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Processo nº 305/94
1ª Secção
Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A., identificado nos autos, foi condenado, por
acórdão do Tribunal Colectivo da Comarca de --------, de 28 de Maio de 1993,
pela prática de um crime continuado de burla, previsto e punido no artigo 313º
do Código Penal, na pena de 15 meses de prisão, e de um crime continuado de
falsificação, previsto e punido no artigo 233º , nº 1, com referência aos
artigos 229º e 437º do mesmo Código, na pena de 18 meses de prisão - em cúmulo
jurídico, na pena unitária de 2 anos de prisão, com execução suspensa por dois
anos.
Recorreu o arguido da decisão para o Supremo
Tribunal de Justiça (STJ), suscitando, nomeadamente, a questão de
constitucionalidade dos artigos 433º e 410º, nºs. 2 e 3, do Código de Processo
Penal (CPP) que, na medida em que não garantem o princípio do duplo grau de
jurisdição, não permitindo, sem restrições, o julgamento da matéria de facto em
dois graus de jurisdição, tem por violadores do disposto no artigo 32º, nº 1, da
Constituição da República (CR).
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 14 de
Abril de 1994, julgou improcedente a invocada inconstitucionalidade (bem como
os demais vícios alegados) e negou provimento ao recurso, mantendo inteiramente
a decisão impugnada.
Inconformado, recorreu o arguido para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15
de Novembro, recurso esse que, após notificação nos termos e para os efeitos do
artigo 75º-A deste diploma legal, circunscreveu à violação da norma do artigo
32º, nº 1, da CR, por ofensa do princípio do duplo grau de jurisdição, alegando
ausência de garantia de julgamento, sem restrições, da matéria de facto, em dois
graus de jurisdição, implicada pela disciplina dos artigos 433º e 410º, nºs. 2 e
3, do CPP.
2.- Recebido o recurso, alegou o recorrente
oportunamente, formulando as seguintes conclusões:
'1ª- Nos termos e no disposto no artigo 32º, nº 1, da
Constituição, o processo criminal deve assegurar todas as garantias de defesa.
No núcleo essencial dessas garantias de defesa - em
benefício do arguido - situa-se a existência de um duplo grau de jurisdição em
matéria penal.
Esta jurisdição não pode deixar de abranger tanto a
matéria de direito como a matéria de facto.
2ª- A disciplina dos artigos 433º e 410º, nºs. 2 e 3, do
Código de Processo Penal não garante o princípio do duplo grau de jurisdição.
Não permitindo, sem restrições, o julgamento da matéria
de facto, em processo penal, por dois graus de jurisdição, os artigos 433º e
410º, nºs. 2 e 3, do Código de Processo Penal frustram a actuação do disposto no
artigo 32º, nº 1, da Constituição'.
Por sua vez, contra-alegando, o Senhor Procurador-Geral Adjunto
rematou assim as suas considerações:
'1º- Não é inconstitucional a norma do artigo 433º do Código de
Processo Penal (perspectivada em conjugação com as normas dos nºs. 2 e 3 do
artigo 410º e do artigo 432º, alínea o), do mesmo Código.
2º- Termos em que deverá improceder o presente recurso,
confirmando-se a decisão recorrida'.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e
decidir.
II
1.1.- Constitui objecto do presente recurso de fiscalização concreta
de constitucionalidade saber se viola o disposto no nº 1 do artigo 32º da
Constituição da República (CR) - 'o processo criminal assegurará todas as
garantias de defesa' - por ofensa do princípio do duplo grau de jurisdição, a
ausência da garantia de julgamento, sem restrições, da matéria de facto, em dois
graus de jurisdição, implicada pela disciplina contida nas normas dos artigos
433º e 410º, nºs. 2 e 3, do Código de Processo Penal.
1.2.- Integrado no Livro IX do CPP - Dos Recursos - Título I - Dos
recursos ordinários - e Capítulo IV - Do recurso perante o Supremo Tribunal de
Justiça - o artigo 433º, sob a epígrafe 'Poderes de cognição', dispõe assim:
'Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nºs. 2 e 3, o recurso
interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de
matéria de direito'.
Por sua vez, o artigo 410º do mesmo Código,
respeitante à tramitação unitária daqueles recursos e, particularmente, à sua
fundamentação, depois de, no nº 1, dispor que, sempre que a lei não restringir a
cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como
fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida,
acrescenta:
'2.- Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do
tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos,
desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada
com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de
facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3.- O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei
restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a
inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva
considerar-se sanado'.
Este o complexo normativo posto em causa.
1.3.- O sistema vigente nesta matéria está claramente descrito no
acórdão nº 322/93 deste Tribunal, publicado no Diário da República, II Série,
de 29 de Outubro de 1993, que, neste ponto, se seguirá fielmente.
Dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal
colectivo, recorre-se directamente para o Supremo Tribunal de Justiça [cf.
artigo 432º, alínea c), do Código de Processo Penal]: é o princípio do recurso
penal em um único grau, por contraposição ao sistema do duplo grau de recurso.
O Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de
recurso, só conhece, em regra, de matéria de direito (cf. artigo 433º do Código
de Processo Penal).
No que concerne à questão de facto, os seus poderes
de cognição restringem-se a verificar:
a) Se há ou não «insuficiência para a
decisão da matéria de facto provada»;
b) Se existe ou não «contradição insanável
de fundamentação»;
c) Se sim ou não se cometeu «erro notório
na apreciação da prova» (isto é, erro de tal modo evidente que o homem médio o
detecte com facilidade).
Enquanto tribunal de revista, o Supremo só pode
concluir pela existência de qualquer destes vícios, se tal resultar do próprio
texto do acórdão recorrido, «por si só ou conjugado com as regras da
experiência comum» (cf. artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal. Cf.,
também neste sentido, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 4ª ed.,
Coimbra, 1991, p. 540).
O recurso para o Supremo pode também ter sempre
como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que
não deva considerar-se sanada (cf. artigo 410º, nº 3, do Código de Processo
Penal).
Se o Supremo Tribunal de Justiça concluir pela
existência de algum dos vícios apontados (insuficiência da matéria de facto,
contradição insanável da fundamentação ou erro notório na apreciação da prova)
- e, assim, pela impossibilidade de decidir a causa - determina o reenvio do
processo para um tribunal de 1ª instância, a fim de que a renovação da prova se
faça em nova audiência de outro tribunal colectivo (cf. artigos 426º e 436º do
Código de Processo Penal). O que ele não pode é substituir-se ao tribunal de 1º
instância na apreciação directa da prova, nem realizar, ele próprio,
diligências de prova (cf., neste sentido, Acórdão deste Tribunal nº 253/92,
publicado no Diário da República, 2ª série, de 27 de Outubro de 1992, e Cunha
Rodrigues «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 394).
O recurso penal, interposto do acórdão final do
tribunal colectivo para o Supremo Tribunal de Justiça, é, assim, um recurso de
revista alargada ou ampliada, em que o tribunal de recurso é chamado a
reapreciar a decisão da 1ª instância, em regra, apenas no tocante à questão de
direito, pois que, quanto ao facto, ele intervém, tão-só, para «despistar
situações indiciadoras de erro judiciário» (cf. Cunha Rodrigues, op. cit. e
loc. cit.). É um recurso do qual, no que concerne à reapreciação do facto, se
pode dizer que constitui uma válvula de segurança contra erros notórios de
julgamento (ou análogos) - erros que hão-de poder detectar-se no próprio texto
da decisão recorrida, «por si só ou conjugada com as regras da experiência
comum».
2.- No caso sub judicio renova-se problemática sobre a
qual já este Tribunal por repetidas vezes se pronunciou, em ambas as Secções,
estabelecendo jurisprudência uniforme, subscrita pela maioria dos seus juízes.
Apontem-se, a propósito, entre outros, os recentes
Acórdãos nºs. 345/92, 234/93, 170/94, 171/94, 398/94 e 635/94, para além do já
citado nº 322/93, todos publicados no Diário da República, II Série, de 16 de
Março de 1993, 2 de Junho de 1993, 16 e 19 de Julho de 1994, 26 de Outubro do
mesmo ano, e 11 de Janeiro de 1995, respectivamente.
De um modo geral, pode considerar-se que se tem
entendido não fechar o artigo 433º do CPP, irremissivelmente, a possibilidade de
reexame da matéria de facto pelo STJ, sendo certo que, contando-se no núcleo
essencial das garantias de defesa previstas no nº 1 do artigo 32º da CR, a
existência de um duplo grau de jurisdição, em matéria penal, beneficiando o
arguido (cfr. por todos, o Acórdão nº 40/84, publicado no Diário da República,
II Série, de 7 de Julho de 1984), o dito reexame deve ser admitido e
dimensionado sem prejuízo de razões de praticabilidade e outras, decorrentes da
exigência da imediação da prova, pois, de outro modo, uma identidade de regime
levaria a ter de se consentir, sempre, a possibilidade de uma repetição integral
do julgamento perante o tribunal de recurso (cfr. o citado Acórdão nº 234/93).
Não decorre esta exigência de imposição
constitucional nem tão pouco o sistema vigente permite secundar a afirmação do
recorrente segundo a qual o sistema de cassação existente aparece travestido de
'revista alargada' para, daí, retirar as ilações jurídico-constitucionais que
pretende demonstrar em benefício da sua tese.
A questão subjacente consiste, na verdade, em saber
se estão asseguradas, no descrito quadro legal, todas as garantias de defesa
que, constitucionalmente - artigo 32º, nº 1, da CR - ao processo criminal
incumbe preservar.
A resposta é afirmativa e consta, por exemplo, do
acórdão nº 399/94, do ora relator, que, por não se achar publicado, se passa a
transcrever, na parte relevante.
'3.1.- Concede-se habitualmente que o artigo 32º, nº 1, da CR, nos termos
do qual o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa - pedra
angular de toda a constituição processual criminal - não é, só, a expressão
condensada das demais normas do preceito mas encerra, do mesmo passo, um cunho
residual que, projectando-se para além do enunciado das garantias nele
previstas, engloba as demais que 'hajam de decorrer do princípio da protecção
global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal', na
expressão de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 202). De acordo com estes
autores, esta 'cláusula geral' engloba todos os direitos e instrumentos
necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a
acusação (ibidem).
O nº 1 do artigo 32º tem um conteúdo normativo
imediato a que se pode directamente recorrer, pois nele se detecta 'um núcleo
essencial que não pode ser ignorado ou afectado pela lei ordinária sem
inconstitucionalidade material', no dizer do acórdão nº 164 da Comissão
Constitucional, acrescentando-se: 'E isto porque o princípio da defesa é, pura
e simplesmente, uma directa consequência do pensamento do Estado de direito
democrático ao nível do processo judicial sancionatório e das garantias formais
de que ele deve revestir-se para assegurar a dignidade e a liberdade dos
arguidos' (cfr. Apêndice ao Diário da República, de 31 de Dezembro de 1979,
págs. 78 e segs., e Boletim do Ministério da Justiça, nº 291, págs. 318 e segs).
Neste sentido, de resto, se tem orientado a
jurisprudência do Tribunal Constitucional (por todos, o Acórdão nº 17/86,
publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1986).
É, no entanto, problemático que o princípio do
duplo grau de jurisdição seja corolário de um princípio-garantia.
Contrariamente ao que pode pretender colher-se de
Gomes Canotilho, este constitucionalista não menciona aquele princípio ao
debruçar-se sobre os princípios-garantia, que descreve em breve catálogo, se
bem que a título exemplificativo, como sejam o do nullum crimen sine lege e do
nulla poena sine lege (artigo 29º), do juiz natural (artigo 32º., nº 7), do non
bis in idem e do in dubio pro reo (artigos 29º, nº 4, e 32º, nº 2, todos da CR)
- ob. cit., pág. 179.
Mais adiante - pág. 667 - refere este autor o
direito a um duplo grau de jurisdição, não o considerando, prima facie, direito
fundamental, se bem que, em seu entender, a regra seja a da existência de duas
instâncias quanto a 'matérias de facto' e de uma instância de revisão quanto a
'questões de direito'.
No fundo, o que está em causa é uma 'protecção
jurídica eficaz', cuja garantia deve ser assegurada pelos tribunais, em termos
a regular pela lei de processo, mas em que o controlo judicial, para além de
fixar as 'matérias e questões de facto', pelo menos em sede de primeira
instância, não deve, em fase posterior, limitar-se a um tribunal de revista,
restrito à apreciação das 'questões' e 'vícios de direito' - ob. cit., pág.
666.
A eficácia dessa protecção jurídica releva
naturalmente de uma valorização autonómica no quadro da constituição processual
penal mas, nem por isso - e até por ausência de concretização normativa - se
reveste de intangibilidade axiomática.
Como quer que seja, não se crê ser este um caso de
não explicitação na lei por o autor o considerar tão evidente que não precisava
de ser mencionado o princípio, tão somente excepções. Ou seja, que se trate de
um caso em que ao duplo grau de jurisdição se atribui densidade de autêntica
norma jurídica e uma força determinante vinculativa, como refere Gomes
Canotilho - ob. cit., pág. 179 - de tal modo que o princípio não é só ratio
legis mas, em si próprio, lex (cfr. Karl Larenz - Metodologia da Ciência do
Direito, 2ª ed., Lisboa, pág. 584).
Na realidade, o direito ao duplo grau de jurisdição
decorre do imperativo constitucional de assegurar todas as garantias de defesa
mas importa considerá-lo em formulação linear: deverá sempre existir um
direito efectivo de recurso para pelo menos um tribunal superior, como condensou
Niall Mac Dermott (O Estado de Direito e a Protecção dos Direitos do Homem,
Lisboa, 1975, pág. 14), o que aponta para uma leitura não tão maximalista.
Melhor explicando, o direito ao recurso, fazendo
parte da tutela judicial efectiva e inserido no âmbito do direito a um processo
criminal com todas as garantias, não é incondicional, mas deve exercer-se
através dos trâmites e com observância dos requisitos legalmente estabelecidos:
a exigência de dupla instância concilia-se com a liberdade do legislador para
estabelecer os meios de impugnação que considere oportunos e os condicionar a
determinadas exigências, desde que estes se não afigurem como obstáculos
injustificados e arbitrários (cfr., neste sentido, Rafael Fernández Montalvo,
'Garantias Constitucionales del Proceso Penal' in - Revista del Centro de
Estudios Constitucionales, nº 6, 1990, pág. 68).
Acresce que, contrariamente ao sugerido, tão pouco
o princípio do duplo grau de jurisdição é universalmente consagrado no direito
convencional.
Limitemo-nos a citar alguns casos mais
representativos.
Assim é que nem a Declaração Universal dos Direitos
do Homem, nomeadamente no seu artigo 11º, consagra o princípio do duplo grau de
jurisdição, nem o mesmo se diga quanto à Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, maxime no seu artigo 6º. Só o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos (PIDCP), pela primeira vez, estabeleceu a garantia do duplo grau de
jurisdição em matéria penal, nos termos do nº 5 do seu artigo 14º:
'Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer
examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença,
em conformidade com a lei'.
Tem-se entendido, porém que esta última expressão,
a considerar-se que não significa o abandono à discricionariedade dos Estados
Membros da própria existência do direito de recurso, concede-lhes, porém,
liberdade para determinarem as modalidades através das quais terá lugar o
reexame por um tribunal superior (cfr. a decisão de 31 de Março de 1983 da
Comissão dos Direitos do Homem, caso Duilio Fanali versus Itália, publicada no
nº 17 de Documentação e Direito Comparado, 1984, págs. 136 e segs.).
Nada prescrevendo a Convenção Europeia dos Direitos
do Homem, quanto à consagração do princípio do duplo grau de jurisdição,
elaborou-se o Protocolo nº 7, com um preceito semelhante ao do PIDCP, o artigo
2º:
'1.- Qualquer pessoa declarada culpada de um infracção penal
por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a
declaração de culpabilidade e a condenação. O exercício deste direito, bem
como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei.
2.- Este direito pode ser objecto de excepções em relação a
infracções menores, definidas nos termos da lei, ou quando o interessado tenha
sido julgado em 1ª instância pela mais alta jurisdição ou declarado culpado e
condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição'.
No entanto, por um lado, o Protocolo ainda não
vigora em Portugal: aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da
República nº 22/90, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº
51/90, ambos publicados no Diário da República, I Série, de 27 de Setembro de
1990, ainda não foram depositados os respectivos instrumentos de ratificação.
Por outro lado, mesmo que estivesse em vigor, não implicaria a existência de um
absoluto e completo duplo grau de jurisdição, tanto em matéria de direito, como
em matéria de facto, como nos diz o Relatório explicativo, deixando-se à
legislação interna o cuidado de determinar as modalidades do exercício do
direito de recurso, incluindo os motivos pelos quais pode ser exercido.
Ou seja, é só tendencialmente correcta esta segunda
premissa em que o recorrente se baseia.
Pode, assim, concluir-se não existir, entre nós,
uma imposição constitucional absoluta quanto ao duplo grau de jurisdição,
exceptuado o caso de revisão de sentença previsto no nº 6 do artigo 29º da CR,
libertando o legislador ordinário para a regulamentação da matéria, sem prejuízo
obviamente, da salvaguarda dos parâmetros de constitucionalidade.
3.2.- Garantirá a norma do artigo 433º do CPP de 1987 - na sua
conjugação com os nºs. 2 e 3 do artigo 410º do mesmo diploma - o direito
efectivo ao recurso, na dimensão exigida pela 'constituição processual
criminal'?
Poderia, num primeiro momento, adiantar-se que não,
compartilhando desse modo, do ponto de vista adoptado por corrente
jurisprudencial deste Tribunal, ao debruçar-se sobre o CPP de 1929, maxime o seu
artigo 665º.
Registe-se, porém, existir entre os dois
repositórios legais uma diferenciada perspectiva ontológica, de tal modo que o
entendimento expresso quanto ao texto de 29 não consequencia necessariamente
resposta idêntica para o de 87.
Na verdade, o primeiro dos citados Códigos, posto
que já publicado em contexto histórico e socio-político de ruptura com a
ideologia liberal da 1ª República, consequentemente virado para uma intervenção
crescente da praxis do Estado, em nome de outros valores e estímulos, reflecte
ainda, marcantemente, a filosofia de instância única, articulada com a
imediação e os decorrentes princípios da oralidade e da livre apreciação da
prova (No princípio do século, Alberto dos Reis considerava a pluralidade das
instâncias como 'uma triste necessidade da nossa época e do nosso meio' - cfr.
pág. 209 da sua 'Organização Judicial').
À substituição do júri pelo tribunal colectivo,
credenciado pela sua profissionalização e aptidão técnica, resulta uma
valoração deste último em termos que, desde logo, não ficaram imunes à crítica,
detectando-se no sistema inconvenientes e perigos em breve trecho conducentes à
alteração do próprio artigo 665º e, pouco depois, à interpretação que o assento
de 29 de Junho de 1934 lhe deu (basta confrontar, a este respeito, a atitude
reservada de Luís Osório - Comentários ao Código de processo Penal Português,
6º vol., Coimbra, 1934, pág. 375 - e de José Mourisca - Código de Processo
Penal (Anotado), vol. IV, 1933, pág. 310 - entre outros).
Assim, face ao Código de 1929, os poderes
cognitivos das Relações na apreciação da matéria de facto constante das
decisões dos tribunais colectivos eram muito limitados - não reduzida a
escrito a prova obtida perante o colectivo (artigo 466º), não fundamentadas as
respostas aos quesitos (artigo 469º) - pelo que o Tribunal Constitucional, no
Acórdão nº 219/89, seguido nos Acórdãos nºs. 340/90 e 236/91 (os primeiros
publicados no Diário da República, II Série, de 30 de Junho de 1989 e de 19 de
Março de 1991, respectivamente, mantendo-se inédito o terceiro, proferido no
processo nº 62/92) teve em consideração que só em contados casos constarão dos
autos elementos susceptíveis de permitir a alteração pelas Relações do decidido
pelos tribunais colectivos e que, outrossim, a faculdade de anular as decisões
dos colectivos, com base nos vícios dos quesitos e das respostas, ao abrigo do
artigo 712º, nº 2, do Código de Processo Civil, em bem pouco alargaria o poder
de cognição da 2ª instância, em matéria do facto.
Por outro lado, evidencia-se um património
argumentativo não despiciendo, no Código de 1987, quanto às virtualidades do
julgamento em tribunal colectivo e à aposta do legislador em potenciar a
economia processual, numa óptica de celeridade e eficiência, concedendo, do
mesmo passo, efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição,
autêntico [leia-se o ponto III-7-c) do preâmbulo ao Código]; por sua vez a
concretização dessa preocupação não implica, necessariamente, a repetição da
prova diante do tribunal ad quem, abrindo-se, na prática, com o apelo às regras
da experiência comum e à notoriedade do erro na apreciação da prova, caminhos
mais amplos do que os autorizados pelo próprio artigo 712º, de tal modo que
poderá afirmar-se ter sido eliminado o défice constitucional do regime anterior
nesta área.
Com o actual sistema, na verdade, em recurso penal
interposto de acórdão final do tribunal colectivo para o STJ, o reexame é, em
princípio, limitado à questão de direito, mas valoriza-se a intervenção na área
do facto, se bem que circunscrita à despistagem de situações indicadoras de
erro judiciário, funcionando como 'válvula de escape' contra erros notórios de
julgamento, ou análogos, detectados no próprio texto da decisão, por si só ou
conjugadamente com as regras da experiência comum, constituindo o que se tem
chamado revista alargada ou ampliada.
Como, de resto, se observou em acórdão recente
deste Tribunal (2ª Secção), o artigo 433º, em si, não fecha irremissivelmente
a matéria de facto, sendo certo que o artigo 32º, nº 1, da CR 'não exige um
recurso irrestrito em matéria de facto': cfr. Acórdão nº 234/93, de 17 de
Março último, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Junho de 1993.
Por sua vez, já em diferentes ocasiões teve este
Tribunal oportunidade de ponderar que, no âmbito da matéria de facto, razões de
praticabilidade e outras, decorrentes da exigência de imediação da prova,
justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a dimensão que em
matéria de direito, bastando pensar que uma identidade de regime, nesse
capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de
uma repetição integral do julgamento perante o Tribunal de recurso - cfr.
Acórdãos nºs. 61/88 e 124/90, publicados no Diário da República, II Série, de
20 de Agosto de 1988 e de 8 de Fevereiro de 1991, respectivamente - o que, já
o dissemos, não é razoável exigir.
A questão acaba, assim, por se fixar na articulação
do artigo 433º com as demais normas para as quais ele próprio remete e que, na
tese aqui perfilhada e ao invés do entendimento plasmado naquele Acórdão
234/93, formam um complexo normativo a apreciar na sua globalidade, como já se
consignou na delimitação do objecto do recurso.
Ou seja, tudo depende, afinal, de se entender
constitucionalmente suficiente o regime de reexame da matéria de facto que esse
complexo normativo permite, ou não.
Detenhamo-nos, então, neste derradeiro ponto.
Observado o circunstancialismo justificativo da sua
intervenção, o STJ pronuncia-se sobre o aspecto fáctico que se lhe oferece mas
não em termos de proceder, ele próprio, à renovação da prova, competindo-lhe
apenas enxergar o vício ou vícios eventualmente existentes e determinar,
consequentemente, o reenvio do processo para novo julgamento, de acordo com os
artigos 436º e 426º do CPP (cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 24 de
Janeiro e de 9 de Maio de 1990, publicados no Boletim do Ministério da Justiça,
nºs. 393, págs. 507 e segs., e 397, págs. 332 e segs., respectivamente, e de 13
de Maio de 1992, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, tomo III,
págs. 15 e segs).
No mesmo sentido, o Acórdão nº 253/92 do Tribunal
Constitucional - publicado no Diário da República, II Série, de 27 de Outubro
de 1992 - esquematiza o sistema vigente nos seguintes termos:
a)- enquanto tribunal de recurso no que toca
à matéria de facto, o STJ tem os seus poderes cognitivos restritos à
verificação da suficiência ou insuficiência da matéria de facto apurada, da
existência, ou não, de contradição insanável na fundamentação ou do cometimento,
ou não, de erro notório na apreciação da prova, isto é, de erro de tal modo
evidente que o homem médio o detecte com facilidade;
b)- o STJ actua como tribunal de revista, não
podendo, por conseguinte, socorrer-se de qualquer registo de prova que, acaso,
tenha sido feito na 1ª instância, pois, enquanto tal, só pode concluir pela
existência de qualquer daqueles vícios com base no texto da decisão recorrida,
por si ou conjugada com as regras da experiência comum;
c)- se concluir pela verificação de algum
desses vícios, o STJ não pode proceder a qualquer apreciação directa da prova ou
à sua renovação, tendo que determinar o reenvio do processo para a 1ª instância,
a fim de a renovação da prova se realizar em nova audiência de outro tribunal
colectivo.
Decorre do exposto que, diferentemente do anterior,
o regime do novo CPP abre uma via idónea para controlo de reapreciação de 'todo
o processo silogístico em que se baseou a respectiva decisão', seja através dos
dados constantes do processo, de pertinência assumida pela peça decisória, seja
mediante a fiabilidade das regras ou máximas da experiência que o julgador, na
sequência natural da sua formação profissional como intérprete-aplicador, tomará
em consideração, nos limites da sua irredutível margem de apreciação. O que é
muito mais do que, à primeira vista, poderia entender-se: o juiz utiliza para a
fixação dos factos e, bem assim, para a aplicação da lei aos factos fixados, os
juízos que foi obtendo através da geral experiência da vida ou das regras da
ciência, arte ou técnica por si adquiridas, o que se compatibiliza com o âmbito
do recurso de revista alargada em causa'.
4.- As considerações constantes do citado Acórdão nº
399/94 e ora transcritas, aproveitam integralmente ao caso presente e servem
para fundamentar a respectiva decisão que é a de negar provimento ao recurso.
III
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 26 de Junho de 1995
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Antero Alves Monteiro Dinis
Armindo Ribeiro Mendes ( vencido nos termos das
declarações de voto publicadas em anexo aos Acórdãos nºs 170/94 e 524/94,
estando publicado o primeiro no Diário da República, II Série, de 19 de Julho de
1994)
Maria da Assunção Esteves (vencida nos termos da
declaração de voto aposta ao Acórdão nº 170/94)
José Manuel Cardoso da Costa