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Procº nº 170/97 ACÓRDÃO Nº627/98
1ª Secção Consº Vitor Nunes de Almeida Acordam, na 1ª secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. – M... e outros interpuseram recurso contencioso do despacho do Director-Geral de Saúde de 5 de Agosto de 1993, tomado por delegação de competência e que negou provimento ao recurso hierárquico interposto pelos recorrentes da lista de classificação do concurso interno condicionado para três vagas de chefe de serviço da especialidade de medicina interna do Hospital de Santa Maria.
Contestado o recurso e apresentadas as respectivas alegações, após parecer do Ministério Público, o senhor juiz do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (adiante, TACL), notificou o mandatário dos recorrentes 'para esclarecer se é o jurista a que se refere a declaração da Assembleia da República de 14.5.91 publicada no D.R., IIª Série, nº126, de 3.6.91, pág.5813'.
O advogado constituído dos recorrentes veio então responder «que sim», acrescentando que 'não irá tolerar (…)quaisquer tentativas que possam prejudicar o regular exercício do seu mandato e da sua profissão(…)'.
Seguidamente, o juiz do TACL proferiu uma decisão respeitante ao patrocínio judiciário dos recorrentes pela qual veio a recusar a aplicação da norma contida no artigo 148º, nº1, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na qual se determina que 'Aos membros do Conselho Superior da Magistratura
(adiante, CSM), é aplicável, com as devidas adaptações, o regime de garantias e de incompatibilidades dos magistrados judiciais', recusa que teve por fundamento a sua inconstitucionalidade. Decidindo sobre o recurso contencioso, o juiz do TACL veio a conceder provimento ao recurso. No que respeita ao patrocínio judiciário dos recorrentes, e na parte relevante para o presente recurso de constitucionalidade, começou por considerar que o artigo 77º do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais ETAF), manda aplicar ao regime estatutário dos juízes dos tribunais administrativos e fiscais o Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), aprovado pela Lei nº 21/85, de 30 de Julho, mais concretamente a norma contida no artigo 1482, nº 1, desse estatuto, segundo a qual aos membros do Conselho Superior da Magistratura (CSM) é aplicável, com as devidas adaptações, o regime de garantias e de incompatibilidades dos magistrados judiciais. A decisão recorrida, nesta parte, entendeu que as alterações introduzidos na Lei nº 21/85 (EMJ), pela Lei nº 1O/94, de 5 de Maio, mantiveram o artigo 148º, nº1, com a mesma redacção no que respeita à aplicação aos membros do CSM do regime de garantias e incompatibilidades dos magistrados judiciais, sendo certo que a redacção do artigo 220º, nº2, da Constituição, resultante da 2ª Revisão constitucional eliminou a referência à aplicabilidade aos membros da CSM das incompatibilidades dos juízes, por ser considerada excessiva. Em consequência, e com fundamento em inconstitucionalidade material e superveniente, recusou a aplicação da norma contida no referido artigo 148º, nº 1, da Lei nº 2l/85, na redacção da Lei nº 10/94, e considerou como regular o exercício do patrocínio
judiciário dos recorrentes pelo mandatário constituído nos autos.
É desta decisão que o Ministério Público junto do TACL veio interpor recurso obrigatório, o qual deve entender-se como incidindo sobre a norma do nº1 do artigo 148º da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio, no segmento que, por remissão para ela feita pelo artigo 77º do ETAF - Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, determina a aplicação aos membros do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais as incompatibilidades dos magistrados judiciais. II - FUNDAMENTOS:
2. - Suscitada, oficiosamente, durante o processo a questão da regularidade da representação do mandatário dos recorrentes, face à sua qualidade de membro do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o juiz do processo recusou aplicar o segmento normativo do artigo
148º,nº1, da Lei nº21/85, de 30 de Julho, relativo à incompatibilidade dos magistrados judiciais.
De facto, sendo o mandatário membro de tal Conselho Superior e intervindo num processo a correr termos na jurisdição sobre a qual, naquela qualidade, detinha poderes de gestão e de disciplina (artigo
98º, nº1, do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril), deveria funcionar o sistema legal de incompatibilidades dos juízes. Na verdade, o nº1 do artigo 148º estabelece que é aplicável, com as devidas adaptações, aos membros do Conselho Superior da Magistratura o regime de garantias e de incompatibilidades dos magistrados judiciais pelo que sendo o mandatário dos recorrentes membro do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, por identidade de razão, deveria haver incompatibilidade entre o exercício da advocacia e o exercício daquelas funções, em consequência da conjugação do disposto naquele preceito do estatuto dos Magistrados Judiciais e o artigo 69º, nº1, alínea e) do Estatuto da Ordem dos Advogados (Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março).
Será, de facto, assim?
3. - Vejamos. O Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (adiante, CSTAF), configurado como órgão de gestão e disciplina da jurisdição administrativa e fiscal, é criação da lei - Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril (ETAF) - não existindo, originariamente qualquer referência a tal Conselho na Constituição.
Porém, com a revisão constitucional de 1989, os tribunais administrativos e fiscais deixaram de ser tribunais meramente facultativos para passarem a ser uma categoria de tribunais com estatuto próprio e, embora separado, de certo modo paralelo ao dos tribunais judiciais, estabelecendo a Constituição uma competência específica para o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Simultaneamente, ficou determinado que as matérias de nomeação, colocação, transferência e promoção de juízes juntamente com o exercício da acção disciplinar competiam, na parte relativa aos magistrados judiciais, ao Conselho Superior da Magistratura (artigo 219º, nº1, da Constituição) e que, na parte relativa aos juízes dos tribunais administrativos e fiscais, as mesmas matérias passariam a ser da competência do
«respectivo conselho superior», sendo em ambos os casos essas competências exercidas 'nos termos da lei' (nº 2 do artigo 219º).
Apesar de ser esta a única referência do texto constitucional ao CSTAF, não pode negar-se a atribuição de dignidade constitucional às funções que o Estatuto já reconhecia na alínea a) do nº2 do artigo 98º àquele Conselho, o que permite aceitar que o CSTAF, enquanto órgão de gestão e disciplina dos juízes da jurisdição administrativa e fiscal, deve promover a realização do modelo jurídico-constitucional definido para o Conselho Superior da Magistratura (adiante, CSM), designadamente, 'como meio de garantir a autonomia dos respectivos juízes e sendo também uma forma de garantia institucional da independência dos magistrados que lhe estão sujeitos relativamente aos aspectos constitucionalmente mencionados no nº2 do artigo 219º da Constituição', como se afirmou no Acórdão nº472/95 (in 'Diário da República', Iª Série- A, de 6 de Setembro de 1995).
Escreveu-se, ainda nesse Acórdão: 'assim, a composição do CSTAF não pode deixar de se reflectir no próprio estatuto dos juízes. Com efeito, a estes não é necessariamente indiferente a composição dos membros do Conselho Superior, nomeadamente, a qualidade destes (ser ou não juiz), a sua origem (qual a entidade que os designa), a respectiva relação intraprofissional (maioria de membros do Conselho oriundos da própria magistratura e eleitos pelos juízes ou maioria de membros exteriores à magistratura), tudo elementos em que radica a componente essencial da imparcialidade e isenção do tratamento dos magistrados da jurisdição administrativa e fiscal e, como tais, repercutindo-se no núcleo essencial das matérias que integram o estatuto dos juízes de quaisquer tribunais.'
4 - Para além da própria composição do Conselho, as garantias dos membros dos Conselhos Superiores são elementos essenciais para assegurar a imparcialidade e isenção de quem tem por função decidir sobre a nomeação, a colocação, a transferência e a promoção dos juízes.
A este respeito estabelecia-se no artigo 223º, nº2, da Constituição (redacção da Lei constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro) o seguinte:
'Artigo 223º
(Conselho Superior da Magistratura)
1.(…).
2.As regras sobre garantias e incompatibilidades dos juízes são aplicáveis a todos os vogais do Conselho Superior da Magistratura.
3.(…)'
De acordo com esta norma, todos os membros do CSM gozam das garantias e estão sujeitos às incompatibilidades dos juízes, ou seja, são inamovíveis e irresponsáveis, não podendo exercer qualquer outra função pública ou privada, estando obrigados à dedicação exclusiva ao cargo (artigo
221º da Constituição, na revisão de 1982).
O legislador constituinte da IIª Revisão Constitucional (Lei nº 1/89, de 8 de Julho) certamente por ter considerado que a solução de sujeitar os membros não-juízes do CSM às incompatibilidades dos juízes era excessiva (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in
'Constituição da República Portuguesa Anotada', 3ª Edição revista, Coimbra Editora, 1993), resolveu eliminar do texto constitucional a referência às incompatibilidades, mantendo apenas a aplicabilidade aos membros do CSM das garantias dos juízes (artigo 220º, nº2 da Constituição).
Porém, esta alteração do texto constitucional não teve consequências ao nível da lei ordinária na medida em que o artigo 148º,nº1, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho mesmo depois da 2ª Revisão constitucional manteve a sua anterior redacção que correspondia ao texto do artigo 223º, nº2 da Constituição, nela se mantendo a referência às incompatibilidades aplicáveis aos membros do CSM. E o legislador teve oportunidade de adaptar o texto legal ao novo texto constitucional resultante da 2ª Revisão. Com efeito, a Lei nº 21/85 foi sujeita a alterações através da Lei nº 10/94, de 5 de Maio, legislação esta posterior à referida revisão, sem que se tivesse eliminado do artigo 148º a referência às incompatibilidades.
Mas resultará desta situação a inconstitucionalidade superveniente da norma legal, como se decidiu no acórdão recorrido?
Com efeito, da eliminação da referência às incompatibilidades pela Revisão constitucional de 1989 apenas decorre que deixou de ser constitucionalmente exigível (imposto) que aos membros não juízes do CSM fossem aplicáveis as que vigoram para os juízes de carreira, nada obstando porém que o legislador crie novas incompatibilidades ou mantenha as que porventura existam.
De facto, dadas as funções atribuídas aos Conselhos Superiores (da Magistratura e dos Tribunais Administrativos e Fiscais), como órgãos de gestão e disciplina dos juízes das respectivas jurisdições, o estabelecimento de incompatibilidades dos respectivos membros não juízes pelo legislador ordinário, preservando assim a imparcialidade e a isenção, e também como forma de garantir a independência e autonomia dos magistrados que se submetem aos seus julgamentos, é algo que releva da liberdade e do poder de conformação do mesmo legislador. Ponto é que no estabelecimento de tais incompatibilidades o legislador ordinário respeite os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
No caso em apreço, um membro (vogal não-juiz) do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais é o Advogado de um recurso contencioso de anulação que corre termos pelos Tribunais Administrativos, cujos magistrados estão sujeitos, para efeitos de nomeação, colocação, transferência, promoção, exoneração, apreciação do respectivo mérito e exercício da acção disciplinar, à competência daquele Conselho e, por conseguinte, do referido advogado.
A norma do artigo 148º do EMJ, ao determinar a aplicabilidade aos membros do CSM, e por remissão do artigo 77º do ETAF, aos membros do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF), as incompatibilidades dos magistrados judiciais, é uma norma que, impedindo o exercício da advocacia por um advogado, vogal daquele, em processos pendentes num tribunal administrativo não desrespeita os princípios da necessidade, adequação ou da proporcionalidade, não sendo, por isso, inconstitucional.
Em casos como o dos autos, justifica-se o estabelecimento de uma incompatibilidade do exercício do cargo de membro do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais com o exercício da advocacia nos processos pendentes em tribunais cujos magistrados estejam sujeitos ao respectivo poder de gestão e disciplinar, como meio de garantir, não só a independência e total autonomia dos respectivos magistrados, como também de defender a imparcialidade e a isenção do próprio Conselho, não sendo por isso, uma medida excessiva ou desproporcionada em face dos interesses a proteger.
III - DECISÃO
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida na parte impugnada, devendo a mesma ser reformulada de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 3 Novembro de 1998 Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Artur Maurício Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida