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Procº nº 629/96.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
Nos presentes autos vindos do Tribunal da Relação do Porto e em que figura como recorrente o Ministério Público, tendo em conta a exposição de fls. 101 a 109 lavrada pelo relator, que aqui se dá por integralmente reproduzida e com a qual, no essencial, se concorda, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Lisboa, 20 de Novembro de 1996 Bravo Serra Messias Bento Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida
EXPOSIÇÃO PRÉVIA
Procº nº 629/96.
2ª Secção.
1. Por sentença proferida em 31 de Outubro de 1994 no 2º Juízo do Tribunal de comarca de Penafiel, foi A. condenado, pela prática de um crime de condução sob influência do álcool, previsto e punido pelo nº 1 do artº
2º e pelos números 1 e 2, alínea a), do artº 4º, um e outro do Decreto--Lei nº
124/90, de 14 de Abril, na pena de 80 dias de multa à taxa de Esc. 300$00 por dia, a que correspondem, em alternativa, 53 dias de prisão, e na pena de inibição da faculdade de conduzir pelo período de 6 meses.
Não se conformando com essa condenação, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 28 de Junho de 1995, negou provimento ao recurso.
Dessa decisão recorreu novamente o arguido para o Tribunal Constitucional, defendendo, inter alia, a inconstitucionalidade da norma constante do artº 135º do Código da Estrada.
Este Tribunal, por intermédio do seu Acórdão nº 146/96
(fls. 70 a 86 destes autos), após concluir não padecer a norma do citado artº
135º de inconstitucionalidade, negou provimento ao recurso.
Remetido o processo ao Tribunal da Relação do Porto, foi o mesmo continuado com «vista» ao representante do Ministério Público que aí proferiu a seguinte promoção:
'Vista a TAS detectada - 1,34 gr/l;
Vista a pena aplicada ao arguido e confirmada pelo acordão de f. 32 e segs - 80 dias de multa à taxa de 300.00/dia ou, em alternativa, 53 dias de prisão e inibição da faculdade de conduzir por 6 meses;
Vista a moldura penal abstracta considerada na aplicação daquelas penas principal e acessória - as previstas nos Artºs 2º nº 1 (prisão até um ano ou multa até 200 dias, para a pena principal) e 4º nºs 1 e 2 - a) (inibição de conduzir de 6 meses a 5 anos, para a sanção acessória), ambos do DL 124/90, de
14/4;
Vistas as circunstâncias concretas do caso relevantes para a determinação da medida concreta da pena;
Vistas as penas agora cominadas pelos Artºs 292º (prisão até um ano ou multa até 120 dias) e 69º nº 1 (proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre 1 mês e 1 ano) do CP95,
entendo que, à sombra do novo regime, a pena de multa deve ser reduzida para medida não superior a 50 dias e que a proibição de conduzir não deve ultrapassar os 3 meses.
O novo regime será, assim, concretamente mais favorável e, por isso, dele deverá beneficiar'.
A Relação do Porto, por acórdão de 8 de Maio de 1996, manteve 'a condenação do arguido nos precisos termos em que foi proferida no Tribunal Judicial de Penafiel e confirmada' pelo anterior acórdão, também da Relação do Porto, de 28 de Junho de 1995, o que fez, em síntese, por entender que o recurso para o Tribunal Constitucional daquele aresto de 28 de Junho de
1985 unicamente visou a apreciação da constitucionalidade ou não constitucionalidade do artº 135º do Código da Estrada, pelo que a decisão tomada por aquele órgão neste processo, e que no mesmo fez caso julgado quanto à questão de inconstitucionalidade, implica, nos termos do nº 4 do artº 80º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, que se deva considerar transitada aquele impugnado acórdão, pois que, no caso, ex vi do disposto na alínea d) do nº 1 do artº 400º do Código de Processo Penal, se encontram esgotados os recursos ordinários.
Notificado deste acórdão, veio o aludido representante do Ministério Público apresentar, fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82,requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, escrevendo no mesmo, a dado passo:-
'..................................................
4. Embora nessa promoção [referia-se à promoção de que acima já se fez transcrição] não tivesse expressamente referido a norma jurídica que permitia/impunha a eventual «revisão» do acórdão de fls. 32 a 37, é óbvio que o seu fundamento de direito assentou necessariamente na doutrina do Artº 2º nº 4 do CP.
5.A Relação, pelo acórdão agora impugnado, considerando que «não sendo já possível recurso ordinário do acórdão proferido de fls. 32 a 37 e tendo já transitado em julgado a decisão do Tribunal Constitucional..., transitou também já em julgado tal decisão», concluiu ter de manter-se «a condenação do arguido nos precisos termos em que foi proferida no Tribunal Judicial de Penafiel e confirmada por esta Relação no aludido acórdão».
6. É evidente que a decisão tem a estribá-la o citado Artº 2º nº 4 do CP, apesar de também aqui não ter sido expressamente invocado.
7. Mas essa norma colide frontalmente com a doutrina do Artº 29º nº 4, parte final da CRP que não prevê como limite à aplicação retroactiva da lei penal mais favorável o caso julgado (...).
8. De qualquer modo, ainda que se entenda que o limite do caso julgado não é inconstitucional, nem assim a interpretação que daquele preceito da lei penal substantiva faz o acórdão recorrido deixa de conflituar com a Lei Fundamental: O Artº 29º nº 4 estabelece o direito do arguido à aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável, direito que nasce com a própria entrada em vigor da nova lei; na altura em que o «novo» CP entrou em vigor o acórdão de fls. 32 a 37 ainda não tinha transitado, em virtude do recurso interposto para o Tribunal Constitucional; aceitar, como aceita o acórdão recorrido que, por razões que se prendem com a própria existência e competência do Tribunal Constitucional, o arguido perdeu esse direito, só porque a decisão, entretanto e em consequência da jurisdição específica do Tribunal Constitucional, transitou em julgado, é violar não só o Artº 29º como, de certo, os Artºs 13º e 18º da CRP.
9. A questão da inconstitucionalidade arguida só agora pôde ser suscitada. Por isso que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal Constitucional (...) há-de considerar-se a questão «suscitada durante o processo».
..................................................'
Por despacho do Desembargador Relator da Relação do Porto foi admitido o recurso.
Não obstante, e porque esse despacho não vincula este Tribunal (cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82), entende-se que o recurso não deveria ter sido admitido, e daí a feitura, suportada no nº 1 do artº 78º-A do mesmo diploma, da presente exposição, na qual se propugna por se não dever tomar conhecimento do vertente recurso.
2. Na verdade, situamo-nos perante um recurso estribado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da indicada Lei, pretendendo-se, com o mesmo (e isto já com uma interpretação de certa forma benévola do que é escrito no requerimento de interposição do recurso, por isso que nele se consigna, a final, que 'O PRESENTE RECURSO VEM INTERPOSTO DO ACÓRDÃO DE FLS. 90 POR NELE SE TER APLICADO O ARTº 2º Nº 4 DO CÓDIGO PENAL, COM VIOLAÇÃO DOS ARTºS 29º Nº 4, 13 e
18º DA CRP', o que até poderia, num rigorismo formal, apontar que o que é pretendido questionar é o aresto da Relação ao aplicar determinado normativo e não este em si) que seja analisada a eventual desconformidade com a Lei Fundamental - designadamente por ofensa do seu artigo 29º, nº 4 - de uma dada interpretação, seguida na decisão pretendida censurar, da norma ínsita no nº 4 do artº 2º do Código Penal, interpretação essa segundo a qual a regra que da mesma deflui, ou seja, da regra de harmonia com a qual, havendo disposições gerais vigentes no momento da prática do facto punível diferentes das estabelecidas em leis posteriores, deverá ao arguido ser aplicado o regime que concretamente se mostre ser mais favorável, não deve ser seguida se a decisão aplicativa da punição à sombra da lei penal anterior já tiver transitado ou da mesma não houver possibilidade legal de recurso.
Se assim é, então, desde logo e em princípio, face à espécie de recurso perante o qual nos situamos, impunha-se ao ora recorrente que, antecedentemente à decisão prolatada na Relação do Porto, suscitasse uma tal questão.
É que, remetidos que foram os autos ao Tribunal da Relação do Porto, foram eles imediatamente continuados com «vista» ao Ministério Público, que nos mesmos proferiu a promoção que acima se deixou transcrita.
Porque o ora recorrente não poderia deixar de conhecer o que se encontra prescrito no nº 4 do artº 80º da Lei nº 28/82 e porque era do seu conhecimento que o Tribunal Constitucional tinha negado provimento ao recurso do acórdão previamente lavrado na Relação do Porto, caso o mesmo entendesse que essas circunstâncias não obstariam que, mercê do disposto no nº 4 do artº 2º do Código Penal, aquela Relação viesse a aplicar ao arguido uma diferente punição em face de um regime concretamente mais favorável adveniente da entrada em vigor do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, sob pena de, assim se não entendendo, tal normativo se perspectivar como colidente com a Lei Básica, então teria, na falada promoção, de equacionar uma tal questão.
O que não fez.
E nem se diga que foi surpreendido, neste particular, com a interpretação normativa conferida no aresto agora intentado impugnar, que
(suposto que acolheu a interpretação ora questionada no requerimento interpositor de recurso-) tem sido, ultimamente, seguida pela jurisprudência de vários tribunais superiores (cfr., a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Novembro de 1995 proferido no processo nº 46.634).
Refira-se, por último (e sem embargo das reservas que acima vieram de ser expostas), que, de todo o modo, é duvidoso que, ainda que implicitamente, o acórdão querido impugnar tivesse, em sede decisória, feito apelo à norma do nº 4 do artº 2º do Código Penal, interpretada de jeito a que, não havendo possibilidade legal de recorrer de uma determinada decisão impositora de uma punição criminal, já não seria possível ao tribunal que a ditou reformular essa decisão, ainda que surgisse a lume uma lei penal cujo conteúdo levaria a que, em concreto, a punição ao arguido fosse mais favorável.
Efectivamente, o acórdão de 8 de Maio de 1996 suportou-se, afinal, no teor literal daquela norma (em conjugação com o que se estatui no nº
4 do artº 80º da Lei nº 28/82), que ressalva da regra da aplicação do regime penal concretamente mais favorável os casos de condenação com trânsito em julgado.
Sendo assim, se porventura o ora recorrente entendesse que, em direitas contas, a norma constante do nº 4 do artº 2º do Código Penal, tal como deflui do seu teor literal, padecia de inconstitucionalidade
(entendimento que até poderá extrair-se do requerimento de interposição de recurso), então, se desejasse interpor um recurso baseado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, incumbir-lhe-ia, sob pena de, in casu, se não verificar um dos pressupostos condicionadores deste tipo de recurso, suscitar, antes da prolação do aresto intentado censurar - tendo, como se disse, oportunidade processual para tanto -, uma tal questão, a fim de, sobre ela, se poder pronunciar o Tribunal a quo.
Em face do exposto, opina-se por se não dever tomar conhecimento do recurso.
Cumpra-se a parte final do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº
28/82.
Lisboa, 20 de Setembro de 1996.