Imprimir acórdão
Processo nº 58/95
1ª Secção
Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A. e outros, identificados nos autos, interpuseram
recurso contencioso do despacho de 22 de Abril de 1991 do Administrador Delegado
do Hospital B. que ordenara a reposição de 'quantias indevidamente recebidas',
recurso esse que, por decisão do Senhor Juiz do Tribunal Administrativo do
Círculo de Lisboa, foi liminarmente rejeitado, 'por manifesta extemporaneidade
[artigo 28º, nº 1, alínea a), da L.P.T.A.]'.
O Supremo Tribunal Administrativo (STA), por
acórdão de 23 de Junho de 1993, da 1ª Subsecção da 1ª Secção, negou provimento
ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Inconformados, recorreram os interessados para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
Aí se disse que o acórdão recorrido 'manteve,
consequencialmente, aplicável 'norma' [o 'Despacho nº 19/89' da Senhora
Ministra da Saúde (publicado no D.R., II Série, nº 120, de 26/5/89), o qual é um
verdadeiro e próprio 'regulamento', na modalidade de 'regulamento autorizado
integrativo', segundo os Recorrentes], cuja inconstitucionalidade foi suscitada
durante o processo (quer junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa,
quer em sede de alegações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo),
tendo, assim, e salvo o merecido respeito, ofendido o regime directamente
resultante para as normas que infrinjam o disposto na Constituição e nos
princípios nela consignados (cfr. artigos 3º, nº 3, 207º e 282º, nº 1, da
C.R.P., em leitura combinada), o que aduz para os efeitos do artº 75º-A, nº 2,
da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro'.
O recurso não foi, porém, recebido.
Na verdade, por despacho de 3 de Outubro de 1994 do
Senhor Conselheiro Relator entendeu-se que o acórdão não aplica norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, pelo que não se
verifica o fundamento previsto na alínea b) do nº 1 do citado artigo 70º -
assim se indeferindo ao requerido e não admitindo o recurso.
Reclamaram, então, os recorrentes em requerimento
dirigido ao Presidente do Tribunal Constitucional, invocando o disposto nos
artigos 688º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil e 76º, nº 3, da Lei nº
28/82, 'em leitura combinada'.
Foram os autos à conferência da 1ª Secção (1ª
Subsecção) que, por acórdão de 17 de Novembro de 1994, confirmou o despacho
reclamado.
Posteriormente foi dado cumprimento ao disposto no
nº 5 do artigo 688º citado.
2.- Foram os autos, neste Tribunal, com vista ao
Ministério Público, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no
sentido da improcedência manifesta da reclamação.
Em sua tese, a decisão recorrida não aplicou as
normas cuja inconstitucionalidade se suscitou, uma vez que as decisões
proferidas, na 1ª instância e no STA, incidiram apenas sobre as questões de
caducidade do direito de recorrer e da existência de nulidades na sentença do
TAC, sem entrarem na apreciação do mérito, surpreendendo-se na actuação dos
reclamantes, mais do que o intuito de provocar o controlo de
constitucionalidade de normas, a intenção de interpor um verdadeiro 'recurso de
amparo' - não acolhido no nosso ordenamento jurídico-constitucional.
Corridos os demais vistos legais, cumpre decidir.
II
1.1.- Ao impugnarem o acto da entidade que lhes ordenara a reposição
de quantias recebidas, tendo por fundamento o Despacho no 19/89 já citado,
recte, o nº 3.7 desse Despacho, os recorrentes defendem estar essa 'norma'
ferida de inconstitucionalidade ao dispor que 'quando os enfermeiros a quem foi
autorizado o regime de tempo completo prolongado for concedida bolsa de estudo
para frequência de cursos de enfermagem pós-básicos, deverá ser cessado o
respectivo regime, bem como o acréscimo de 40% sobre o vencimento base, a
partir da data do início do curso'.
Para os recorrentes está em causa o artigo 115º, nº
5, da Constituição da República (CR) - 'nenhuma lei pode criar outras
categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder
de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou
revogar qualquer dos seus preceitos' - sendo certo que, mesmo numa
interpretação restritiva não abrangendo os chamados 'regulamentos de execução',
não se está em face de regulamento meramente executivo: na medida em que
assenta no disposto no artigo 13º do Decreto-Lei nº 178/85, de 23 de Maio
(modalidades de regime de trabalho dos enfermeiros integrados na carreira) o
impugnado Despacho nº 19/89 não se limita a aclarar ou a dar execução àquele
normativo mas a integrá-lo com a eficácia externa revelada pela sua projecção
na esfera jurídica de terceiros.
Assim, e porque os 'regulamentos autorizados
integrativos' caem na proibição do artigo 115º, nº 5, da CR, o acto sob
recurso, que nele se funda, está ferido de nulidade: a invalidade do acto
alicerçado em instrumento ferido de inconstitucionalidade não pode deixar de
ser a nulidade.
1.2.-O aludido despacho, de 22 de Abril de 1991, foi dado a conhecer aos
ora reclamantes em 20 de Junho seguinte e a petição de recurso deu entrada na
secretaria do TAC em 10 de Novembro de 1992.
Para o respectivo magistrado o recurso foi
apresentado, manifestamente, de forma extemporânea, dado o disposto no artigo
28º, nº 1, alínea a), da LPTA (Lei de Processo nos Tribunais Administrativos -
Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho), sobre prazos dos recursos contenciosos
dos actos anuláveis - pois não se trata de caso em que esteja expressamente
prevista a nulidade propriamente dita do acto, nem tão pouco de ineficácia ou
inexistência jurídica do acto.
Não estando em causa o núcleo essencial de qualquer
direito fundamental, ainda que o instrumento regulamentar em que o acto
impugnado se baseou fosse inconstitucional não resultaria daí a nulidade do
acto mas unicamente a sua anulabilidade.
Entendimento este que foi acolhido e subscrito pelo
STA, no acórdão de 23 de Junho de 1994, ao confirmar o decidido quanto à
rejeição liminar do recurso por intempestividade.
Neste aresto, o STA começou por analisar as
nulidades imputadas à decisão recorrida, a todas dando como não verificadas:
violação do disposto no artigo 688º, nº 1, alínea b), do CPC, relativa à alegada
falta de fundamentação de facto e de direito; violação do disposto no artigo
668º, nº 1, alínea d), do mesmo Código, pertinente à omissão de pronúncia.
Em segundo momento, defrontando o eventual erro de
interpretação e aplicação do direito, que originaria violação do disposto nos
artigos 3º, nº 3, e 282º, nºs. 1 e 4, da CR e 4º, nº 3, do ETAF, em leitura
combinada, o STA mais afastou essa tese pois que, na decisão em apreço, não se
formulou, nem tinha que se formular, qualquer juízo sobre a
inconstitucionalidade ou constitucionalidade da norma regulamentar em que se
fundamentou o despacho que se pretendia impugnar contenciosamente.
Como, então, se escreveu, a decisão recorrida
'limitou-se a hipotisar uma situação, a da inconstitucionalidade daquele
regulamento, e, face à questão prévia suscitada, decidiu - bem - que mesmo
naquela hipótese, o acto recorrido não estaria ferido de nulidade, mas de mera
anulabilidade. Conclusão, aliás, de harmonia com a doutrina e jurisprudência -
[cfr., por todos, Marcello Caetano, Manual, vol. I, pág. 518 e Ac. Trib. Pleno,
de 20 de Junho de 1990, in AD nº 356, págs. 241 e segs.] - e que,
posteriormente, veio a obter consagração legal [artº. 133º, nºs. 1 e 2, alínea
d) do Código de Procedimento Administrativo]'.
1.3.- Outro entendimento não tiveram, face à reclamação, o Senhor
Conselheiro Relator e, bem assim, o Tribunal, em conferência, no acórdão de 17
de Novembro de 1994.
Na verdade - pondera-se neste último - nem o
TAC nem o STA, no aresto que se seguiu, aplicaram a norma arguida de
inconstitucional, pois, para assim suceder, necessária seria que se tivessem
pronunciado sobre o fundo ou mérito do recurso - o que não aconteceu, só nessa
circunstância proporcionando a aplicação da norma em causa, mediante juízo,
expresso ou implícito, da constitucionalidade.
Mas, para o acórdão, não houve tal pronúncia, nem
poderia haver.
'No TAC [transcreve-se] porque o recurso contencioso foi rejeitado
por extemporaneidade da sua interposição e por isso não se alcançou a fase de
pronúncia sobre o mérito do recurso, onde caberia o conhecimento da
inconstitucionalidade arguida; no STA, porque no aresto em causa só se
conheceu de nulidades imputadas à sentença proferida na 1ª instância, aliás
julgadas improcedentes'.
E, a rematar:
'Não ocorrendo, pois, o fundamento invocado pelos ora reclamantes
para interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, não podia o mesmo
ser admitido, como o não foi'.
2.1.- Independentemente da caracterização do Despacho nº 19/89 como
'norma' para efeitos do artigo 280º da CR - fiscalização concreta da
constitucionalidade - e da divergência no tocante aos efeitos do acto
recorrido - nulo para os reclamantes, anulável para as decisões impugnadas -
conjunto de questões que não interessa abordar na economia do presente acórdão,
ao intérprete só resta apurar se aquele Despacho foi, quer no TAC, quer no STA,
efectiva e concretamente aplicado.
Na verdade, só uma resposta afirmativa permitirá
concluir pela congregação de todos os pressupostos exigidos para o recurso de
constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
O certo é que a questão de inconstitucionalidade
não chegou sequer a ser apreciada.
Os ora reclamantes tiveram o cuidado de logo no
início suscitar a questão de constitucionalidade e, do mesmo passo, defender a
tese da nulidade do acto recorrido, invocando, por um lado, violação do artigo
115º, nº 5, da CR, por outro lado, intentando projectar essa suposta
inconstitucionalidade no plano material, em articulação com os artigos 3º, nº 3,
e 277º, nº 1, da Lei Fundamental.
Não obstante, as decisões proferidas adoptaram o
posicionamento jurisprudencial tradicionalmente acolhido e negaram estar em
causa, com a pretendida violação constitucional, qualquer direito fundamental -
tendo, nomeadamente, em conta o disposto no artigo 133º, nº 1, alínea d), do
Código de Procedimento Administrativo, entretanto entrado em vigor - gerador
de nulidade, nem tão pouco uma situação de ineficácia ou de inexistência
jurídica do acto, a possibilitar a sua impugnabilidade contenciosa a todo o
tempo.
Não houve, na verdade, qualquer juízo sobre o
mérito constitucional do questionado Despacho, nem este foi aplicado, explicita
ou implicitamente, mormente a norma do seu nº 3.7.
As referidas decisões limitaram-se a observar,
aplicando-a, a norma do artigo 28º, nº 1, alínea a), da L.P.T.A. que, no
entanto, não foi constitucionalmente impugnada, em si ou na interpretação que
lhe foi dada de modo a tornar irrelevante a questão dos efeitos do acto por
eventual lesão de direitos fundamentais.
2.2.- O caso sub judicio apresenta, aliás, evidente similitude com a
situação contemplada em acórdão deste Tribunal, o nº 82/92 (publicado no Diário
da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992) quando se pretendeu recorrer
contenciosamente de um acto de nacionalização, operada formalmente pelo
Decreto-Lei nº 701-E/75, de 17 de Dezembro, apresentado materialmente como acto
administrativo, o que se fez muito para além do prazo consignado no artigo 28º,
nº 1, alínea a), da LPTA, pretendendo-se, no entanto, ser tempestiva a
impugnação por se tratar de acto nulo, ferido de vício de violação de lei por
ofensa ao direito fundamental de não discriminação, corolário do princípio da
igualdade acolhido no artigo 13º da CR.
Também aí o STA, em acórdão do Pleno da 1ª Secção,
de 23 de Outubro de 1990, confirmou decisão precedente que se ateve à
extemporaneidade da interposição do recurso.
E o Tribunal Constitucional, no citado acórdão nº
82/92, ponderou, então, que, tanto o despacho do relator que não recebera o
recurso como o acórdão sobre ele proferido, em conferência, se tinham abonado
numa linha jurisprudencial, pacífica e reiterada, segundo a qual vigorava uma
regra geral no sentido de os vícios do acto administrativo determinarem mera
anulabilidade, apenas se verificando a nulidade nos casos expressamente
previstos na lei - sendo certo não existir, então, lei expressa a estabelecer
que a nulidade seja a sanção correspondente à violação, através dos actos
administrativos, de normas constitucionais, maxime de normas constitucionais
relativas aos direitos fundamentais.
E escreveu-se, a propósito:
'O tribunal, confrontado com um recurso contencioso dirigido à
anulação de um certo acto administrativo, depois de considerar não existir lei
expressa a definir o vício àquele acto imputado pelo recorrente, como vício
gerador de nulidade, houve-o como causador de anulabilidade e, por força desta
prévia definição, julgou o recurso intempestivo [...]. Para tanto, não fez o
tribunal qualquer apelo às normas do Decreto-Lei nº 705-B/75, não podendo assim
dizer-se que tais normas foram aplicadas na decisão recorrida'.
E, ainda, recusando que a não apreciação da questão
possa ser entendida como proporcionando, directa ou indirectamente, efeitos
similares aos de uma decisão de rejeição de inconstitucionalidade:
'Enquanto nas decisões de rejeição ou não provimento o tribunal,
depois de apreciar o mérito constitucional de uma dada norma, acaba por a
aplicar como norma e fundamento da sua própria decisão, no caso em apreço, o
tribunal não só não apreciou minimamente qual fosse o rigor constitucional das
normas do Decreto-Lei n 701-E/75, como não fez também qualquer aplicação, mesmo
que apenas implícita, dessas normas'.
Conclui o referenciado acórdão pela inexistência de
um dos pressupostos essenciais de admissibilidade do recurso - o da utilização
da norma impugnada na decisão objecto do recurso, como um dos seus suportes
normativos.
2.3.- Observe-se, aliás, que mesmo a admitir-se assumir a norma
questionada do Despacho nº 19/89 a natureza de regulamento integrativo
constitucionalmente vedado - questão, de resto, que não interessa discutir -
nunca a mesma poderia ser invalidada por aplicação directa do artigo 115º, nº
5, da CR.
A invalidade de tal norma, sublinhou-se em recente
acórdão do Tribunal Constitucional - nº 224/95, inédito - a existir, 'só
poderia decorrer da inconstitucionalidade de uma norma legal que, contra o
preceituado no mencionado artigo 115º, nº 5, cometesse a 'actos de outra
natureza' (v.g., regulamentos, despachos normativos ) a sua interpretação ou
integração autêntica com eficácia externa - norma legal que fosse a lei
habilitante daquela norma regulamentar. Num tal caso, invalidada a norma legal
por inconstitucionalidade, inválida seria a norma regulamentar, por falta de
suporte ou base legal, no momento em que foi emitida'.
Ora, objecto do recurso de cujo não conhecimento se
reclama é, apenas, aquela norma do citado Despacho, e não qualquer preceito
legal, pretendendo os recorrentes, ora reclamantes, fazer decorrer a
inconstitucionalidade da norma regulamentar de uma aplicação directa do artigo
115º, nº 5, da CR - situação análoga à contemplada naquele acórdão que, por
não poder confrontar-se directamente a norma sub judicio com a Constituição,
negou provimento ao recurso.
2.4.- Assim considerando, e porque o recurso de fiscalização concreta
de constitucionalidade configura-se no nosso ordenamento jurídico como meio de
levar a efeito o controlo de normas - ou de uma sua interpretação - na
perspectiva jurídico-constitucional, aplicadas ou recusadas na decisão
recorrida, e desta determinantes, nada tem o Tribunal Constitucional a censurar
ao decidido, no âmbito da sua competência.
III
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente
reclamação, condenando-se os reclamantes em custas, fixando-se a taxa de justiça
em 4 (quatro) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Junho de 1995
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Luís Nunes de Almeida