentar na sucessão de regimes jurídicos que regularam a detenção, uso e porte de armas pelos magistrados judiciais.
7. Assim, no domínio da vigência do Decreto-Lei nº 37.313, de 21 de Fevereiro, diploma que aprovou o Regulamento respeitante ao Fabrico, Importação, Comércio, Detenção, Manifesto, Uso e Porte de Armas e Suas Munições, eram consideradas armas de defesa para os 'magistrados judiciais e do Ministério Público', quando sua propriedade particular, 'pistolas automáticas de calibre
7,65 mm ou inferiores ... cujo cano não seja ... superior a 10 centímetros ou 4 polegadas' (art. 1º, nº 2, do Referido Regulamento). Este diploma, e no que toca aos magistrados judiciais, exigia que estes últimos manifestassem as suas armas de defesa e obtivessem licença de uso e porte concedido pelas autoridades policiais (art. 48º do mesmo Regulamento).
A sujeição dos magistrados judiciais às obrigações de manifestar as suas armas de defesa e de obter licença administrativa para o seu uso e porte seria
'degradante' - quando comparada com a situação do Presidente da República, dos Membros do Governo e dos Oficiais do activo do Exército ou da Armada, ou na situação de reserva em serviço efectivo, entidades que podiam usar livremente pistolas de qualquer natureza, fosse qual fosse o seu calibre ou modelo - e teria sido sucessivamente melhorada, através de portarias que dispensavam autorizações e controlos administrativos, até que o Decreto-Lei nº 44.278, de 14 de Abril de 1962, diploma que aprovou o Estatuto Judiciário de 1962, permitiu aos mesmos magistrados que usassem 'armas de qualquer natureza, independentemente de licença e participação' (art. 114º, nº 1, alínea c)).
8. Este direito adquirido em 1962 nunca teria sido retirado aos magistrados judiciais, na opinião do recorrente, não obstante o teor literal do Decreto-Lei nº 207-A/75, de 17 de Abril (cfr. art. 1º, nºs 3 e 4; veja-se ainda o art. 3º do Decreto-Lei nº 328/76, de 6 de Maio), uma vez que aqueles estavam desde 1962 equiparados aos titulares de órgãos políticos e entidades contempladas no art. 1º, nº 1, do Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei nº
37.313, que não teria sido revogado por aquele Decreto-Lei nº 207-A/75. A situação das armas da 1ª categoria contempladas no art. 47º do Regulamento de
1949, sujeitas a manifesto e registo facultativos, era a aplicável aos magistrados judiciais. Os militares [entenda-se, do Conselho da Revolução, visto provirem desse órgão de soberania os Decretos-Leis nºs 207-A/75, de 17 de Abril,
631/75, de 19 de Novembro, e 328/76, de 6 de Maio] 'deram-se conta disso mais tarde, mas em qualquer caso os Magistrados mantiveram a sua regalia especial que não podia, obviamente, ser revogada por um decreto de carácter geral' (a fls.
418, nº 11 do requerimento a pedir a abertura de instrução). Isto é, o nº 1 do art. 3º do Decreto-Lei nº 328/76, embora impusesse às 'entidades isentas de autorização ou licença de uso e porte de arma' a obrigação de manifestar as armas de sua propriedade, não era aplicável aos magistrados judiciais dados os seus direitos adquiridos.
9. Sempre segundo o recorrente, o Estatuto dos Magistrados Judiciais de 1977 (art. 19º, nº 1, alínea b), da Lei nº 85/77, de 13 de Dezembro) ao consagrar, como regalia dos magistrados judiciais, 'o uso, porte e manifesto gratuito de arma de defesa, independentemente de licença ou participação' continuava a referir-se a armas de defesa tais como definidas no nº 1 do art. 1º do Regulamento de 1949, incluindo mesmo armas de guerra.
A revogação do art. 5º do Decreto-Lei nº 207-A/75 pelo art. 6º, nº 2, do diploma preambular do Código Penal de 1982 (Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro) implicaria a revogação de sistema do art. 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº
328/76, o que tornou inaplicáveis aos magistrados judiciais quaisquer outras disposições do 'sobrevivente Decreto-Lei nº 207-A/75'. O art. 260º do Código Penal só seria aplicável a magistrados judiciais 'relativamente às armas absolutamente proibidas', tendo desaparecido 'a única condicionante legal da punibilidade acintosamente introduzida pelos militares', pelo que aqueles não estariam sujeitos a 'quaisquer prescrições das outras autoridades' (a fls. 419 dos autos).
10. O disposto na alínea b) do nº 1 do art. 17º da Lei nº 21/85, de
30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais) ao referir-se ao 'manifesto gratuito' apenas poderia ter o significado de 'manutenção de gratuitidade do manifesto, agora facultativo', na opinião do recorrente.
11. Por outro lado, não seria aplicável ao caso vertente a doutrina do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 1989, uma vez que aí se tinha em vista a situação de 'particulares'. O Decreto-Lei nº 399/93, ao regular como ilícito de mera ordenação social as transgressões ao Decreto-Lei nº
37.313, pareceria dar razão aos votos de vencido do acórdão onde foi proferido o referido assento.
De seguida, a posição do recorrente é precisada no seguinte passo de um requerimento junto aos autos:
' Mas a razão principal da inaplicabilidade do assento aos Magistrados é que o manifesto para estes é um mero acto formal, uma mera comunicação da qual se encarregava o oficial porteiro ou o comandante da esquadra policial mais próxima. Ora, nunca uma mera negligência em proceder a uma comunicação gratuita pode gerar um crime doloso. Enquanto com os particulares não se passa o mesmo: há que ter-se licença, obter informação favorável, juntar uma série de papelada, conseguir a autorização depois de um apertado controlo administrativo e policial. No caso do Magistrado, quando ele não faz o manifesto é de presumir a mera negligência; no caso do particular, é de presumir, pelo contrário, que não está em condição de o fazer e, por isso, anda clandestinamente. Considerar, para os Magistrados, crime a falta de manifesto ofenderia o princípio da proporcionalidade aflorado no art. 18º, nº 2 da C. R.'. (a fls. 421)
12. O mesmo recorrente, noutra peça processual, e ainda a propósito do art. 260º do Código Penal, veio recensear vários diplomas especiais que regulavam a detenção, uso e porte de armas por membros de corporações policiais
(art. 112º do Decreto-Lei nº 151/85, de 9 de Maio, quanto à PSP; art. 6º, nº 18, do Decreto-Lei nº 465/83, de 31 de Dezembro, quanto à GNR; art. 4º, nº 19, do Decreto-Lei nº 374/85, de 20 de Setembro, quanto à Guarda Fiscal) e por oficiais de justiça (art. 87º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro), procurando sustentar que seria absurdo interpretar a noção de 'arma de defesa' usada no art. 17º, nº 1, alínea b), do Estatuto dos Magistrados Judiciais de 1985 à luz do Decreto-Lei nº 207-A/75, sob pena de se considerar que os magistrados judiciais e do Ministério Público estariam em pior situação do que os oficiais de justiça e os telefonistas dos tribunais, só podendo usar armas de calibre inferior a 6,35 mm (art. 3º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº
207-A/75), já que para as de calibre até 7,65 mm necessitariam de autorização da PSP. Nessa medida, esclarecia-se que não tinha atentado devidamente o Magistrado ora recorrente, no requerimento de abertura de instrução, no disposto no art.
3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 328/76, supondo erroneamente que este teria sido aplicável aos magistrados judiciais (a fls. 441 dos autos).
13. Assim sendo, sustenta o recorrente que os sucessivos Estatutos dos Magistrados Judiciais de 1977 e de 1985 não podiam cercear os direitos adquiridos pelos juizes, protegidos pelos arts. 16º a 18º da Constituição, não havendo motivos ponderosos para o fazerem. De outro modo, seria inconstitucional interpretação adversa dessas normas, olvidando que os juizes são titulares de
órgãos de soberania e o privilégio que lhes é atribuído é funcional e não pessoal, nem podendo pedir licenças a entidades policiais, dependentes do Executivo.
14. Não cabe ao Tribunal Constitucional exercer censura sobre o despacho recorrido, no que toca à determinação do direito aplicável para onde remete o art. 260º do Código Penal relativamente à delimitação do conceito de
'armas proibidas ... fora das condições legais ou em contrário das prescrições das autoridades competentes', salvo se residir aí a questão de constitucionalidade.
O quadro normativo levado em conta pelo despacho recorrido, ao menos de forma implícita, ao interpretar o art. 260º do Código Penal, incluiu:
- a alínea b) do nº 1 do art. 17º do Estatuto de Magistrados Judiciais de 1985, que confere aos magistrados o direito especial de 'uso, porte e manifesto gratuito de armas de defesa e a aquisição das respectivas munições, independentemente de licença ou participação...';
- as normas que consideram que uma pistola de calibre 9 mm não é uma arma de defesa mas uma arma de guerra, cujo uso é, em princípio, proibido (arts. 1º, alínea a) e b), e 2º, nº 1 do Decreto-Lei nº 207-A/75, de 17 de Abril, e art.
3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 328/76, de 6 de Maio; a mesma solução parece resultar, de resto, dos arts. 1º, 2º, 7º e 10º do Regulamento de 1949, aprovado pelo Decreto-Lei nº 37.313, de 21 de Fevereiro de 1949, lidos à luz da alínea b) do nº 1 do art. 17º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, se se sustentar que tais normativos estão ainda em vigor).
15. Ora, o juízo feito no despacho instrutório no sentido de que o magistrado judicial que detém em seu poder uma pistola de calibre 9 mm (arma de guerra), estriada, não manifestada, e munições para a mesma arma, comete o crime previsto e punido pelo art. 260º do Código Penal de 1982 não está suportado numa interpretação da norma incriminatória contrária à Constituição.
Os direitos especiais ou regalias reconhecidos aos magistrados judiciais pela alínea b) do nº 1 do art. 17º deste Estatuto são direitos legais, conformados pelo legislador em função de critérios de política legislativa, insusceptíveis de censura no plano de constitucionalidade. De facto, o legislador dispensou os magistrados judiciais, atentos os riscos inerentes ao cargo que desempenham e à avaliação por aquele feita desses riscos, de requererem licença de porte de arma ou de apresentação de participação do uso de armas de defesa, embora exigindo que manifestassem a titularidade dessas armas de defesa (o recorrente sustenta que se trata de um manifesto facultativo, mas não foi esse o entendimento da referida norma perfilhado pelo despacho recorrido, questão que não pode ser sindicada pelo Tribunal Constitucional). Tal solução não é desproporcionada, atentas as razões que podem aduzir-se para permitir que os magistrados judiciais estejam dispensados de licença de uso e porte de arma, solução que vigora desde 1962 entre nós.
16. Como põe em relevo a entidade recorrida nas suas alegações, não se vê qual o sentido,'- vistas as coisas numa perspectiva jurídico-constitucional - [de] pretender fundar um direito dos magistrados à posse e detenção, sem registo ou manifesto, de quaisquer tipos de armas de fogo
«em direitos adquiridos» com base em legislação eventualmente revogada, numa
«emanação do estatuto constitucional dos magistrados» ou numa violação do
«princípio da igualdade»' (a fls. 480 e 481 doa autos).
De facto, não viola o princípio da igualdade, nem o princípio da proporcionalidade, a existência de regimes diversificados de uso e porte de arma relativamente a militares, agentes dos corpos de polícia (GNR e PSP) e oficiais de justiça, por referência ao regime consagrado para os magistrados judiciais e do Ministério Público, atentas as funções diversas que cabem aos primeiros, por um lado, e aos magistrados, por outro lado, e a avaliação feita pelo legislador da provável familiaridade com uso de armas de fogo e do grau de risco das respectivas funções. Pode compreender-se mais facilmente que os militares e os agentes das polícias (em grande parte, pertencentes a corpos militarizados) possam deter e usar armas de guerra, atendendo à sua formação profissional e aos riscos de ataque à sua integridade física, e que os oficiais de justiça e os magistrados judiciais só possam usar armas de defesa sujeitas a manifesto gratuito (vejam-se os arts. 87º, nº 1, alínea d), do Decreto-Lei nº 367/87, de
11 de Dezembro, e 17º nº 1, alínea b), do Estatuto dos Magistrados Judiciais). Acresce ainda que a circunstância de os juízes serem titulares de órgãos de soberania, os tribunais, não implica que os seus direitos especiais tenham de ser automaticamente idênticos aos outros direitos especiais conferidos a outros
órgãos de soberania, nem tão-pouco que, quanto a eles, valha uma qualquer lógica de 'aquisição de direitos', insusceptível de ser modificada no futuro, quanto é certo que as limitações vigentes se baseiam em manifestas razões de segurança ou de interesse público.
Não se vê, por isso, qual o impedimento constitucional relativamente a uma futura opção legislativa de eliminar tal 'direito especial' quanto a membros dos órgãos de soberania, sendo certo que não haverá que falar aqui de 'direitos adquiridos' a uma regalia tradicional.
17. Acrescente-se que o reconhecimento do direito de uso e porte de armas de defesa constante do Estatuto dos Magistrados Judiciais tem indiscutivelmente a ver com o direito à segurança, constitucionalmente reconhecido, que não se vê como possa ser violado pelos condicionamentos de que as armas tenham um limite máximo de calibre e que tenham de ser gratuitamente manifestadas.
18. Mesmo admitindo que, no domínio do Estatuto Judiciário de 1962, os magistrados judiciais tinham o direito ao uso de armas de qualquer calibre, entende-se que, como sustenta o Exmº. Representante do Ministério Público nas suas alegações, 'não pode obviamente invocar-se, numa situação deste tipo, a protecção da confiança, fundada no princípio do Estado de Direito democrático, já que é inviável pretender construir o «direito» ao uso e detenção de armas de qualquer calibre, sem registo ou manifesto, como fundando uma fundada e legítima expectativa, que será arbitrariamente defraudada no momento em que razões ditadas pelo interesse público levassem o legislador a restringir tal «direito»
- limitando o calibre das armas susceptíveis de detenção, ou impondo o seu registo ou manifesto...' (a fls. 481 dos autos).
19. Não podem, assim, proceder as conclusões do recorrente.
III
20. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso.
Lisboa, 4 de Dezembro de 1996 Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida