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Procº nº 61/94.
2ª Secção.
Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. A. fez instaurar contra B., acção emergente de
contrato individual de trabalho, à qual deu o valor de Esc. 1.300.105$80.
Após a B. ter contestado tal acção, cujo valor não
impugnou, foi, em 12 de Março de 1991, proferida sentença por intermédio da qual
foi ela condenada a pagar ao autor o montante de Esc. 1.240.105$80, acrescido
das retribuições vencidas a partir de 1 de Julho de 1989 e cujo quantitativo se
deveria apurar em execução daquela decisão.
Não se conformando com o assim decidido interpôs a Ré
recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 30 de Setembro
de 1992, teve a apelação por improcedente.
Pretendeu então a B. recorrer do indicado acórdão para o
Supremo Tribunal de Justiça, mas, como o recurso não foi admitido por despacho
de 28 de Outubro do mesmo ano, estribado no facto de o valor da causa se
encontrar dentro da alçada da Relação, dele reclamou a Ré para o Presidente do
citado Supremo Tribunal.
Na peça processual que corporizou a reclamação, a B.
sustentou, em síntese, que, de harmonia com o artº 309º do Código de Processo
Civil, 'se na acção foram pedidas prestações vincendas', 'o valor destas'
contava 'para o valor da acção', pelo que, in casu, era irrelevante que o valor
das prestações vincendas peticionadas - ao menos as correspondentes desde a data
da propositura da acção e até à prolação da sentença - estivesse dependente de
uma liquidação de sentença.
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por
despacho proferido em 18 de Maio de 1993, deferiu a reclamação, motivo pelo
qual, em cumprimento do decidido, foi aceite o recurso intentado interpôr pela
B. e referente ao acórdão da Relação de Lisboa.
2. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, o
Relator lavrou exposição na qual concluía não ser o recurso admissível em face
de o valor da causa ser inferior à alçada da Relação.
Tendo as «partes» sido notificadas para se pronunciarem,
querendo, sobre essa exposição, veio a ora recorrente dizer, de entre o mais:
'........................................
8º
Ora, o artº 309º do C.P.C. é inequívoco ao estipular que, se na acção
se pedirem prestações vincendas, nos termos do artº 472º (isto é, prestações
periódicas, como aqui acontece), tais prestações serão consideradas para definir
o valor da causa.
9º
Deste modo, conjugando o critério geral do artº 306º do C.P.C., com o
critério especial previsto no artº 309º, nenhumas dúvidas podem existir quanto
ao facto de que o valor da acção é de 2.560.105$80, decorrente do somatório do
pedido liquidado e das prestações periódicas vincendas também pedidas (desde
Julho de 1989 a Março de 1991) - data da sentença - (...).
.........................................
11º
Parece que até aqui a matéria exposta não ofereceu dúvidas ao Exmo
Sr. Conselheiro Relator.
12º
Só que o Exmo Sr. Conselheiro Relator expressa a posição de que, não
tendo a recorrente contestado o valor liquidado na p.i., acordou tacitamente em
que o valor da acção seria de 1.300.105$80.
.........................................
16º
É que quando a ora recorrente contestou a acção obviamente que não
podia contestar o valor liquidado na p.i. que aparecia como valor da acção, uma
vez que nesse momento ainda não se tinham vencido as prestações vincendas que
vieram a ter lugar até à prolação da sentença, pelo que o valor liquidado na
p.i. estava correcto tendo em conta o momento em que a petição foi apresentada.
17º
E obviamente que daqui não decorre que a ora recorrente tenha
tacitamente acordado em que o valor da causa seria apenas o da parte liquidada.
.........................................
20º
Tal acordo tácito obviamente que se deve entender como abrangendo as
prestações periódicas vincendas, cujo cálculo - repete-se - depende apenas de
uma operação aritmética, quanto mais não seja porque quando a petição é
apresenta- da não se pode expressamente apresentar como valor da acção a parte
que ainda não se venceu.
21º
Esse acordo tácito tem ainda presente a previsão inequívoca do artº
309º do C.P.C., que as partes conhecem e que manda atender a tais prestações,
sem que tal dependa de nenhum acto das partes ou do Tribunal.
22º
Deste modo, as regras do artº 315º do C.P.C. não podem deixar de ser
interpretadas no sentido de que, quando há prestações periódicas vincendas (cfr.
artº 309º), o valor da causa tacitamente acordado há-de incluir o valor dessas
prestações.
.........................................
24º
Qualquer outra interpretação dos normativos em apreço (artº 315º do
C.P.C. ou quaisquer outros) viola o princípio constitucional da protecção da
confiança, o que ora se argui para todos os efeitos legais, uma vez que afecta
as expectativas das partes quanto ao direito de recorrer, as quais, quando há
prestações periódicas vincendas, não podem deixar de esperar que o seu valor
influencie a definição da alçada do Tribunal e o seu direito de recorrer.
........................................'
3. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 16 de
Dezembro de 1993, decidiu não conhecer do objecto do recurso interposto pela B.,
o que fez, essencialmente, pelas razões já constantes da exposição do Relator.
Fê-lo, dizendo, designadamente:-
'.............................................
Na hipótese de haver acordo das partes quanto ao valor da causa,
designadamente por- que o réu não impugnou o mencionado na petição inicial, ou
porque o autor aceitou expressa- mente o valor oferecido pelo réu na impugnação,
esse será, em princípio, o valor processual da causa (cfr. artº 315º, nº 1, do
Cód. Proc. Civil).
Pode acontecer, todavia, que esse valor esteja em flagrante oposição
com a realidade, o que sucederá sempre que haja violação de qualquer preceito
legal. Nesse caso, findos os articulados, o juiz tem o dever de se sobrepor ao
acordo das partes, fixando à causa o valor que repute adequado (cfr. cit. artº
315º, nº 1).
Conforme resulta daquele artº 315º, nº 1, é após o último articulado
que o juiz deve usar o poder, que este normativo lhe confere, de corrigir o
valor errado em que as partes tiverem acordado. Se o juiz não fizer uso desse
poder em tal momento, o valor processual da causa considera-se definitivamente
fixado, na quantia acordada, logo que seja proferido despacho saneador, ou seja
proferida sentença, se não houver lugar a despacho saneador (cfr. cit. artº
315º, nºs 2 e 3).
Por uma razão de ordem processual, a lei fixou um momento a partir do
qual o valor processual da causa se considera definitiva- mente fixado, ficando
precludida a possibili- dade de posteriormente o alterar, ainda que se encontre
em flagrante oposição com a realidade. Tal momento coincide com a prolação do
despacho saneador, nas causas que o comportem, ou da sentença, nas causas onde
não haja lugar a despacho saneador, como, acontece no caso vertente.
A partir dos referidos momentos, a acção passa a ter um valor
inalterável, mesmo que seja contrário à realidade, sem que o juiz de 1ª
instância ou os tribunais superiores possam considerar qualquer outro valor.
Daqui resulta ter ficado expressamente excluída a possibilidade de os
tribunais de recurso usarem da faculdade prevista no referido artº 315º, nº 1.
Por isso, deve considerar-se definitivamente fixado o valor indicado na petição
inicial e não impugnado pelo réu, se o juiz o não alterou oficiosamente nos
termos daquele preceito. Ainda que haja condenação acima desse valor, a quantia
acordada pelas partes representará o valor relevante para efeito da relação da
causa com a alçada do tribunal, ou seja, para efeitos de
recurso.......................................
..............................................
Em sentido contrário não pode argumentar--se com o disposto no artº
309º, do Código de Processo Civil, como faz a recorrente, em virtude de nesta
fase processual não ser já possível indagar se o valor atribuído à causa
representa ou não a utilidade económica de pedido (cfr. artº 305º, nº 1, do Cód.
Proc. Civil).
E também não é legítimo referir quaisquer expectativas das partes
quanto ao direito de recorrer, uma vez que tais expectativas, a existirem, não
correspondem à correcta interpretação dos textos legais que disciplinam a
matéria e, consequentemente, não podem considerar-se juridicamente tutelados'.
4. É deste aresto que vem interposto o presente recurso
de constitucionalidade, referindo a impugnante que com o mesmo visava a
apreciação da 'inconstitucionalidade do entendimento dado aos nºs 1 a 3 do artº
315º do C.P.C. ou à sua conjugação com os artºs 305º nº 1 e 309º do mesmo
Código, por ofensa do princípio constitucional da protecção da confiança'.
Produziu unicamente alegação a recorrente, que a rematou
formulando as seguintes conclusões:-
'1. O entendimento dado pelo Acórdão recorrido quanto aos nºs 1 a 3
do artº 315º do C.P.C., bem como à sua conjugação com os artºs 309º e 305º nº 1
do mesmo Código, restringe o direito de recorrer nos autos em apreço de forma
excessiva, intolerável e arbitrária, uma vez que afasta tal possibilidade, sem
motivo razoável, numa acção em que indiscutivelmente a utilidade económica do
pedido é superior à alçada da Relação.
2. Tal entendimento representa uma violação dos princípios
constitucionais da protecção da confiança e do direito de acesso aos tribunais'.
II
1. Questiona o recorrente a constitucionalidade da
interpretação seguida no aresto prolatado pela Secção Social do S.T.J.
tocantemente às normas ínsitas no artº 315º do Código de Processo Civil,
conjugada com os artigos 305, nº 1, e 309º, ainda do mesmo Código.
Porém, como ressalta da acima efectuada transcrição do
aresto ora sob sindicância, o juízo decisório nele incluído suportou-se, e tão
só, nos normativos constantes dos números 1, 2 e 3 do falado artº 315º.
Efectivamente, o passo do acórdão recorrido no qual é referido que se não pode,
a fim de se contraditar a tese ali perfilhada, argumentar com o artº 309 do dito
diploma adjectivo civil, unicamente teve por escopo realçar que, no entendimento
dos juízes subscritores do mesmo acórdão, aqueles citados normativos eram os
únicos que relevavam para a fixação do valor processual da causa relativamente à
alçada do tribunal para efeitos de recurso.
Significa isto, ao fim e ao resto, que o âmbito do
presente recurso se deverá circunscrever às normas dos números 1 a 3 do artº
315º do C.P.C.
Rezam elas:
Artigo 315.º
(A vontade das partes e a intervenção do juiz na fixação do valor)
1. O valor da causa é aquele em que as partes tiverem acordado,
expressa ou tacitamente, salvo se o juiz, findos os articulados, entender que o
acordo está em flagrante oposição com a realidade, porque neste caso fixará à
causa o valor que considere adequado.
2. Se o juiz não tiver usado deste poder, o valor considera-se
definitiva- mente fixado na quantia acordada, logo que seja proferido despacho
saneador.
3. Nos casos a que se refere o n.º 3 do artigo 308º e naqueles em que
não haja lugar a despacho saneador, o valor da causa considera-se
definitivamente fixado logo que seja proferida sentença.
Acrescente-se que o nº 3 do artº 308º, a que se reporta
o nº 3 da supratranscrita disposição, se reporta aos processos de liquidação e
aos em que, analogamente, a utilidade económica do pedido só se define na
sequência da acção, casos nos quais o valor inicialmente aceite deverá ser
corrigido logo que o processo forneça os necessários elementos.
2. No fundo, bem vistas as coisas, e embora nunca o
tenha directamente dito, o que a ora recorrente veio a defender nos autos, após
o Relator da Relação de Lisboa não ter admitido o recurso que intentou interpôr
para o Supremo Tribunal de Justiça, foi que o caso da acção sub specie, não
obstante ter havido acordo tácito de autor e ré quanto ao valor indicado na
petição inicial, era subsumível à previsão do nº 3 daquele artº 308º, e isto
porque, devendo às causas ser dado um valor certo representativo da utilidade
económica imediata do pedido, e determinando o artº 309º, também do C.P.C., que,
sendo pedidas na acção prestações vencidas e vincendas, o valor de ambas será
tomado em consideração, a utilidade económica do pedido consubstanciado na
presente acção deveria ser definida na sua sequência e, logo, deveria haver
lugar à correcção do valor inicialmente aceite.
A uma tal tese contrapôs o acórdão impugnado que, mesmo
nos casos em que sejam pedidas prestações vencidas e vincendas, tendo havido
acordo expresso ou tácito das partes sobre o valor oferecido na petição, e não
tendo o juiz usado do poder que lhe é deferido pelo nº 1 do artº 315º (poder
esse que deve ser exercido findos os articulados, se o processamento da acção
comportar despacho saneador, ou na sentença, se não houver lugar ao proferimento
daquele despacho), a esse valor é de atender para efeitos de fixação do valor
processual da causa para efeitos de recurso directamente ligados aos valores de
alçada, e isto pela razão segundo a qual, ultrapassadas aquelas fases
processuais, já não teria o tribunal possibilidade de, oficiosamente, fixar
outro valor para a acção.
2.1. Na perspectiva da recorrente, um tal entendimento
viola os princípios da confiança e do acesso aos tribunais, pois que, perante a
interpretação seguida no S.T.J., ficar-lhe-ia vedado, de forma intolerável,
injustificada e arbitrária, o direito de recorrer.
Será assim?
É o que se irá analisar.
Tocantemente ao princípio da confiança, que deflui do
princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da
Constituição, é sabido que ele postula 'uma ideia de protecção da confiança dos
cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado', implicando,
pois, 'um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas
expectativas que a elas são juridicamente criadas' (palavras do Acórdão nº
303/90, publicado na 1ª Série do Diário da República de 26 de Dezembro de 1990;
cfr., ainda, sobre tal princípio, os Acórdãos da Comissão Constitucional nº 463,
de 13 de Janeiro de 1983, in apêndice ao Diário da República de 18 de Janeiro de
1983, Parecer nº 27/79, da mesma Comissão in Pareceres da Comissão
Constitucional, 9º volume, 115 e segs., e, entre muitos outros e para além do já
citado, os Acórdãos deste Tribunal números 11/83, 17/84, 93/84 e 297/90 in,
respectivamente, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., 11 e segs, 2º
vol., 375 e segs., e 4º vol., 153 e segs. e Diário da República, 2ª Série, de 20
de Fevereiro de 1991; cfr., igualmente, Gomes Canotilho, Direito Constitucional,
5ª edição, 377 e segs, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 63).
Desta caracterização ressalta que o princípio da
confiança de que ora curamos inculca que deva o cidadão prever as intervenções
que o Estado possa 'levar a cabo sobre ele ou perante ele e preparar-se para se
adequar a elas', devendo, assim, confiar 'que a sua actuação de acordo com o
direito seja reconhecida pela ordem jurídica e assim permaneça em todas as suas
consequências juridicamente relevantes' (usaram-se as palavras do Acórdão nº
17//84), o que conduz a que aquele princípio imponha ao Estado, sem que com isso
se signifique que não possa levar a cabo modificações da ordem jurídica
existente, a não edição de normação que, repercutindo-se acentuada, onerosa e
intoleravelmente nas situações já existentes e criadas à sombra da anterior
legislação, as vá alterar no seu conteúdo e consequências, com os quais os
cidadãos, razoavelmente, não contariam.
É, pois, um princípio cuja imposição, em via directa, se
dirige ao próprio legislador.
Sendo assim, e porque os normativos sub iudicio não
sofreram qualquer alteração, ao menos desde a edição do Decreto- -Lei nº
44.129, de 28 de Dezembro de 1961, é desde logo problemático que possa, a
propósito de uma sua interpretação jurisprudencial, convocar-se aquele princípio
como fundamento da respectiva inconstitucionalidade, questão que tem tido algum
tratamento na jurisprudência constitucional alemã e italiana, mas que, dado o
que à frente se irá concluir, não releva agora sobremaneira dilucidar
(assinale-se que Gomes Canotilho na 5ª edição da obra intitulada Direito
Constitucional - pags. 385 e 386 - refere que '[é] diferente falar em segurança
jurídica quando se trate de caso julgado, e em segurança jurídica quando está em
causa a uniformidade ou estabilidade da jurisprudência', aduzindo que '[s]ob o
ponto de vista do cidadão, não existe um direito à manutenção da jurisprudência
dos tribunais, mas sempre se coloca a questão de saber se e como a protecção da
confiança pode estar condicionada pela uniformidade, ou, pelo menos,
estabilidade, na orientação dos tribunais', sendo certo que se trata, 'porém, de
uma dimensão irredutível da função jurisdicional a obrigação de os juízes
decidirem, nos termos da lei, segundo a sua convicção e responsabilidade').
Todavia, sempre se poderiam hipotisar casos em que os
tribunais, a dada altura, viessem a conferir a um certo preceito uma
interpretação que, acentuadamente, se afastava da até então seguida, podendo,
por essa via, configurar-se uma situação que, na prática, redundava na criação,
por via interpretativa, de uma diversa normação aplicada na resolução dos casos
concretos submetidos ao veredicto daqueles órgãos de administração de justiça.
Ora, nessa hipótese, sempre se poderia argumentar no sentido de ser curial a
convocação do princípio em causa nos casos em que a normação advinda do novo
entendimento jurisprudencial porventura fosse susceptível de repercutir-se nos
efeitos jurídicos decorrentes de situações de facto anteriormente constituídas e
desenvolvidas em termos de conduzir a resultados que, antecedentemente àquele
entendimento, de modo necessário, haveriam de ser patentemente diversos daqueles
com os quais, razoavelmente, contavam as «partes», ao menos como forma de
resolução que pensavam, com razoabilidade, vir a ser dada pelos tribunais nos
casos em que perante eles era suscitada a resolução de um conflito.
Para tanto, porém, e na aceitação daquelas hipótese e
argumentação, haveria, como é óbvio, de entre o mais, que aferir, quer se se
postava uma interpretação diversa da anteriormente seguida, quer se dela
resultava uma intolerável, onerosa, acentuada e arbitrária modificação dos
efeitos decorrentes das situações já constituídas e com as quais, perante a
anterior postura jurisprudencial, ninguém, razoavelmente, podia contar, quer,
por fim, se, perante os normais cânones interpretativos, aquele novo
entendimento não seria já passível de defesa, mesmo antes da perfilhação desse
entendimento.
2.2. Em sede da hipótese acima configurada, e ponderando
agora o caso em presença, ter-se-á de convir que tem sido jurisprudência de há
muito seguida, pelo menos pelo Supremo Tribunal de Justiça, aquela segundo a
qual o «valor da causa é o fixado definitivamente na 1ª instância, sem
possibilidade de posterior alteração no tribunal de recurso» e que, desta forma,
se houver condenação acima do valor da causa fixado naqueles termos, «o valor
que releva para efeitos de alçada é unicamente este e não o da utilidade
económica do objecto do recurso», distinguindo-se o «valor da causa a ter em
atenção... quer do valor do recurso (valor do seu objecto material), quer do
valor tributário»[cfr., por entre vários outros, os acórdãos proferidos por
aquele Alto Tribunal em 20 de Março de 1964 (no Boletim do Ministério da
Justiça, 135º, 406 e segs.), 25 de Março de 1969 (idem, 185º, 239 e segs.), 20
de Maio de 1980 (idem, 297º, 258 e segs.), 20 de Fevereiro de 1981 (idem, 304º,
329 e segs.), 5 de Fevereiro de 1982 (idem, 314º, 256 e segs.), 6 de Dezembro de
1985 (idem, 352º, 281 e segs.); cfr., ainda no mesmo sentido, Rodrigues Bastos,
Notas ao Código de Processo Civil, 2ª edição, 120 e 121 e acórdãos, da Relação
de Lisboa de 9 de Novembro de 1959 (in Jurisprudência das Relações, 2º ano, V,
967), e da Relação de Coimbra de 5 de Junho de 1951, sumariado no dito Boletim,
29º, 316].
Vale isto por dizer que o entendimento seguido pelo
acórdão impugnado quanto aos normativos dos números 1 a 3 do artº 315º do Código
de Processo Civil em nada se afasta daqueloutro que tem, desde sempre e,
dir-se-ia, sem divergência, sido o seguido pelos nossos tribunais superiores da
ordem dos tribunais judiciais.
Sendo isto assim, então fácil é constatar que o aresto
em crise não veio a gizar, por forma interpretativa, qualquer normação com um
conteúdo tal de harmonia com o qual, do ponto de vista dos cidadãos, se
configurasse como de todo anómalo, e isto no sentido de, imprevisivelmente, os
surpreender de sorte a, ali onde anteriormente lhes era permitido contar com um
valor processual por via do qual podiam aceder, por recurso, a um tribunal
hierarquicamente superior, ser-lhes isso agora vedado, não obstante, ao tempo da
propositura da acção, terem, de forma razoável, contado com tal possibilidade em
face do posicionamento jurisprudencial até então seguido.
De onde a conclusão de que, mesmo a aceitar-se a
situação acima hipotisada, não se reúnem, no caso dos autos, quaisquer elementos
do qual se extraia a violação de um eventual princípio de confiança da
recorrente, que podia (e devia) contar com a interpretação que foi perfilhada no
S.T.J. e que, afinal, em nada divergia da que tinha adoptado desde há muitos
anos.
Dir-se-á, enfim, que a interpretação conferida aos
normativos em causa pelo acórdão recorrido nunca poderia ser perspectivada como
tendo, justificadamente, ferido qualquer expectativa da recorrente, por isso que
qualquer «normal» «parte» processual, postada na situação da impugnante,
certamente haveria que contar, isso sim, com aquele interpretação, e não outra,
tal como, agora e nos autos, vem defendida pela B..
3. Refere ainda a recorrente que a interpretação das
normas em apreço violará o que designa por um seu «direito ao recurso».
Pensa-se que, como uma tal asserção, quererá a
recorrente dizer, mais propriamente, que os normativos em apreciação, com o
entendimento que lhes foi conferido, seriam violadores do direito de acesso aos
tribunais consignado no artigo 20º da Lei Fundamental (cfr. parte final da sua
alegação, imediatamente antes das «conclusões).
Impõe-se, em consequência, que se afira desta
perspectiva do problema.
3.1. Como G. Canotilho e V. Moreira (ob. cit., 163)
devidamente assinalam, o direito consagrado no nº 1 do artigo 20º do Diploma
Básico, na sua veretente de «direito de acesso aos tribunais», 'inclui, desde
logo, no seu âmbito normativo, o direito de acção, isto é, o direito subjectivo
de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional,
solicitando a abertura de um processo, com o consequente dever (direito ao
processo) do mesmo órgão de sobre ela se pronunciar mediante decisão
fundamentada'.
E, mais à frente (pág. 164), após darem conta de que se
discute 'em que medida é que o direito de acesso aos tribunais inclui o direito
de recurso das decisões judiciais, traduzido no direito ao duplo grau de
jurisdição', sublinham que não existe 'preceito constitucional a consagrar a
«dupla instância» ou «duplo grau de jurisdição» em termos gerais' (cfr., em
idêntico sentido, Jorge de Miranda, Manual de Direito Constitucional, 1988, Tomo
IV, nº 53, ponto V).
Neste particular, tem também este Tribunal, por diversas
vezes, tido ocasião de realçar a inexistência constitucional da garantia de um
«direito ao recurso» das decisões jurisdicionais referentemente a matérias, tais
como a dos presentes autos, em que se não coloca um caso de condenação penal
(cfr., verbi gratia, e com mais recente publicação, os Acórdãos números 163/90,
202/90, 287/90, 210/92 e 344/93, in Diário da República, 2ª Série, de,
respectivamente, 18 de Outubro de 1990, 21 de Janeiro de 1991, 20 de Fevereiro
de 1991, 12 de Setembro de 1992 e 11 de Agosto de 1993).
De harmonia com o que se pode inequivocamente extrair da
jurisprudência deste órgão de fiscalização da constitucionalidade, o que se
prescreve pela consagração do «direito de acesso aos tribunais» é que, afora o
processo penal e em casos de condenação, o que 'o legislador tem de assegurar
sempre a todos, sem discriminações de ordem económica, é o acesso a um grau de
jurisdição' (citaram-se palavras do Acórdão nº 163/90), e que o legislador
ordinário está, pois, dotado de liberdade para, pontualmente, alterar as regras
relativas à impugnabilidade das decisões e à própria existência de recursos.
Ponto é que (como diz Armindo Ribeiro Mendes, Recursos
em Processo Civil, 1992, 99 e segs.) aquele legislador, perante as referências
que a Constituição faz no seu artigo 212º, números 3 a 5 - referências essas das
quais é legítimo concluir que 'a organização judiciária tem tribunais de
primeira instância e tribunais de recurso' -, não suprima 'em bloco os tribunais
de recurso e os próprios recursos', ou limite 'de tal modo o direito de
recorrer' de forma a, na prática, se ter 'de concluir que os recursos tinham
sido suprimidos'.
Na situação de que nos ocupamos, torna-se claro que, não
se colocando um caso de condenação em matéria penal - sublinhando-se que nestes
a exigência de um segundo grau de jurisdição radica, não no «direito de acesso
aos tribunais», mas sim nas garantias de defesa que o processo criminal deve
comportar - e até tendo sido, em face do valor da acção, reconhecida a
possibilidade de se obter, por via de recurso, uma reapreciação por um tribunal
superior, a inviabilidade de impugnação do decidido pela Relação perante o
Supremo Tribunal de Justiça, inviabilidade essa justamente decorrente do citado
valor, não ofende, minimamente, o direito prescrito no artigo 20º, nº 1, da Lei
Fundamental que, repete-se, não implica um ilimitado direito ao recurso em todas
as matérias.
3.2. Efectuar-se-á, por fim, talqualmente se fez no já
aludido Acórdão nº 163/90, uma derradeira nota.
Consistirá ela em dizer que não se lobriga como é que a
inexistência, em acções da espécie da presente, de um direito ao recurso
abrangente da totalidade dos tribunais hierarquicamente superiores dentro da
ordem dos tribunais judiciais, possa violar o princípio do Estado de direito,
pois que, se é 'certo que os recursos se destinam ao reexame das decisões
judiciais e, desse modo, a corrigir eventuais erros de julgamento', o 'recurso
aos tribunais, ainda que numa única instância' [e até não foi esta a situação],
'continua a ser o meio de defesa por excelência dos «direitos e interesses»
legalmente protegidos - um meio de defesa que responde minimamente às exigências
de justiça que vão implicadas na ideia de Estado de direito', sendo certo que,
estando aqui em equação uma controvérsia na qual se não colocavam em crise
direitos fundamentais, ao menos quando perspectivados do ponto de vista da ora
recorrente, é em face dela que 'há que decidir se a Constituição impõe ou não a
consagração pela lei de um direito de recurso' até ao mais elevado tribunal
daquela ordem judiciária.
III
Perante o exposto, nega-se provimento ao recurso, em
consequência se confirmando o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão
de constitucionalidade aí tratada.
Lisboa, 26 de Junho de 1995
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Guilherme da Fonseca
Messias Bento
Luís Nunes de Almeida