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Processo: n.º 643/92.
1ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Nunes de Almeida.
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 — A., Procurador-Geral adjunto, veio interpor recurso contencioso de duas
deliberações do plenário do Conselho Superior da Magistratura (CSM) para a
secção do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) prevista no n.º 2 do artigo 168.º da
Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, deliberações estas ambas de 13 de Março de 1990 e
pelas quais (1.ª) se definiu o critério de acesso dos Procuradores-Gerais
adjuntos, fazendo sua interpretação (por maioria) do artigo 51.º da Lei n.º
21/85 e (2.ª) se nomeou Juiz Conselheiro o Desembargador Dr. B..
Juntou extracto da acta n.º 8/90, de onde constam as deliberações em causa e
fotocópia do Diário da República em que foi publicado o resultado da graduação
no processo de concurso curricular de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.
Foram produzidas alegações pelo recorrente que concluiu no sentido de que os
actos impugnados devem ser anulados por violação de lei expressa — do artigo
52.º, n.os 2 e 3, da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho.
A entidade recorrida — CSM — também apresentou alegações perante o STJ, tendo
formulado as seguintes conclusões:
A — No n.º 2 do artigo 52.º do EMJ, privilegia-se o mérito.
B — Com o n.º 3 do mesmo artigo, pretendeu o legislador corrigir quaisquer
injustiças resultantes do uso exclusivo desse privilégio.
C — Daqui resulta que a tese do recorrente só seria defensável e só poderia ser
aceite, se considerarmos esse n.º 3, como inexistente.
D — Como isso não é possível, temos de concluir, como se conclui, na deliberação
recorrida, que a nomeação de um procurador-geral adjunto só poderá ter lugar
desde que já nomeado um juiz de Relação com menor antiguidade.
E — O que significa que, negando-se provimento ao recurso, se fará justiça.
Nos termos do que se dispõe no artigo 176.º do EMJ (Lei n.º 21/85, de 30 de
Julho), o Ministério Público junto do STJ teve também prazo para alegações, nas
quais formulou as seguintes conclusões:
1.ª Os actos impugnados violaram os dispositivos do artigo 52.º, n.os 2 e 3,
do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei n.º 21/85, de 30 de Julho);
2.º Deverão, consequentemente, ser anulados por sofrerem do vício de violação
de lei, desta sorte se concedendo integral provimento ao recurso.
2 — O STJ, pela secção de contencioso referida, veio a proferir, em 11 de Abril
de 1991, um acórdão pelo qual se decidiu negar provimento ao recurso interposto,
por um lado, por entender que a deliberação impugnada na parte em que define os
critérios de acesso não tem a natureza de acto definitivo e executório, e, por
outro, por entender que a interpretação do n.º 3 do artigo 52.º do EMJ feita na
deliberação (a exigência legal da antiguidade no caso de concorrência de
Desembargadores com Procuradores-Gerais adjuntos não se limita ao concurso
curricular mas deve abranger também a nomeação) é a que permite compatibilizar o
n.º 2 do artigo 52.º do EMJ com o n.º 3, afastando o argumento da oposição do
assim decidido com o decidido no acórdão proferido em 2 de Fevereiro de 1988,
com o fundamento de que se tratava de situações diferentes (o concurso para
nomeação foi entre um Procurador-Geral adjunto e um jurista de reconhecido
mérito).
Notificado deste acórdão, o representante do Ministério Público junto do STJ
veio interpor recurso para o Plenário daquele Tribunal, com fundamento em que
«deve entender-se que das decisões da Secção prevista no n.º 2 do artigo 168.º
do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei n.º 21/85, de 30 de Julho) cabe
sempre recurso para o Plenário do Supremo Tribunal de Justiça», sendo a
interpretação contrária violadora do princípio da igualdade «pois enquanto das
decisões do Conselho Superior do Ministério Público cabem, sucessivamente,
recurso para a Secção de Contencioso administrativo do Supremo Tribunal
Administrativo (STA) e para o respectivo Pleno [artigos 24.º, alínea a), e 26.º,
n.º 1, alínea d), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais —
Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril], já das decisões do paralelo Conselho
Superior da Magistratura só caberia um grau de recurso.
Para além deste recurso, e em alternativa, interpôs o Ministério Público recurso
nos termos dos artigos 763.º e seguintes do Código de Processo Civil (CPC), por
o acórdão recorrido estar em oposição com o decidido pelo mesmo Tribunal em 2 de
Fevereiro de 1988.
Por despacho de 5 de Junho de 1991, o relator recebeu o recurso interposto ao
abrigo do artigo 763.º do CPC, mas não recebeu o recurso interposto para o
Plenário do STJ.
Notificado deste despacho, o Ministério Público veio requerer que sobre o mesmo
recaísse acórdão, com os seguintes fundamentos:
O despacho ora reclamado, ao rejeitar essa parte do requerimento (em que se
sustentava que cabe sempre recurso da decisão da secção de contencioso,
independentemente de oposição de julgados, pois só assim se respeitaria o
princípio da igualdade), implicitamente interpretou o artigo 168.º do Estatuto
dos Magistrados Judiciais, como prevendo em regra apenas um grau de recurso das
deliberações do Conselho Superior da Magistratura.
Porém, como se aduziu naquele requerimento tal interpretação é inconstitucional,
porque estabelece, sem fundamento racional bastante, uma discriminação entre o
regime dos recursos das deliberações do Conselho Superior da Magistratura e o
regime dos recursos das deliberações do paralelo Conselho Superior do Ministério
Público.
Assim, o despacho reclamado fez aplicação da norma do artigo 168.º do Estatuto
dos Magistrados Judiciais, com uma interpretação que o requerente já arguira de
inconstitucional, pelo que deferindo-se a presente reclamação devera tal decisão
ser substituída por outra que admita o recurso interposto.
3 — Ouvido sobre este requerimento, o CSM veio responder no sentido do
indeferimento da reclamação por a desigualdade de situações detectada não ser
violadora do princípio da igualdade e por não estar constitucionalmente
garantida a existência de dois graus de jurisdição em contencioso
administrativo.
Por acórdão de 2 de Julho de 1992, o STJ veio a confirmar o despacho reclamado,
com base na seguinte fundamentação:
Efectivamente, não podemos considerar equiparáveis as duas situações:
Na verdade, para apreciação do recurso das deliberações do Conselho Superior da
Magistratura, o Supremo Tribunal de Justiça funciona através de uma secção
constituída pelo seu Presidente, que tem voto de qualidade, e quatro juízes, um
de cada secção, anual e sucessivamente designados, tendo em conta a respectiva
antiguidade (artigo 168.º, n.º 2, do EMJ).
Diversamente, o julgamento do recurso de actos em matéria administrativa do
Conselho Superior do Ministério Público compete em regra ao relator e a dois
outros juízes da subsecção do contencioso administrativo, com recurso, quanto à
matéria de direito, para o pleno da secção que é constituída pelo
vice-presidente do Tribunal e por 9 dos seus juízes, incluídos os
vice-presidentes, o relator e, no número necessário, os juízes mais antigos na
Secção (artigos 21.º, n.º 3, e 24.º e seguintes do ETAF).
É transparente a diversidade das situações: no primeiro caso, o recurso é
apreciado por quatro juízes de secções heterogéneas; no segundo caso, apenas
intervêm três juízes da mesma subsecção.
Por consequência, salvo o devido respeito, não pode argumentar-se no sentido da
inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 168.º do EMJ por prever apenas recurso
para a secção contenciosa do Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento na
violação do princípio da igualdade.
Por outro lado, só funciona em plenário nas hipóteses previstas no artigo 26.º
(exclui-se o plenário de secções criminais por evidente inaplicabilidade) da Lei
n.º 38/87, de 23 de Dezembro.
É deste acórdão confirmativo do despacho do relator que não recebeu o recurso
interposto para o Plenário do STJ que o Ministério Público interpõe recurso para
o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da
Constituição e do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro [com as alterações da Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro — Lei do Tribunal
Constitucional (LTC)].
O recorrente pretende que o Tribunal aprecie a conformidade constitucional da
interpretação feita na decisão recorrida do artigo 168.º, n.º 2, do Estatuto dos
Magistrados Judiciais, no sentido de tal preceito não permitir recurso para o
Plenário do Supremo Tribunal de Justiça dos acórdãos proferidos na secção
prevista naquela norma, sendo o fundamento a violação do princípio
constitucional da igualdade por se verificar uma desigualdade não justificada de
graus de jurisdição nos recursos que podem ser interpostos das deliberações do
Conselho Superior da Magistratura e do Conselho Superior do Ministério Público.
4 — Neste Tribunal o Procurador-Geral adjunto em exercício apresentou alegações
nas quais formulou as seguintes conclusões:
1.º É inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, proclamado
pelo artigo 13.º da Lei Fundamental, a norma constante do artigo 168.º, n.º 2,
do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei n.º 21/85, de 30 de Julho) na
interpretação restritiva que dela faz o acórdão recorrido para não permitir o
recurso para o Plenário do Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido pela
secção do contencioso daquele Supremo Tribunal.
2.º Deve, pois, conceder-se provimento ao presente recurso, determinando-se a
substituição da decisão que indeferiu o recurso para o plenário do Supremo
Tribunal de Justiça por outra que o considere admitido.
Também o Conselho Superior da Magistratura apresentou as contra-alegações, tendo
aí formulado as seguintes conclusões:
a) Não cabe nos poderes cognoscitivos do Tribunal Constitucional a
apreciação de actos ou decisões jurisdicionais interpretativos de uma dada
norma;
b) Diversamente do que sucede no Supremo Tribunal Administrativo que
das subsecções, julgando em 1.ª instância se recorre para o Pleno da secção, das
decisões da secção do contencioso do Supremo Tribunal de Justiça não cabe
recurso para o Plenário deste mesmo Tribunal;
c) Em contencioso administrativo, não está constitucionalmente
garantida a existência de dois graus de jurisdição pelo que o artigo 168.º da
Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, não está ferido de qualquer
inconstitucionalidade;
d) As Magistraturas Judiciais e do Ministério Público, embora
paralelas, não são iguais, pelo que não viola o princípio da igualdade, o facto
das decisões do Conselho Superior do Ministério Público poder haver apreciação
em duplo grau de recurso e das do Conselho Superior da Magistratura haver apenas
um grau de recurso. Por isso, também neste particular não é inconstitucional o
artigo 168.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II — Fundamentos
5 — O CSM suscitou nas respectivas contra-alegações a questão prévia do não
conhecimento do recurso por falta de competência do Tribunal Constitucional para
apreciar a conformidade constitucional de actos ou decisões jurisdicionais
interpretativos de uma dada norma.
Esta questão prévia não pode deixar de ser desatendida.
De acordo com o preceituado no artigo 280.º da Constituição, cabe recurso para o
Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de
uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que apliquem uma norma
apesar de ter sido suscitada, durante o processo, a sua inconstitucionalidade.
Assim, o objecto da fiscalização concreta de constitucionalidade há-de ser
sempre uma questão concreta de inconstitucionalidade, isto é, uma questão de
desconformidade entre uma norma ou uma sua interpretação a aplicar no processo
sub judicio e uma norma ou princípio constitucional.
Sendo, por isso, seguro que o legislador constituinte elegeu como conceito
identificador do objecto típico da actividade do Tribunal o conceito de norma
jurídica, bem pode a actividade de controlo de conformidade constitucional
recair apenas sobre um certo segmento normativo do preceito em apreço (cada
preceito pode conter diversas normas) ou até apenas sobre uma determinada
interpretação.
A este propósito, escreveu-se no Acórdão n.º 128/84, de 12 de Dezembro de 1984
(in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º Vol., 1984, p. 428), o seguinte:
Não é raro que uma mesma norma comporte várias interpretações, fenómeno que
resulta, além do mais, de em certo momento, se conceder prevalência a um ou
outro dos vários argumentos utilizados como auxiliares de interpretação —
elemento histórico, sistemático, literal, teleológico.
E não é impossível que dessas várias interpretações uma, ou várias até, tornem a
norma compatível à Constituição, enquanto outra, ou outras, a condenem
irremissivelmente.
Para fazer uma interpretação conforme à Constituição, o Tribunal Constitucional
tem de determinar quais as interpretações que invalidam a norma e quais as que
lhe garantem subsistência válida no ordenamento jurídico. Isto é, declara,
expressa ou implicitamente, algumas interpretações inconstitucionais ou ilegais
e outras não inconstitucionais ou não ilegais (cfr. artigo 80.º, n.º 3, da Lei
n.º 28/82).
Esta jurisprudência tem vindo a ser mantida pelo Tribunal, não se vislumbrando
quaisquer motivos para a modificar.
Tem, pois, de se concluir que o Tribunal Constitucional pode conhecer das
questões de constitucionalidade concretas sempre que imputadas pelo recorrente a
uma interpretação de uma dada norma jurídica aplicada na decisão recorrida e que
foi considerada violadora de norma ou princípio constitucional, desde que a
questão tenha sido suscitada durante o processo.
Ora, no caso em apreço, o Ministério Público recorrente, logo no requerimento de
interposição do recurso da decisão da secção de Contencioso para o Plenário do
STJ suscitou a questão de constitucionalidade que agora pretende ver apreciada
por este Tribunal, qual seja, a de a interpretação da norma do artigo 168.º, n.º
2, do EMJ, no sentido de que das decisões daquela secção de contencioso do STJ
não existe outro grau de recurso, é inconstitucional por violar o princípio da
igualdade constante do artigo 13.º da Constituição.
O acórdão recorrido, ao confirmar o despacho do relator na parte em que se
decidiu pelo não recebimento do recurso interposto para o referido Plenário,
aplicou a mencionada norma com a interpretação considerada pelo recorrente como
inconstitucional, pelo que, detendo o Tribunal Constitucional a última palavra
em tal matéria — fiscalização e controlo da constitucionalidade — deve conhecer
da questão assim suscitada nos autos, indeferindo-se a questão prévia levantada
pela entidade recorrida.
6 — Importa agora analisar a questão de constitucionalidade que constitui o
objecto do presente recurso.
Segundo o recorrente, a interpretação adoptada na decisão recorrida
relativamente ao artigo 168.º, n.º 2, do EMJ (Lei n.º 21/85, de 30 de Julho), no
sentido de que não cabe recurso para o Plenário do STJ das decisões da secção de
contencioso prevista em tal preceito, viola o princípio da igualdade, constante
do artigo 13.º da Constituição.
Com esta questão de constitucionalidade, o que o recorrente pretende, afinal, é
ver reconhecido um duplo grau de jurisdição no contencioso administrativo da
magistratura judicial.
Vejamos.
Na primitiva redacção da Lei n.º 85/77, de 13 de Dezembro, o artigo 175.º, n.º
1, estabelecia que das deliberações do Conselho Superior da Magistratura se
recorria para o Pleno do STJ.
Mas, a breve trecho, se concluiu que a necessária intervenção de todos os juízes
do STJ tornava dificilmente praticável a realização da justiça em sede tão
sensível como é a que abrange o contencioso dos próprios magistrados judiciais.
Assim, o Decreto-Lei n.º 348/80, de 3 de Setembro, deu nova redacção ao artigo
175.º e no n.º 1 eliminou a referência ao Pleno, mantendo apenas a disposição
enquanto determina que das deliberações do plenário do Conselho Superior da
Magistratura se recorre para o STJ e, no n.º 2 do preceito, criou, para apreciar
o recurso do n.º 1, uma secção, constituída pelo Presidente do Supremo e quatro
juízes, um de cada uma das outras secções, anual e sucessivamente designado pelo
presidente, tendo em consideração a respectiva antiguidade.
Esta estrutura de apreciação dos recursos interpostos das deliberações do
plenário do CSM foi mantida, com ligeiras alterações de redacção, pela Lei n.º
21/85 (EMJ), aqui em causa.
Os trâmites do recurso constam dos artigos 169.º a 179.º do EMJ, não se
consignando em qualquer destas normas a possibilidade de recorrer da decisão da
secção de contencioso prevista no n.º 2 do artigo 168.º do EMJ.
Assim, das decisões do plenário do CSM, apenas prevê a lei o recurso em um grau
de jurisdição: recurso para a secção de contencioso do STJ.
Entende o recorrente que a violação do princípio da igualdade decorre do facto
de a interpretação sustentada na decisão recorrida estabelecer, sem um
fundamento racional bastante, uma discriminação entre o regime dos recursos (um
único grau de jurisdição) previstos das decisões do CSM e o regime dos recursos
(duplo grau de jurisdição) das deliberações do paralelo Conselho Superior do
Ministério Público (CSMP).
Importa, assim e antes de mais, delimitar o sentido da jurisprudência do
Tribunal em matéria de garantia constitucional de um segundo grau de jurisdição,
de seguida, abordar, em forma comparativa, o regime legalmente fixado para os
recursos a interpor das deliberações do CSM e do CSMP, para depois analisar se
existe ou não um fundamento baseado em discriminação injustificada entre tais
regimes legais de recurso que, razoavelmente, permita considerar violada a
garantia constitucional do duplo grau de jurisdição, em tal matéria.
7 — O Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos
tribunais não garante em todos os casos o direito a um duplo grau de jurisdição
(cfr. Acórdão n.º 8/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º Vol., p.
235; mais recentemente, os Acórdãos n.os 265/94, 340/94, 474/94 e 475/94, todos
inéditos, com citação de outros acórdãos anteriores no mesmo sentido).
Assim, em matéria penal, a Constituição garante aos arguidos que o processo
penal lhes tem de assegurar «todas as garantias de defesa», ou seja, todos os
direitos e instrumentos necessários para o arguido defender a sua posição e
contrariar a acusação.
Um dos meios ou uma das expressões do direito de defesa é o direito de recorrer,
precisando todavia a jurisprudência do Tribunal que ressalvado o «núcleo
essencial» do direito de defesa centrado no direito de recorrer da sentença
condenatória e dos actos judiciais que privem ou restrinjam a liberdade do
arguido ou afectem outros direitos fundamentais seus, o direito de recorrer pode
ser restringido ou limitado em certas fases do processo, podendo mesmo não ser
admitido relativamente a certos actos do juiz [v. g., despacho, que designa dia
para julgamento em processo correccional — Acórdão n.º 31/87 (ibidem, p. 463)],
nem garantir um triplo grau de jurisdição (Acórdão n.º 178/88, in Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 12.º Vol., p. 569).
Fora do âmbito do processo penal, o Tribunal tem entendido que a Constituição
impõe tão-somente que se assegure, sem restrições, o acesso a um grau de
jurisdição, o que constitui a garantia mínima de acesso aos tribunais, não
gozando assim a garantia do duplo grau de jurisdição de protecção generalizada
(cfr., sobre este aspecto, Lopes do Rego, «Acesso ao direito e aos tribunais»,
in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, p. 80).
Uma vez que a Constituição não garante, por forma expressa, a existência do
direito ao recurso, o legislador ordinário goza neste domínio de uma ampla
margem de discricionariedade na conformação concreta dos casos em que são
admissíveis e dos requisitos dos recursos em domínios como o direito civil,
laboral e administrativo.
Mas tal liberdade de conformação não é total: desde logo, o legislador ordinário
não pode suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos (neste
sentido, Ribeiro Mendes, in Recursos em Processo Civil, 1992, pp. 99 e segs.),
estando também certamente vedada ao legislador ordinário «a redução intolerável
ou arbitrária do direito ao recurso», devendo considerar-se que existe «um
genérico direito de recurso dos actos jurisdicionais, cujo preciso conteúdo pode
ser tratado pelo legislador ordinário, com maior ou menor amplitude» (cfr.
Acórdão n.º 287/90, in Diário da República, II Série, de 20 de Fevereiro de
1991).
Dentro destes limites, o legislador ordinário pode ampliar ou restringir os
recursos civis, mas tal liberdade não pode significar que, como Lopes do Rego
refere (ob. cit., p. 83), «possa estabelecer arbitrariamente limitações ao
direito ao recurso em determinados processos ou situações, impondo um regime de
desfavor não legitimado por justificação objectiva plausível: é que, se o fizer,
resultará violado o princípio constitucional da igualdade, proclamado pelo
artigo 13.º da Lei Fundamental».
8 — No caso em apreço, está em causa uma decisão do STJ que não admitiu um
recurso interposto de decisão proferida pela secção de contencioso (artigo
168.º, n.º 2, do EMJ) para o plenário do STJ, arguida de inconstitucional por
violar o princípio da igualdade não admitindo um duplo grau de recurso como no
caso das decisões do Conselho Superior de Ministério Público.
Vejamos, pois, o respectivo regime de recursos.
8.1 — No caso do Conselho Superior da Magistratura (CSM), a versão originária da
Constituição estabelecia no seu artigo 223.º que «a lei determina as regras de
composição do Conselho Superior da Magistratura, o qual deverá incluir membros
de entre si eleitos pelos juízes» (n.º 1), enquanto que no n.º 2 se determinava
que «a nomeação, colocação, transferência e promoção dos juízes e o exercício da
acção disciplinar competem ao Conselho Superior da Magistratura».
No respeitante ao Ministério Público, naquela versão da Constituição, contém-se
uma norma idêntica à do CSM no que se refere à nomeação, colocação,
transferência e promoção, mas atribuindo a respectiva competência à
Procuradoria-Geral da República, remetendo para a lei as regras de organização e
composição da Procuradoria.
Porém, com a Lei de Revisão Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro, a
Constituição, para além de manter as normas sobre nomeação, colocação,
transferência e promoção dos juízes e de continuar a atribuir à lei a
competência para definir as regras e a competência para aqueles actos e para o
exercício da acção disciplinar, passa a fixar em artigo próprio — o artigo 223.º
— a constituição do CSM (n.º 1), mandando aplicar a todos os vogais as regras
sobre garantias e incompatibilidade dos juízes, consentindo ainda que a lei
ordinária preveja que façam parte do CSM funcionários de justiça para resolver
questões com estes relacionadas.
No que respeita ao Ministério Público, a diferença constatada respeita à
inclusão no artigo 226.º, n.º 2, da exigência de existência na
Procuradoria-Geral da República de um órgão colegial que deverá incluir membros
de entre si eleitos pelos magistrados do Ministério Público.
Com a Lei n.º 1/89, de 8 de Julho, procedeu-se à segunda Revisão Constitucional
e, no que respeita à magistratura judicial, a norma sobre nomea-ção, colocação,
transferência e promoção de juízes foi acrescentada de um número para atribuir
ao conselho superior dos Tribunais administrativos e fiscais a competência para
a prática de tais actos relativamente aos respectivos juízes, bem como o
exercício da acção disciplinar (n.º 9 do artigo 219.º), mantendo a norma sobre a
constituição do CSM a mesma redacção, salvo a eliminação do termo
«incompatibilidades» do n.º 2 do artigo 220.º (antes, artigo 223.º).
No que respeita ao Ministério Público, após a revisão de 1989, para além de se
ter reconhecido a sua autonomia, nos termos da lei, a Constituição refere pela
primeira vez o Conselho Superior do Ministério Público, como integrando a
Procuradoria-Geral da República, com uma constituição que inclui membros eleitos
pela Assembleia da República e membros de entre si eleitos pelos magistrados do
Ministério Público.
O regime de recursos das decisões do CSM constante do respectivo Estatuto dos
Magistrados Judiciais já foi descrito supra, no ponto 6. Importa aqui apenas
acrescentar que desde a versão originária do EMJ (Lei n.º 85/77) se estabeleceu
que «constituem fundamentos de recurso os previstos na lei para os recursos a
interpor dos actos do Governo», fórmula que se foi mantendo até à versão em
vigor (artigo 168.º, n.º 5, da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho).
Importa também referir que o EMJ em vigor estabelece que ao recurso das
deliberações do CSM são subsidiariamente aplicáveis «as normas que regem os
trâmites processuais dos recursos de contencioso administrativo para o Supremo
Tribunal Administrativo», preceito este que na versão originária do EMJ se
referia apenas às normas que regulavam o processo de recurso para a 1.ª Secção
do STA.
8.2 — No que se refere aos recursos das deliberações do CSMN, o artigo 30.º da
Lei n.º 39/78, de 5 de Julho, estabelecia que das mesmas cabe recurso
contencioso «a interpor nos termos e segundo o regime dos recursos dos actos do
Governo», disposição esta que ainda hoje se mantém com a mesma redacção da
versão originária.
Assim, das deliberações do CSMN há recurso para a 1.ª secção do STA [artigo
26.º, n.º 1, alínea d), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais —
ETAF], e desta decisão pode haver recurso para o Pleno da Secção do Contencioso
Administrativo [artigo 24.º, alínea a), do ETAF].
8.3 — Mas, na organização judiciária portuguesa não existem apenas estes dois
conselhos. Com efeito, com o Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, criou-se o
Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, com a competência e
composição constantes dos artigos 98.º e 99.º daquele diploma.
De acordo com o preceituado no artigo 24.º, alínea d), do ETAF, dos actos deste
Conselho e também dos praticados pelo seu Presidente é admitido recurso
directamente para o Pleno da Secção do Contencioso Administrativo, sendo ainda o
Pleno desta Secção competente para conhecer dos pedidos de suspensão de eficácia
de tais actos.
Por outro lado, com o Decreto-Lei n.º 376/87, de 11 de Dezembro, que aprovou a
Lei Orgânica das Secretarias Judiciais e o Estatuto dos Funcionários de Justiça,
criou-se o Conselho dos Oficiais de Justiça, com a competência prevista no
Capítulo V do diploma, que sofreu as alterações posteriores dos Decretos-Leis
n.os 167/89, de 23 de Maio, 378/91, de 9 de Outubro, e 364/93, de 22 de Outubro.
De acordo com o preceituado no artigo 122.º do Decreto-Lei n.º 376/87, das
deliberações do Conselho dos Oficiais de Justiça cabe recurso para o tribunal
administrativo de círculo competente.
Desta curta análise do regime de recursos das deliberações dos diversos
Conselhos referidos mostra-se que é o dos Oficiais de Justiça o que mais amplas
possibilidades de recurso apresenta, na medida em que, tratando as deliberações
em causa como actos administrativos, permite que sejam contenciosamente
impugnados logo no tribunal administrativo de círculo, com recurso para a 1.ª
Secção do STA e para o Pleno da Secção no caso previsto na alínea b) do artigo
24.º do ETAF.
Dentro da mesma perspectiva, seguem-se os recursos das deliberações do CSMN, com
recurso directo para a 1.ª Secção do STA e para o pleno de Secção, nos termos da
alínea a) do referido artigo 24.º do ETAF.
Finalmente, e em posição similar, situam-se os recursos das deliberações do
Conselho Superior da Magistratura e do Conselho Superior dos Tribunais
Administrativos e Fiscais: no primeiro caso, recurso para uma «secção» apenas
constituída para esse efeito, com específica competência, que se esgota com o
julgamento dos processos distribuídos, sem qualquer outro grau de recurso
ordinário; no segundo caso, recurso directo para o Pleno da secção de
contencioso administrativo, não se prevendo também qualquer outro grau de
recurso ordinário.
Face a este quadro legal, importa averiguar se algum fundamento existe que
permita afirmar a alegada violação do princípio da igualdade.
9 — A violação do princípio da igualdade ocorreria, no caso e segundo o
recorrente, pelo facto de o despacho recorrido ter feito uma interpretação
restritiva do artigo 168.º, n.º 2, do EMJ, no sentido de que tal norma não
permite o recurso para o plenário do STJ das decisões proferidas pela secção de
contencioso daquele Tribunal em matéria de impugnação de deliberações do
Conselho Superior da Magistratura, ao contrário do que a lei prevê quanto aos
recursos de deliberações do Conselho Superior do Ministério Público.
Vejamos.
De acordo com o preceituado no artigo 13.º da Constituição, «todos os cidadãos
têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei» (n.º 1), não podendo
ninguém «ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito
ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua,
território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução,
situação económica ou condição social» (n.º 2).
O princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei está assim consagrado na
Constituição como um direito fundamental e, enquanto tal, beneficia das
garantias relativas aos direitos e liberdades, como seja, a da sua imediata
aplicabilidade e da respectiva vinculação de todas as entidades públicas,
qualquer que seja a sua competência: legislativa, administrativa ou judicial.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa
Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., pp. 148 e segs.), «o princípio da igualdade conjuga
dialeticamente as dimensões liberais, democrática e socialistas inerentes ao
conceito de Estado de direito democrático, impondo a igualdade na aplicação do
direito, fundamentalmente assegurada pela tendencial universalidade da lei e
pela proibição de diferenciação de cidadãos com base em considerações meramente
subjectivas, garantindo a igualdade de participação na vida política da
colectividade e de acesso aos cargos públicos e funções políticas, e exigindo a
eliminação das desigualdades de facto.
O princípio da igualdade, enquanto «princípio de conteúdo pluridimensional,
postula várias exigências, entre as quais as de obrigar a um tratamento igual
das situações de facto iguais e a um tratamento desigual de situações de facto
desiguais, proibindo, inversamente, o tratamento desigual das situações iguais e
o tratamento igual das situações desiguais» (cfr. Acórdão n.º 186/90, in Diário
da República, II Série, de 12 de Setembro de 1990).
Ora, não havendo seres absolutamente iguais em todas as suas características,
inexistem também situações rigorosamente iguais, não podendo o princípio da
igualdade ser entendido em termos absolutos: a determinação da igualdade ou
desigualdade das situações exige uma prévia definição do elemento que, retirado
do conjunto, permite que se estabeleça um juízo de igualdade — o chamado «padrão
de igualdade».
Este «padrão» é o elemento de conexão e de relacionamento das situações que
permite submetê-las a um juízo comparativo e que deve abranger o conjunto de
pessoas ou situações em relação às quais se verifica um tratamento
jurídico-normativo distinto.
O princípio da igualdade exige, assim, um acto jurídico de avaliação,
desempenhando aqui o «padrão de igualdade» ou critério de comparação um papel
decisivo para decidir se os dois elementos em comparação são ou não iguais e,
por isso, reclamam o mesmo tratamento jurídico.
Porém, como refere Alves Correia (in O plano urbanístico e o princípio da
igualdade, Almedina, p. 398), «a igualdade pressupõe também necessariamente
diferença de objectos. ‘Apenas aquilo que é diferente pode ser comparado entre
si e ser igual’. ‘Igualdade é uma relação de diferença’». E, mais adiante, o
mesmo autor refere que «A decisão de igualdade baseia-se na essencialidade ou
não essencialidade das características próprias dos objectos comparados, depende
do ponto de vista com base no qual é realizada a comparação».
Não deverão utilizar-se aqui critérios puramente formais mas os padrões
valorativos vigentes interpretados objectivamente. De qualquer modo, aquilo que
deve considerar-se substancialmente igual é uma questão que não pode ter uma só
resposta para todos os tempos e para todas as situações, porquanto o princípio
da igualdade não funciona por forma geral e abstracta, mas perante situações ou
termos de comparação que devam reputar-se concretamente iguais: não pode ser uma
mera igualdade perante a lei mas uma igualdade da lei.
Com este entendimento, o princípio da igualdade coloca o problema de saber o
que em determinado tipo de situações ou para certos efeitos deve ser considerado
igual, ou seja, a prévia identificação dos factores que, em cada caso, se devem
ter por relevantes para tal juízo. O n.º 2 do artigo 13.º da Constituição
referencia uma série de circunstâncias que, em princípio, não são susceptíveis
de fundamentar uma desigualdade de tratamento. Mas uma tal elencação não
permite concluir que, desde que a mesma seja respeitada, poderá o legislador
estabelecer livremente distinções. Com efeito, ao legislador sempre estarão
proibidas as distinções arbitrárias e discriminatórias, ou seja, desprovidas de
justificação racional ou de fundamento material bastante, de que é índice
decisivo a desadequação ou desproporção da regulamentação legal à situação de
facto que pretende regular.
A interpretação do princípio da igualdade como proibição do arbítrio vem sendo
adoptada pelo Tribunal Constitucional (num entendimento que remonta já à
Comissão Constitucional), citando-se como meros exemplos os Acórdãos n.os 39/88
(in Diário da República, I Série, de 3 de Março de 1988) e 157/88 (in Diário da
República, I Série, de 26 de Julho de 1988). Mas, como se refere neste último
aresto, esta interpretação do princípio da igualdade dá-nos o sentido e alcance
deste princípio «na sua função ‘negativa’ de princípio de ‘controlo’», dimensão
esta importante, mas que hoje se considera insuficiente para extrair do
princípio da igualdade todas as potencialidades que nele se contêm.
Como expressamente refere Alves Correia (ibidem, p. 4249), «A razão é clara: ‘a
proibição do arbítrio’ exprime apenas os casos limite de violação do princípio
da igualdade que merecem a censura do tribunal, o que não exclui a existência
para além daqueles de outros que contrariem aquele princípio. Noutros termos, a
igualdade jurídica pode também ser violada sem que exista uma decisão
arbitrária».
Sobre a forma como actualmente o princípio da igualdade é entendido na doutrina
e jurisprudência, escreve Gomes Canotilho (in Revista de Legislação e de
Jurisprudência, ano 124.º, n.º 3811, p. 327, em «Anotação» ao Acórdão n.º 359/91
deste Tribunal), o seguinte:
A operatividade do princípio da igualdade, como se salienta na juspublicistica
mais recente, passa pela comparação das situações fácticas e jurídicas concretas
de diferentes grupos destinatários da actividade normativa, a fim de se saber se
entre eles se verificam diferenças fácticas com um peso suficiente para
justificar um tratamento jurídico diferenciado.
Esta formulação é — ao que nos parece — tributária da recente mudança
jurisprudencial de que dá conta Alves Correia (ibidem, p. 425) no Tribunal
Constitucional da então R.F.A.: «Interessa, por fim, assinalar que a mais
recente jurisprudência do Tribunal Constitucional da R.F.A. vem abandonando a
teoria da proibição do arbítrio, procurando substituí-la por um critério mais
compreensivo, sem contudo, eliminar a liberdade de conformação do legislador».
A nova formulação do BVerfG é a seguinte: «Esta norma constitucional (o artigo
3.º, n.º 1) obriga a tratar de modo igual todos os homens perante a lei.
Consequentemente, este direito fundamental é sobretudo violado se um grupo de
destinatários da norma em comparação com outros destinatários da norma é tratado
de modo diferente, sem que existam entre os dois grupos diferenças de tal
natureza (Art) e de tal peso (Gewicht) que possam justificar o tratamento
desigual».
Mas, ainda que esta posição não esteja totalmente isenta de críticas de que
Alves Correia dá conta (cfr. ob. cit., p. 426), o certo é que, sendo este
critério mais compreensivo do que o da proibição do arbítrio, pode ser da maior
utilidade sempre que se torne necessário apurar se a diferença ou as diferenças
detectadas entre os grupos de destinatários da norma questionada são de tal
natureza que justificam a desigualdade de tratamento.
Assim, e de um modo esquemático pode dizer-se (com Pieroth/Schlink, «Grundrechte
— Staatsrecht II», p. 115, n.º 506) que, para se poder reconhecer um fundamento
material ao desigual tratamento normativo de situações essencialmente iguais,
deve aquele prosseguir um fim legítimo, ser adequado e necessário para realizar
tal fim e manter uma relação de equitativa adequação com o valor que subjaz ao
fim visado.
Importa, por isso, apurar se, tal como a questão vem posta no caso em apreço, o
princípio da igualdade foi ou não violado em qualquer das referidas dimensões.
10 — O Ministério Público assenta a invocada violação do princípio da igualdade
no facto de a lei admitir o segundo grau de jurisdição no caso de recursos de
deliberações do CSMP, não o fazendo no recursos das deliberações do CSM, sem uma
justificação objectiva que torne razoável tal discriminação.
O funcionamento do princípio da igualdade impõe que o legislador trate de forma
igual as situações que possam qualificar-se de essencialmente idênticas, não
podendo aí introduzir diferenciações sem um fundamento material bastante.
Importa porém, assegurar, antes de qualquer outra coisa, que se está perante
situações que sejam «essencialmente iguais», pois, se o não forem, não podendo
entender-se o princípio constitucional da igualdade de forma absoluta, isto é,
em moldes tais que fique o legislador impedido de estabelecer uma diferente
disciplina quando forem diversas as situações objecto de regulação normativa,
parece claro que a diversa regulamentação não viola o princípio da igualdade.
O que está em causa é o diferente regime de recursos das decisões dos Conselhos
Superiores do Ministério Público e da Magistratura.
É certo que em ambos os casos se trata de recursos de deliberações de Conselhos
Superiores, isto é, dos órgãos máximos de gestão das respectivas magistraturas,
deliberações cuja natureza primordialmente administrativa não é hoje questionada
e que, em geral, versam matérias também de natureza idêntica, v. g., a nomeação,
colocação, transferência e promoção dos respectivos magistrados ou o exercício
da competente acção disciplinar.
Porém, não é possível ignorar que as deliberações em causa, apesar da sua
natureza e objecto similares, respeitam a magistraturas que embora usualmente
designadas de «paralelas» são regidas por princípios diferentes e têm estruturas
próprias que as tornam radicalmente diferentes entre si.
Esta diversidade tem, aliás, origem na própria matriz constitucional das
magistraturas Judicial e do Ministério Público e, por isso, é não só
incontornável pela lei ordinária como também não poderá deixar de influenciar o
regime legal que regula as respectivas relações interprofissionais e
disciplinares e, consequentemente, de algum modo, influir no particular regime
de impugnação das deliberações dos seus órgãos de cúpula.
11 — Efectivamente, são diferentes as garantias constitucionais que a Lei
Fundamental institui para os tribunais e magistrados judiciais e para os
magistrados do Ministério Público, sendo também diversa a estatuição
constitucional respeitante à composição dos respectivos Conselhos Superiores.
Assim, os tribunais são os órgãos de soberania, dotados de independência e em
que um ou mais juízes procedem à administração da justiça (artigos 205.º, 206.º
e 218.º da CRP), assegurando e defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos, reprimindo a violação da legalidade democrática e
dirimindo os conflitos de interesses públicos e privados (artigo 205.º, n.º 2,
da CRP).
A independência dos Tribunais é, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (in
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. revista, p. 794), «um
elemento essencial da sua definição, uma das regras clássicas do Estado
Constitucional e uma das garantias essenciais do Estado de direito democrático
(artigo 2.º)».
Pelo seu lado, a independência dos juízes é uma das garantias essenciais da
independência dos tribunais, abrangendo segundo aqueles autores (ibidem) não só
a «sua inamovibilidade e irresponsabilidade (artigo 218.º) mas também a sua
liberdade perante quaisquer ordens ou instruções das demais autoridades, além de
um regime adequado de designação, com garantias de isenção e imparcialidade que
evitem o preenchimento dos quadros da magistratura de acordo com os interesses
dos demais poderes do Estado, sobretudo do Governo e da Administração (cfr.
artigos 219.º e 220.º)».
A Constituição remete para a lei a fixação dos requisitos e das regras de
recrutamento dos juízes de primeira instância, mas, no que se refere aos juízes
de segunda instância, é a própria Constituição que determina que o seu
recrutamento se faz «com prevalência do critério do mérito, por concurso
curricular entre juízes de primeira instância. Quanto ao acesso ao Supremo
Tribunal de Justiça, a Constituição apenas impõe a abertura de um concurso
curricular determinando expressamente quem pode ser candidato e remetendo para a
lei ordinária os termos da respectiva regulamentação.
Estes são aspectos ligados ao estatuto dos juízes dos tribunais judiciais, que a
Constituição impõe que seja único, constituindo eles próprios também um corpo
único, o que desde logo implica uma diferenciação estatutária face aos juízes de
outros tribunais mas também a separação funcional e orgânica entre a
magistratura judicial e do Ministério Público, como referem Gomes Canotilho e
Vital Moreira (ibidem, p. 821).
Por outro lado, a Constituição reconhece como uma das garantias essenciais de
todos os juízes a da sua inamovibilidade que, à semelhança do que também
acontece com a garantia da não responsabilização pelas decisões proferidas, a
Constituição não reconheceu de uma forma absoluta mas apenas de modo relativo —
ressalvando os casos ou excepções previstas na lei — garantias estas que,
juntamente com a exigência da dedicação exclusiva dos juízes (também constante
da Constituição), realizam a independência dos tribunais, a qual, todavia, não
pode deixar de pressupor a própria independência dos juízes, que é a
característica essencial e marcante da judicatura.
Mas, no que respeita ao Ministério Público, já a Constituição, para além de
expressamente reconhecer que também esta magistratura goza de estatuto próprio,
não só não lhe reconhece a independência que é atributo dos tribunais mas a mera
«autonomia nos termos da lei» como também, de forma inequívoca, determina que os
«agentes do Ministério Público são, magistrados responsáveis» e
«hierarquicamente subordinados», gozando constitucionalmente de uma
inamovibilidade relativa similar à dos juízes («não podem ser transferidos,
suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei» — artigo
221.º da Constituição).
Existe, assim, uma clara separação — por imposição constitucional — das
carreiras da magistratura judicial e do ministério público, com separação dos
respectivos corpos profissionais e autonomia das respectivas carreiras, as quais
estão submetidas também a princípios constitucionais diversos.
À irresponsabilidade e independência dos juízes corresponde, em contraponto, a
responsabilização e a subordinação hierárquica dos magistrados do Ministério
Público; à independência dos tribunais, enquanto órgãos de soberania competentes
para administrar a justiça corresponde a autonomia do Ministério Público,
enquanto órgão ao qual compete representar o Estado, exercer a acção penal,
defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar.
Por último, não são também idênticas as exigências constitucionais relativamente
à constituição dos órgãos superiores de cúpula de ambas as magistraturas.
Assim, enquanto a constituição do Conselho Superior da Magistratura é
pormenorizadamente indicada no artigo 220.º da Constituição, que não só indica o
presidente do CSM mas também a origem, número e natureza dos respectivos vogais:
dois designados pelo Presidente da República, sendo um magistrado judicial, sete
eleitos pela Assembleia da República, sete juízes eleitos pelos seus pares, de
acordo com o princípio da representação proporcional, no que se refere ao
Conselho Superior do Ministério Público, a Lei Fundamental, para além de o
considerar um órgão compreendido na Procuradoria-Geral da República, limita-se a
referir que «inclui membros eleitos pela Assembleia da República, e membros
entre si eleitos pelos magistrados do Ministério Público», remetendo para a lei
o restante da pertinente regulamentação.
Resulta, assim, claro um manifesto reforço das garantias constitucionais
respeitantes ao CSM, não só pelo facto da particularização da sua constituição
na Lei Fundamental, mas também pelo facto de a própria Constituição mandar
aplicar a todos os vogais do CSM as mesmas regras que impõe no que se refere às
garantias dos juízes, garantias estas que não são nem constitucional nem
legalmente referidas aos vogais do CSMP.
Tem, pois, de se concluir que se não está perante situações que entronquem num
ponto comum que possa servir de parâmetro comparativo; ao invés, trata-se de
carreiras diversas, de género diferente e por isso usualmente referidas como
«paralelas», mas que correspondem a diversas exigências constitucionais e, por
isso, também, os respectivos órgãos de cúpula e as deliberações neles tomadas
não podem ser colocadas na mesma posição para efeitos de imposição da mesma
solução legislativa quanto aos graus de recurso.
Efectivamente, admitida que vem a existência por parte do legislador de uma
certa margem de liberdade de conformação, fora do processo penal em caso de
decisões condenatórias, no sentido de poder optar por um ou dois graus de
jurisdição em matéria de recurso (cfr. ponto 7, supra), nada permite concluir
que a mera consagração de um único grau de recurso em matéria de decisões do CSM
constitua uma violação do espaço de vinculação do legislador que pode
reconhecer-se na existência de dois graus de recurso quanto às deliberações do
CSMP.
Desde logo, não pode deixar de se referir que o legislador, no momento em que
estabeleceu o regime diferenciado, se encontrava face a duas ordens judiciárias
separadas, sendo os tribunais de recurso também diferentes — a ordem judiciária
comum e a ordem judiciária administrativa, correspondendo ao Supremo Tribunal de
Justiça e ao Supremo Tribunal Administrativo.
E parece não poder deixar de se reconhecer que o legislador ordinário, na
modelação da secção a que veio atribuir competência para conhecer das
deliberações do CSM, acabou por se inspirar na própria composição do Pleno do
Supremo Tribunal Administrativo, bastando, para alcançar tal conclusão, comparar
o n.º 2 do artigo 175.º da Lei n.º 85/77 (redacção do Decreto-Lei n.º 348/80, de
3 de Setembro) com os artigos 2.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 699/73, de 28 de
Dezembro: em ambos os casos o presidente do tribunal superior vai buscar um juiz
a cada secção, respeitando a ordem de antiguidade, para funcionarem
sucessivamente por um ano.
E depois de o legislador ter procedido à reforma do STA e da criação do Conselho
Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, consagrando um modelo de
organização judiciária paralelo ao dos tribunais comuns, veio a adoptar para
julgar os recursos das deliberações deste Conselho um sistema de recurso
inteiramente idêntico ao do previsto no artigo 175.º, n.º 2, do EMJ para as
deliberações do CSM.
Com efeito, de acordo com o preceituado no artigo 24.º, alínea d), do ETAF
(Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril), compete ao pleno, da Secção do
Contencioso Administrativo conhecer dos recursos dos actos daquele Conselho, ou
do seu presidente e bem assim dos pedidos de suspensão de eficácia desse mesmo
acto. Portanto, aqui como nos recursos do CSM apenas um grau de jurisdição,
sendo o recurso para plenário apenas um meio de uniformização de julgados
[artigo 22.º, alínea a), do ETAF e artigo 763.º, n.º 1, do CPC].
De onde se pode claramente concluir que o legislador ordinário tratou de forma
rigorosamente igual as situações que, de facto, são substancialmente idênticas,
no caso os recursos de deliberações de Conselhos Superiores dos juízes,
independentemente de se tratar de juízes dos tribunais judiciais ou dos
tribunais administrativos ou fiscais, e de forma diferenciada as situações em
que não existe uma plena identidade (caso dos recursos das deliberações do
CSMP), assim se respeitando o princípio da igualdade.
Acresce que, o legislador, ao optar pelo não reconhecimento do duplo grau de
jurisdição, limitando o direito de recurso, em última instância, das
deliberações do CSM e do CSTAF à secção de contencioso do STJ e ao pleno da 1.ª
secção do STA, em vez de optar por um sistema de recursos que garantisse a
existência de um duplo grau de jurisdição (como é o caso dos recursos das
deliberações do CSMP), não agiu de forma irrazoável ou desproporcionada, não
podendo também afirmar-se que a disparidade de soluções traduza uma distinção
arbitrária ou isenta de fundamento material bastante.
Com efeito, atribuindo-se a competência para conhecer dos recursos em causa, em
primeira instância, a secções de Supremos Tribunais (e num caso, ao pleno da
secção), a forma de garantir o duplo grau de jurisdição passava pela
possibilidade de recorrer de tais decisões para os respectivos plenários, o que
implicaria a modificação da sua competência material que se restringia aos casos
de invocação de oposição de julgados, solução que não terá sido considerada
dentro da já reconhecida liberdade de conformação do legislador nesta matéria.
Ora, bem pode a este respeito chamar-se à colação o que se referiu a propósito
de situação similar (uma vez que aqui podem também estar em causa pedidos de
suspensão de eficácia dos actos impugnados) no Acórdão n.º 249/94 (Diário da
República, II Série, de 27 de Agosto de 1994) no sentido de poder ser referida
«a ideia de que é inexigível que se garanta, num meio processual acessório de
natureza cautelar, a intervenção de um colégio de dez juízes ou, eventualmente,
de cinco ou seis juízes — cfr. artigo 25.º do ETAF — apenas para garantir o
duplo grau de jurisdição, salvo se estiver em causa uma invocada oposição de
julgados)», justificação esta que bem podia não ser apenas reportada ao
procedimento cautelar mas alargada aos casos de recurso em apreço.
Mas a opção do legislador tem certamente, para além de outras justificações
possíveis, uma bem objectiva e directamente relacionada com as matérias que
constituem normalmente o objecto destes recursos: trata-se de questões
(profissionais, de carreira ou disciplinares) que respeitam a magistrados
judiciais ou de outras ordens de tribunais e cuja resolução, a prolongar-se no
tempo — o que seria inevitável, no caso de se preverem vários graus de
jurisdição — podia acarretar graves perturbações num serviço essencial à
existência de um Estado de Direito, a realização da justiça.
Assim, o legislador em vez de optar por vários graus de recurso decidiu-se pelo
reconhecimento de um único grau de jurisdição, mas atribuindo o conhecimento de
tais recursos a tribunais de especial qualificação: no STJ, uma secção
constituída pelo presidente e quatro juízes, um de cada secção, que são
designados anual e sucessivamente, de acordo com a respectiva antiguidade e no
STA, para o pleno da 1.ª secção, constituído pelo presidente e por nove juízes,
incluídos os vice-presidentes, o relator e o número de juízes necessários dos
mais antigos, afastando-se, assim, em ambos os casos, pelo recurso à maior
antiguidade dos magistrados intervenientes, quaisquer possíveis conflitos de
interesses (ainda que de difícil perspectivação).
Inexiste, por isso e face a tudo quanto atrás fica referido nos n.os 10 e 11,
qualquer violação do princípio da igualdade, não só porque o caso das decisões
do CSMP não pode ser considerado como igual para impor uma tutela legislativa
similar mas também, porque, caso se pudesse admitir tal similitude de situações,
haveria um fundamento material bastante para a diferenciação dos regimes de
recursos, não estando, por isso, o n.º 2 do artigo 168.º do Estatuto dos
Magistrados Judiciais, na interpretação que dele faz o acórdão recorrido, no
sentido de não permitir recurso, para o plenário do Supremo Tribunal de Justiça,
das decisões proferidas na secção prevista naquela norma, afectado de qualquer
inconstitucionalidade.
12 — Nestes termos e, de acordo com o exposto, decide-se negar provimento ao
recurso, confirmando-se, em consequência, a decisão, recorrida.
Lisboa, 22 de Junho de 1995. — Vítor Nunes de Almeida — Armindo Ribeiro Mendes —
Antero Alves Monteiro Diniz — Alberto Tavares da Costa — Luís Nunes de
Almeida.
(1) -Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 31 de Julho de
1995.