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Processo nº 450/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
Nos presentes autos de recurso vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, pelo essencial dos fundamentos da exposição do relator oportunamente apresentada, que aqui se dão por reproduzidos, e que não foram abalados pela resposta do recorrente, tendo merecido inteira concordância do recorrido, decide-se não tomar conhecimento do recurso, condenando-se o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 5 UC's.
Lisboa, 9 de Outubro de 1996
Alberto Tavares da Costa
Antero Alves Monteiro Diniz
Maria Fernanda Palma
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Processo nº 450/96
1ª Secção
Rel. Cons. Tavares da Costa
Exposição preliminar a que se refere o nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
1.- A., identificado nos autos, foi detido em 6 de Fevereiro último, na sequência do cumprimento de mandados contra si emitidos, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 257º e 258º do Código de Processo Penal (CPP) e a sua detenção foi validada por despacho do dia imediato do magistrado judicial do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa (TIC). Entendeu-se, então, estar suficientemente indiciada, por parte do detido, a co-autoria material, em concurso real, de crimes de falsificação e de burla, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 228º, nºs. 1, alínea a), e 2, e 314º, alíneas a) e c) do Código Penal [no texto revisto de
1995, artigos 256º, nºs. 1, alínea a), e 3, e 218º, nº 2, alíneas a) e b), respectivamente], sendo de manter a prisão preventiva por se considerarem verificados os requisitos a que alude o artigo 204º do CPP.
O interessado recorreu desse despacho bem como de outro, lavrado no mesmo processo de inquérito, no dia anterior, autorizando busca no seu domicílio e apreensão de papéis e outros objectos que pudessem interessar à investigação em curso.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 16 de Abril de 1996 (fls. 376 e segs.), negou provimento ao recurso.
Alegara o recorrente, consoante condensou nas conclusões da motivação apresentada:
'A) O mandado de busca é ilegal art. 12 da DUDH e art. 16º da Constituição e 174º do CPC e Emenda 4ª da Constituição dos Estados Unidos da América.
B) A detenção e subsequente confirmação são ilegais porque não se verifica o objecto da prisão nem qualquer razão processual para a mesma.
O art. 204º e 32º da Constituição e 27º e 28º, 29º da mesma não foram cumpridos.
C) A regra é a liberdade e a factos só se podem opor factos, que não acontece nestes autos.'
A Relação, sublinhando não serem os factos concretos da detenção e da busca domiciliárias recorríveis em si, mas sim o despacho ou os despachos que as autorizaram, ordenaram ou confirmaram, afastou a argumentação deduzida nos termos que se passam a transcrever:
'3.3.- O mandado de busca, à residência do arguido, ora Recorrente, e de apreensão de papeis e outros objectos que pudessem interessar à investigação em curso, foi emitido pelo Senhor Juiz de Direito do TIC de Lisboa, em 22-01-96, após fundamentado despacho da mesma data, e efectivado em 6-02-96
(cfr. fls. 41 a 43).
3.4.- O mandado de detenção proveio da Ex.ma Magistrada do MºPº do DIAP, junto do TIC de Lisboa (cfr. fls. 40 e 44), louvando-se no facto de se terem recolhido fortes indícios da autoria de crimes de falsificação de documentos, associação criminosa e burla qualificada, previstos pelos art.s
228º, nº 1, al. a), e nº 2, 287º, nº 2, e 314º, al. c), do CP de 1982, cominativos, respectivamente de penas máximas de prisão de 4, 6 e 10 anos de prisão, a que correspondem, no Código reformado, de 1995, as previsões dos art.s
256º, nº 3, 299º, nº 2, e 218º, nºs. 1 e 2, al. a), abstractamente puníveis com penas máximas de prisão, respectivamente, de 5 anos, 5 anos e 8 anos, havendo perigo de continuação da actividade criminosa e de fuga, à medida que o arguido sentisse mais acentuado cerco advindo dos progressos instrutórios.
3.5.- A busca, cuja ordem ou autorização, compete exclusivamente ao juiz de instrução, pressupõe que haja indícios da existência de objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, os quais se encontrem em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, como resulta do disposto nos art.s 174º, nºs. 1, 2 e 3 e 269º, nº 1, al. a), ambos do CPP.
Tal diligência não pode ser arbitrariamente ordenada ou realizada, por poder contender com princípios constitucionalmente consagrados, como sejam os do direito à integridade moral ou à reserva da intimidade da vida provada e familiar (cfr. art.s 25º, nº 1, 26º, nº 1, e 34º, nºs. 1 e 2, todos da Const. da República, art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de
4-11-50, e art. 12º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adoptada e proclamada pela Assembleia Geral da ONU em 10-12-48).
Todavia, os mesmos princípios permitem a ingerência da autoridade pública, desde que legalmente prevista, numa sociedade democrática, e imposta, designadamente, para fins de segurança pública, prevenção de infracções penais ou protecção dos direitos e liberdade dos outros.
Donde que o nosso direito ordinário cerque aquela diligência de especiais cautelas, exigindo normalmente a prévia decisão jurisdicional da verificação dos seus pressupostos.
Ora, quer sob o ponto de vista formal como substancial, foram comprovadamente observados os respectivos requisitos, face à indiciação da prática daqueles graves crimes pelo arguido, em co-autoria material, e à forte probabilidade da existência de objectos ou papeis, na sua residência, relacionados com as infracções e susceptíveis de servir de prova.
3.6.- Vejamos a detenção e sua confirmação:
O art. 191º do CPP (diploma a que se reportarão todos os preceitos mencionados sem outra referência), determina que a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial. Trata-se da consagração da liberdade como regra, corolário da presunção de inocência, garantia constitucional acolhida por todos os sistemas jurídicos civilizados actuais (cfr. art. 32º da Const.).
Comanda o art. 193º, na esteira da regra do art. 28º nº
2 da Const., que as medidas de coacção, a aplicar em cada caso concreto, devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais ao crime e às sanções que presumivelmente venham a ser aplicadas, só podendo optar-se pela prisão preventiva quando se revelem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.
Só pode impor-se a prisão preventiva quando: a) Houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de máximo superior a três anos; ou b) Se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional - como estabelece o art. 202º - prevendo o artigo imediato a aplicação de outra ou outras medidas de coacção admissíveis ao caso, havendo violação das obrigações impostas.
O art. 204º preceitua que nenhuma medida de coacção prevista no capítulo anterior, à excepção do termo de identidade e residência pode ser aplicada se em concreto se não verificar: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação no decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.
Comanda o art. 209º que sempre que o crime for punível com pena de prisão de máximo superior a 8, o Juiz deve, no despacho sobre medidas de coacção indicar os motivos que o tiverem levado a não aplicar ao arguido a medida de prisão preventiva, o que vem sendo entendido não como a confirmação da existência de crimes incaucionáveis (o que representaria manifesto arrepio da evolução legislativa), mas antes como uma necessidade de acrescida fundamentação, na lúcida perspectiva de Taipa de Carvalho, in Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, L. da, ed. de 1990, pag. 262 e seg.s), mas sim como necessidade aí de uma acrescida fundamentação.
4.4.- A todos estes normativos, alguns dos quais expressamente invocados, prestou o M.mo Juiz obediência no despacho sob censura, após efectuar o legal enquadramento dos factos, no qual confirma a legalidade da detenção ordenada pelo MºPº, que fundadamente mencionara o perigo de prossecução da actividade criminosa e de fuga.
4.5.- Nada tem a ver com os equacionados problemas o art. 204º, da Constituição, que caracteriza a competência dos membros do Governo, ou a Emenda 4ª, da Constituição dos Estados Unidos da América, que não constitui direito vigente em Portugal, quando muito relevando a título de direito comparado, dispositivos esses constantes da primeira conclusão da motivação do Recorrente, a qual, se obedecente ao comando da al. a) do nº 2, do art. 412º, deveria indicar as normas jurídicas, evidentemente positivas, violadas.
Querendo mencionar-se, com aquela primeira referência, o art. 204º, do CPP, procedeu-se já à correspondente análise'.
Do assim decidido, recorreu A. para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
No requerimento em que o fez, diz o exponente:
'a) O artº 16º da C.R.P. torna de aplicação interna as Convenções Internacionais e até manda interpretar os preceitos constitucionais e os da lei de harmonia com a D.U.D.H.
E é evidente que não foi respeitado o artº 12º da D.U.D.H. e nem o decorrente artº 174º e segs. do C.P.P. quanto a buscas.
b) A detenção e a subsequente confirmação viola o artº 32º e 27º e 28º e 29º da C.R.P. quanto à prisão e à interpretação das respectivas regras nomeadamente do artº 204º, 209º nº 1 do C.P.P.
Nestes termos devem as disposições supra referidas ser interpretadas e aplicadas de acordo com os dispositivos constitucionais, porque só assim será feita Justiça!'.
Face ao teor do mencionado requerimento foi lavrado despacho nos termos e para os efeitos do nº 5 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de modo a indicar-se:
a) a norma, ou normas, cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade pretende o requerente que o Tribunal aprecie;
b) a norma ou princípio constitucional ou legal que considera violado;
c) a peça processual em que suscitou a questão de inconstitucionalidade ou ilegalidade.
Em resposta, mais não fez o recorrente do que repetir toda a sua anterior argumentação, condensando-a, a final, do seguinte modo:
'- Estamos num Estado de Direito Democrático - artºs. 1º e
2º da Constituição
- Ao recorrente foram aplicados os artigos 174º e segs.
(nos quais obviamente se inclui o artigo 177º do CPP) e 269º, 1 - a), do CPP, por má interpretação do artigo 34º da CRP e do artigo 16º da mesma reportado à Declaração Universal dos Direitos do Homem - busca e apreensão não fundamentadas ou arbitrárias ou não razoáveis.
- Ao Recorrente foi aplicada prisão preventiva - com violação dos artigos 27º, 28º e 29º da Constituição, porque resultam violados pelas disposições legais relativas e essa detenção, nomeadamente pelos artigos
204º e 209º do CPP na interpretação e aplicação feitas.
- Nomeadamente tais disposições legais, as de busca e apreensão, e as de detenção e prisão provisória ou preventiva confirmadas contrariam o artº 32º da Constituição.
- Aquando da detenção já se levantou o problema constitucional embora obviamente sem referência a artigos, ali não disponíveis
- e aquando do recurso voltou-se ao tema, e até em requerimento subsequente fazendo notar a existência da Lei nº 4/86, de 30 de Setembro, que é redutora de direitos mas que mesmo assim preserva o 'núcleo duro' dos direitos, de fundamentação, contraposto ao direito de defesa, e a necessidade de redução a auto dos factos da busca e apreensão e da detenção.
Ou seja, o direito de liberdade, constitucionalmente protegido, e fundamentados da nossa ordem jurídica, foi, no caso, desrespeitado na interpretação e aplicação que é feita das Leis Ordinárias - facto bem expresso, aliás, na contra motivação do Ministério Público no recurso da 1ª instância'.
2.- Cremos que não pode conhecer-se do objecto de recurso, justificando-se, assim, sucinta exposição, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
Os recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 - cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que 'apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo' - implicam a necessária congregação de vários pressupostos, nomeadamente: a) que a questão de inconstitucionalidade haja sido suscitada previamente, e em determinadas condições, pelo recorrente; b) que a norma (na sua globalidade, em certo segmento ou determinada interpretação) tenha sido efectivamente aplicada na decisão recorrida, como seu fundamento determinante.
Por sua vez, o objecto do recurso é constituído por normas, não podendo o Tribunal conhecer das decisões judiciais, enquanto tais: o controlo de constitucionalidade é normativo - apenas tem por objecto actos do poder normativo público mas não actos de poder público de outro tipo, como as decisões judiciais.
Como se observou no acórdão nº 178/95, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995, suportado, aliás, em anterior acórdão - o nº 192/94, publicado no mesmo Diário, II Série, de 14 de Maio de 1994 - constituindo jurisprudência pacífica e que se aponta inter alia, pois que expressivo e claro, 'o recurso para o Tribunal Constitucional não pode ter por objecto a inconstitucionalidade das decisões judiciais, consideradas em si mesmas. O seu objecto hão-de ser as normas a que os outros tribunais recusaram aplicação com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou que aplicaram, não obstante o recorrente as haver acusado de inconstitucionalidade, durante o processo'.
Ora, à luz das considerações brevemente expostas e do que mais se descreve quanto às anteriores ocorrências processuais, é de concluir que, para o recorrente, a via do recurso de constitucionalidade se configura como (mais) um meio de reequacionar as suas divergências relativamente
às decisões judiciais logo de início impugnadas e, posteriormente, objecto de recurso para o Tribunal da Relação.
Com efeito, ao impugnar o despacho que autorizou a busca domiciliária - no qual, em sua tese, se terão aplicado 'os artigos 174º e segs.' (nos quais obviamente se inclui o artigo 177º do C.P.P.) e 269º, 1, a), do C.P.P.' - entende o recorrente que tal se ficou a dever a 'má interpretação do artigo 34º da C.R.P. e do artigo 16º da mesma reportado à Declaração Universal dos Direitos do Homem', busca e apreensão essas que tem por 'não fundamentadas' ou 'arbitrárias' ou 'não razoáveis'.
Ou seja, não se trata de censura jurídico-constitucional às próprias normas aplicadas, em si consideradas, ou a uma sua interpretação, mas uma censura dirigida à própria decisão de que se recorre.
O mesmo se diga no tocante à outra questão, articulada com a legislação da detenção.
Na verdade, ao entender que lhe foi aplicada prisão preventiva com violação dos artigos 27º, 28º e 29º da Constituição, 'porque se violaram as disposições legais relativas a essa detenção, nomeadamente as dos artigos 204º a 209º do CPP', o recorrente pretende impugnar e rediscutir a decisão recorrida, mesmo que confinadamente à sua inconstitucionalidade.
Não está, assim, em causa, a inconstitucionalidade das normas aplicadas - e se, como já se observou, cabe ao Tribunal Constitucional cuidar da 'inconstitucionalidade da aplicação do direito', tal é exacto mas só, justamente, enquanto essa constitucionalidade dependa da das normas que os operadores jurídicos (maxime, os tribunais) aplicam (cfr. acórdão nº 69/87, publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Abril de 1987).
Por outro lado, é indispensável que a questão de constitucionalidade seja suscitada de forma inequívoca e perceptível, designadamente quando se discutem várias normas ou o sentido destas. Essa tarefa clarificadora é indispensável para que a decisão a proferir igualmente seja clara e o tribunal recorrido, que porventura houver de reformar a sua decisão, os demais destinatários e os operadores jurídicos em geral saibam qual o sentido que não pode ser adoptado por incompatibilidade com a Constituição
(cfr. o acórdão nº 178/95, publicado no Diário citado, II Série, de 21 de Junho de 1995).
No caso vertente, e de qualquer modo, não foi colocada qualquer questão de constitucionalidade normativa de forma dimensionada e devidamente concretizada.
Assim, quando, já em resposta ao convite que lhe foi endereçado, ao abrigo do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, o recorrente afirma que as disposições legais relativas a buscas e apreensões e a detenção e prisão provisória ou preventiva confirmadas, contrariam o artigo 32º da CR, há-de concluir-se que sempre haveria de se considerar a questão ou questões de inconstitucionalidade como inadequadamente suscitadas.
3.- Não deve, consequentemente, em nosso parecer, conhecer do objecto do recurso.
Ouçam-se as partes por 5 dias (nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82).