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Processo 875/2011
2ª Secção
Relator: Conselheiro José Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da decisão sumária, proferida pelo relator, que decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso por aquele, então, interposto.
2. A decisão reclamada é do seguinte teor:
“ …
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), pretendendo a “apreciação da inconstitucionalidade material decorrente da aplicação dos artigos 51.º e 56.º do CP, 119.º, alínea c) e 495.º do CPP, questões estas de inconstitucionalidade que o arguido suscitou na interposição de recurso”.
2. Uma vez que o presente caso se integra no âmbito da norma do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, e atento o disposto no artigo 76.º, n.º 3, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos termos seguintes.
3. O recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Como é consabido, o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, aí previsto, há de traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) previamente suscitada perante o Tribunal a quo e de que a decisão recorrida haja feito efetiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido.
Explicitando o sentido de tais pressupostos, cumpre acentuar que, sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo.
A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo ao recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional [cf. Acórdão n.º 199/88, publicado no Diário da República II Série, de 28 de março de 1989; Acórdão n.º 618/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para jurisprudência anterior (por exemplo, os Acórdãos nºs 178/95 - publicado no Diário da República II Série, de 21 de junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9, inéditos e o Acórdão n.º 269/94, publicado no Diário da República II Série, de 18 de junho de 1994)].
Por outro lado, deve também referir-se que decorre dos referidos preceitos que a questão de inconstitucionalidade tenha de ser suscitada em termos adequados, claros e percetíveis, durante o processo, de modo que o tribunal a quo ainda possa conhecer dela antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre tal matéria e que desse ónus de suscitar adequadamente a questão de inconstitucionalidade em termos do tribunal a quo ficar obrigado ao seu conhecimento decorre a exigência de se dever confrontar a norma sindicanda com os parâmetros constitucionais que se têm por violados, só assim se possibilitando uma razoável intervenção dos tribunais no domínio da fiscalização da constitucionalidade dos atos normativos.
Ora, no caso dos autos, nenhum dos assinalados requisitos pode considerar-se satisfeito.
Vejamos.
Em primeiro lugar, cumpre anotar que o Recorrente não suscitou, nos termos supra referidos, qualquer questão de constitucionalidade normativa, como transparece, de forma evidente, das conclusões do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães, que se passam a transcrever:
“(…)
1. Considera o recorrente e com o devido respeito que antes de ordenar a revogação da suspensão da execução da pena o Tribunal a quo deve proceder à audição presencial do mesmo,
2. sob pena desta falta de audição do condenado configurar uma nulidade insanável, nos termos do artigo 119°, alínea c) do CPPV,
3. Ora tal audição presencial não ocorreu no caso sub judice, devendo por tal e face à nulidade insanável de que padece a douta decisão colocada em crise, deve esta ser revogada.
4. Não pode o recorrente conformar-se com a revogação da suspensão da execução da pena de prisão porquanto considera excessiva a douta interpretação do artigo 56° do CPV dada pelo Tribunal a quo
5. Se, apesar da primeira condenação, o Tribunal da segunda condenação foi capaz de emitir um prognóstico favorável que o conduziu à suspensão, é suficiente para mostrar que não considerou ainda esgotadas as possibilidades de uma socialização em liberdade.
6. Por outro lado, uma objeção decisiva ao entendimento em supra referido não existe ao nível do teor literal do artigo 56º, nº 1 do CPV,
7. porquanto se é certo que este artigo não refere como causa de revogação, o cumprimento da pena de prisão mas apenas a condenação em pena de prisão pela prática de crime doloso,
8. não menos exato se revela que uma coisa é a condenação em pena de prisão, outra diferente é a condenação em pena de suspensão de execução da prisão.
9. Ora no caso sub Júdice, o recorrente apesar de ter sido de novo condenado pela prática de um crime da mesma natureza da primeira condenação,
10. o facto é que na última condenação o Tribunal determinou haver circunstâncias suficientes para emitir um prognóstico favorável,
11. suspendendo na sua execução a pena de prisão, considerando não estarem esgotadas as possibilidades duma socialização em liberdade,
12. devendo e com o devido respeito tais circunstâncias serem atendidas e ponderadas na douta decisão de revogação ora proferida.
13. impõe-nos a conclusão que se lamenta dum desrespeito da concordância prática dos valores em causa, valores imperativamente atendíveis por nenhuma sanção poder ser aplicada afora da teleologia especifica imanente do Direito Penal,
14. convergente com a regeneração pessoal e social do recorrente, o que afetou a ponderação de meio e fim ínsita no princípio da proporcionalidade.
15. Ora tal não foi respeitado desequilibrando-se desrazoávelmente o princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade entre a conduta e a consequente revogação da suspensão,
16. que um outro igualmente ponderoso da igualdade de todos perante a lei também impõe,
17. pela circunstância decorrente da personalidade do recorrente e do justificativo racional que esta oferecia para as condutas imputadas.
18. Pelo exposto e com o devido respeito a douta decisão recorrida, violou, fazendo errada interpretação dos artigos 51º e 56º do CPV, 495° e 119º alínea c), estes do CPPV e artigos 13º, 18 e 32º, nº 5 da Constituição da Republica Portuguesa.”.
(…)
Como se constata, o recorrente imputa a violação dos parâmetros constitucionais à decisão recorrida e não aos critérios legais que esta convocou para decidir, acabando por concluir que o Tribunal fez uma errada interpretação das normas, violando, assim, a Constituição.
Ora, como decorre dos critérios supra referidos, a aplicação, ainda que apodada de inconstitucional, das normas legais aos factos e, bem assim, a valoração que destes se faça em juízo com vista à decisão concreta de um problema jurídico, não constituem objeto idóneo do recurso de constitucionalidade por ausência de caráter normativo.
A Constituição, ao estabelecer a competência do Tribunal Constitucional nestes processos de fiscalização concreta, delimita-a em torno do conceito de norma, excluindo que este Tribunal possa ser chamado a reapreciar a concreta aplicação do direito realizada pelas demais instâncias jurisdicionais.
In casu, a pretensão do recorrente, tal como foi definida, primeiro perante o Tribunal recorrido e, depois, perante este Tribunal, densifica precisamente uma questão em que está em causa a aplicação do direito ordinário ao caso concreto e não a inconstitucionalidade das normas referidas com abstração das circunstâncias de facto que o Tribunal recorrido foi chamado a valorar.
4. Concluindo, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do presente recurso.
…”.
3. A reclamação formulada pelo, ora, reclamante, no que releva para a sua apreciação, é do seguinte teor:
“…
- vêm respeitosamente, no uso do disposto no nº 2 do art. 666º, al. a) e do art. 669º do CPC, rogar o esclarecimento de algumas duvidas que lhe suscita a douta decisão sumária invocada, credor no demais do preito de homenagem que se lhe presta.
Descontextualizando-se diz-se:
“Como se constata, o recorrente imputa a violação dos parâmetros constitucionais à decisão recorrida e não aos critérios legais que esta convocou para decidir, acabando por concluir que o Tribunal fez uma errada interpretação das normas, violando, assim, a Constituição.
Ora, como decorre dos critérios supra referidos, a aplicação, ainda que apodada de inconstitucional, das normas legais aos factos e, bem assim, a valoração que destes se faça em juízo com vista à decisão concreta de um problema jurídico, não constituem objeto idóneo do recurso de constitucionalidade por ausência de caráter normativo.”
A asserção constante da douta decisão e com o devido e elevado respeito, não se vislumbra, suscitando dúvidas e ambiguidades na sua compreensão, talvez por limitação pessoal que confessam, requerendo, por tal, que Vossa Excelência esclareça as dúvidas existentes, aclarando e esclarecendo as ambiguidades que com o devido respeito enferma a afirmação em supra referida.
…”.
4. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, notificado de tal reclamação, pronunciou-se pelo seu indeferimento, nos seguintes termos:
“…
1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 29/2012, não se conheceu do objeto do recurso porque o recorrente, durante o processo, não suscitara, nem no requerimento de interposição do recurso enunciara, uma questão de inconstitucionalidade normativa, passível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
2º
A douta Decisão Sumária é perfeitamente clara e insuscetível de dúvida objetiva, não identificando o recorrente, como lhe competia (artigo 669.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil), qualquer ambiguidade ou obscuridade.
3º
Efetivamente, na Decisão Sumária, após se transcrever a peça em que o recorrente podia e devia ter suscitado a questão de inconstitucionalidade – as conclusões da motivação do recurso interposto para a Relação – conclui-se – e bem – que o que ali se afirmava não traduzia a enunciação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, antes se questionando a aplicação do direito ao caso concreto, o que ocorria, também, no requerimento de interposição do recurso.
4º
Deve, pois, indeferir-se o pedido de aclaração.
5.º
Traduzindo, antes, o pedido de aclaração, uma discordância com o sentido da decisão, considerando-se que o mesmo deve ser “convolado” em reclamação para a conferência - como o Tribunal tem entendido em relação a inidóneos pedidos de aclaração de decisões sumárias perfeitamente claras (v.g. Acórdãos nºs 222/2009 e 219/2010) -, deve a mesma ser indeferida, dada a evidente inverificação daqueles dois pressupostos de admissibilidade do recurso
6.º
Apenas poderíamos acrescentar que a falta de suscitação atempada e adequada da questão, ocorreu não só nas conclusões da motivação do recurso para a Relação, como no próprio texto.
…”.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. Não há dúvida alguma que ao recorrente, de acordo com o disposto nos artigos 669º, nº 1, alínea a) e 716º do Código de Processo Civil, 69º e 78º-A, nº 3, da LTC, assiste o direito de pedir o esclarecimento de obscuridades ou ambiguidades que a decisão sumária contenha, reclamando para a conferência.
Pretende o, ora, reclamante que a decisão sumária lhe suscita «… dúvidas e ambiguidades na sua compreensão, … », quando nela se afirma, a dado passo que:
“…
Como se constata, o recorrente imputa a violação dos parâmetros constitucionais à decisão recorrida e não aos critérios legais que esta convocou para decidir, acabando por concluir que o Tribunal fez uma errada interpretação das normas, violando, assim, a Constituição.
Ora, como decorre dos critérios supra referidos, a aplicação, ainda que apodada de inconstitucional, das normas legais aos factos e, bem assim, a valoração que destes se faça em juízo com vista à decisão concreta de um problema jurídico, não constituem objeto idóneo do recurso de constitucionalidade por ausência de caráter normativo.
…”.
Sucede, porém, que, mau grado a desinserção do transcrito excerto do contexto do discurso argumentativo seguido na decisão sumária em causa, o mesmo não suscita qualquer dúvida ou ambiguidade que dificulte a sua compreensão, pois dele se retira sem grande dificuldade que o que o recorrente controverte, no recurso interposto, é a decisão recorrida em si, imputando-lhe a violação das normas constitucionais, o que não integra objeto idóneo de recurso de constitucionalidade.
Aliás, tal excerto mais não é que a concretização, no caso sub judicio, do afirmado na referida decisão sumária em momento anterior, ou seja, quando da explicitação dos pressupostos exigíveis no que concerne a recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, porquanto aí se deixou expresso, a tal propósito, que:
“…o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, aí previsto, há de traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) previamente suscitada perante o Tribunal a quo e de que a decisão recorrida haja feito efetiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido.
Explicitando o sentido de tais pressupostos, cumpre acentuar que, sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo.
…”.
Pode concluir-se, assim, que do excerto invocado, lido isolada ou integradamente no respetivo contexto, se não vislumbra que possa subsistir qualquer ambiguidade, obscuridade ou dúvida que justifique qualquer esclarecimento, razão pela qual improcede o pedido formulado pelo recorrente.
III. Decisão
6. Nos termos supra expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 7 de março de 2012. – J. Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.