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Processo n.º 484/2011
Plenário
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Um grupo de deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do disposto na alínea g) do nº 2 do artigo 281.º da Constituição da República e do nº 1 do artigo 51.º da Lei nº 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional: doravante LTC), a declaração, com força obrigatória geral, da ilegalidade da norma constante do artigo 27.º do Decreto Legislativo Regional nº 6/2011, de 10 de março, que estabelece o regime jurídico das farmácias de oficina na Região Autónoma dos Açores.
Sob a epígrafe “Condições gerais de abertura e transferência”, dispõe do seguinte modo a norma impugnada: “[a]s condições gerais e específicas de instalação, abertura e transferência de farmácias são definidas por decreto regulamentar regional, no prazo de 90 dias, a contar da publicação do presente diploma.”
2. O Requerente fundamentou o seu pedido de acordo com os seguintes argumentos essenciais:
O Decreto Legislativo Regional nº 6/2011, de 10 de março, estabelece o regime jurídico das farmácias de oficina na Região Autónoma dos Açores.
Este decreto foi aprovado ao abrigo do artigo 227.º, nº 1, alínea a) da Constituição em conjugação com o artigo 59.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e, ainda, em conformidade com o princípio da supletividade da legislação nacional estabelecido no artigo 228.º, nº 2, da lei fundamental (não sendo neste contexto relevante saber se existe nesta matéria, como parece existir, uma reserva ou uma exclusividade de competência legislativa a favor da Região Autónoma).
Sucede, porém, que o artigo 27.º do Decreto Legislativo Regional nº 6/2011/A, veio, sob a epígrafe 'condições gerais de abertura e transferência', remeter para decreto regulamentar regional as 'condições gerais e específicas de instalação, abertura e transferência de farmácias'.
Ora, nos termos do disposto no artigo 59.º do EPARAA, compete à Assembleia Legislativa Regional legislar em matéria de política de saúde e, especificamente, nos termos da alínea e) do nº 2 deste artigo, quanto ao “regime do licenciamento e funcionamento das farmácias e o acesso ao medicamento”.
Esta disposição constitui uma reserva de lei, isto é, de decreto legislativo regional.
No que ao pedido formulado interessa, tal reserva legislativa quanto ao “regime de funcionamento das farmácias” compreende as normas quanto à sua propriedade, à direção técnica, ao pessoal, ao licenciamento e titulação de alvará, funcionamento da farmácia, condições de abertura, instalação e transferência de farmácias (compreendendo as normas quanto às específicas condições para a instalação de farmácias, em função do número de habitantes de uma determinada localidade) e dispensa de medicamentos.
Isto é, o “regime de funcionamento das farmácias” ? o acervo normativo a que se submete o licenciamento e o funcionamento das farmácias de oficina na Região Autónoma dos Açores (normas, regras ou princípios) ? é competência legislativa da Assembleia Legislativa, sob a forma de Decreto Legislativo Regional.
O fim daquela norma constante da alínea e) do nº 2 do artigo 59° do EPARAA é o de: i) estabelecer uma reserva de Decreto Legislativo para todo o “regime de funcionamento das farmácias”; ii) subtrair à atividade administrativa as matérias compreendidas no âmbito daquele regime.
As matérias relativas às “condições gerais e específicas de instalação, abertura e transferência de farmácias” estão indiscutivelmente compreendidas no regime jurídico das farmácias.
Tais matérias não podem ser objeto de “definição” por Decreto Regulamentar Regional, como dispõe a norma questionada.
A referida norma ofende portanto a reserva de lei estabelecida pelo 59.º do EPARAA, a qual é uma reserva legal total quanto às matérias cobertas pelo regime jurídico de licenciamento e funcionamento das farmácias.
Além do mais, a norma daquele artigo 27.º contém uma impossível autorização legislativa concedida ao Governo Regional, conforme decorre do disposto no nº 1 do artigo 232.º da Constituição.
Nestes termos, o Requerente pede que o Tribunal declare a ilegalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no artigo 27.° do Decreto Legislativo Regional nº 6/2011, de 10 de março, por violação da reserva de lei estabelecida na alínea e) do nº 2 do artigo 59.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
3. O Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, notificado, nos termos do artigo 54.º da LTC, para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, veio responder essencialmente nos termos seguintes:
As assembleias legislativas das regiões autónomas dispõem de competência legislativa genérica, no âmbito regional, em matérias enunciadas nos respetivos estatutos político-administrativos que não estejam reservadas aos órgãos de soberania.
As disposições dos artigos 112°, nº 4, 227°, nº 1, e 232°, nº 1, da CRP configuram uma efetiva reserva de lei formal a favor das assembleias legislativas das regiões autónomas, nos precisos termos aí enunciados, mas não autorizam o entendimento de que estejamos perante uma reserva de lei material, impondo às assembleias legislativas das regiões autónomas a completa conformação de todas as matérias de competência legislativa enunciadas nos respetivos estatutos político-administrativos.
Sempre e em qualquer matéria de competência legislativa das assembleias legislativas das regiões autónomas, cabe à lei material (decreto legislativo regional) a regulação das opções políticas primárias, ficando fora desta tudo o que respeite ao desenvolvimento de princípios gerais ou à fixação de condições específicas.
No caso em apreço, importa saber se o decreto regulamentar regional é, do ponto de vista da conformidade com a CRP e com o EPARAA, a forma adequada e suficiente para o estabelecimento normativo de desenvolvimento dos princípios gerais e de determinação das condições específicas de instalação, abertura e transferência de farmácias na Região Autónoma dos Açores, ou se se preferir, importa saber se o Governo Regional o pode fazer no exercício da sua função administrativa.
É conhecida e apontada por diversos autores a problemática do crescente protagonismo metodológico da Administração na concretização do direito aplicável, a chamada “transfiguração material da própria legalidade” e o fenómeno das “normas legais em branco”, enquanto expressão de uma remissão material para valorações que conferem ao aplicador uma especial “elasticidade” adaptativa da norma legal ao caso concreto.
O requerente, no pedido dirigido ao Tribunal Constitucional, parte do errado pressuposto de que compete ao legislador (através de decreto legislativo regional) o desenvolvimento dos princípios gerais e a determinação das condições específicas de instalação, abertura e transferência de farmácias, ou seja, de que a conformação de toda a arquitetura normativa até ao mais ínfimo pormenor do regime jurídico das farmácias na Região Autónoma dos Açores constitui reserva de lei material.
Ora uma tal interpretação arcaica da reserva de lei material, baseada num modelo de legalidade dotado de uma disciplina exaustiva e imperativa de soluções, mostra-se totalmente incompatível com a salvaguarda de valores constitucionais como a descentralização e o pluralismo. É necessário atender a um modelo de lei flexível e aberto à normação administrativa.
E isto é tanto mais verdade quando ao nível das regiões autónomas só as assembleias legislativas têm competência legislativa, sendo certo que a imprevisibilidade e a rapidez com que as coisas acontecem no mundo atual, juntamente com a complexidade e a tecnicidade crescente das matérias sujeitas a intervenção pública, não se compadecem com uma interpretação rígida da reserva de lei material.
Ora em concreto, o que sucede é que o Decreto Legislativo Regional nº 6/2011/A, de 10 de março (Regime jurídico das farmácias de oficina na Região Autónoma dos Açores) ? à semelhança do que sucede com o Decreto-Lei nº 307/2007, de 31 de agosto (Regime jurídico das farmácias de oficina) ? estabelece os princípios gerais relativos à instalação, abertura e transferência de farmácias na Região Autónoma dos Açores (cf. os artigos 19°, 26° e 46°), remetendo para regulamento, sob a forma de decreto regulamentar regional, o desenvolvimento desses princípios gerais e as respetivas condições específicas [neste particular, ver a Portaria nº 1430/2007, de 2 de novembro (fixa os procedimentos de licenciamento e de atribuição de alvará a novas farmácias e às que resultam de transformação de postos farmacêuticos permanentes, bem como da transferência da localização das farmácias)].
Nestes termos, conclui-se que o artigo 27.º do Decreto Legislativo Regional nº 6/2011/A, de 10 de março, ao dispor que o desenvolvimento dos “princípios gerais” e a determinação das “condições específicas” de “instalação, abertura e transferência de farmácias são definidos por decreto regulamentar regional”, fá-lo no completo respeito pelos preceitos constitucionais e legais vigentes, improcedendo, em consequência, o pedido de declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, da referida norma.
4. Apresentado e discutido em Plenário o memorando a que alude o artigo 63.º da LTC, cumpre decidir em harmonia com a orientação que aí se fixou.
II. Fundamentação
5. O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, na sua atual redação, que resulta das alterações introduzidas pela lei nº 2/2009, de 12 de janeiro, estabelece, no artigo 59.º, nº1, que “compete à Assembleia Legislativa legislar em matéria de política de saúde”. Por seu turno, a alínea e) do nº 2 do mesmo artigo esclarece que “a matéria correspondente à política de saúde abrange, designadamente […] o regime de licenciamento e funcionamento das farmácias e o acesso ao medicamento.”
Ao abrigo da competência que genericamente lhe é conferida por esta norma estatutária – que possui valor reforçado, nos termos das disposições conjuntas dos artigos 112.º, nº 3, 280.º, nº 2, alíneas b) e c), e 281.º, nº 1, alíneas c) e d) da Constituição –, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores aprovou o Decreto Legislativo Regional nº 6/2011, de 10 de março, que regula o regime jurídico das farmácias de oficina nesta Região Autónoma. Aí se dispõe, i.a., sobre o regime de licenciamento e funcionamento das farmácias, e sobre o acesso ao medicamento.
No que diz respeito ao licenciamento, determina o decreto legislativo regional, no seu artigo 26.º, que ele é precedido de “concurso público” e que é conferido por “alvará, emitido pela Direção Regional de Saúde”, cujo modelo consta de portaria do membro do Governo Regional competente em matéria de saúde. E acrescenta, no seu artigo 27.º, sob a epígrafe “condições gerais e específicas de instalação, abertura e transferência”, que “as condições gerais e específicas de instalação, abertura, e transferência de farmácias são definidas por decreto regulamentar regional, no prazo de 90 dias, a contar da publicação do presente diploma”.
É esta última norma, constante do artigo 27.º, que agora se impugna.
Sustenta essencialmente o requerente que o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA), ao atribuir à assembleia legislativa regional, no seu artigo 59.º, competência para legislar sobre a matéria de “funcionamento das farmácias”, aí se incluindo o regime de licenciamento, terá constituído neste domínio uma reserva de lei (a exercer sob a forma de decreto legislativo regional) que não é em si mesma compatível com a remissão que no artigo 27.º se faz para regulamento administrativo (decreto regulamentar regional), que deverá dispor sobre “[a]s condições gerais e específicas de instalação, abertura e transferência de farmácias”.
6. Embora no requerimento se parta do princípio segundo o qual a matéria de funcionamento das farmácias inclui a do licenciamento, deve desde já esclarecer-se que não é essa a conceção adotada pelo Estatuto Político-Administrativo. Na verdade, o artigo 59.º, nº 2, alínea e) do EPARAA autonomiza claramente as duas categorias, referindo-se cumulativamente a ambas como sendo matérias [de política de saúde] que se incluem no âmbito da competência legislativa da assembleia regional. Além disso, a mesma autonomização das duas categorias é mantida pela lei que integra a norma agora impugnada. Os artigos 28.º a 39.º do Decreto legislativo Regional nº 6/2011/A dispõem expressamente sobre o “funcionamento da farmácia”, sendo que os artigos 21.º a 25.º regulam especificamente as questões relativas à sua direção técnica e ao pessoal. Sobre “licenciamento e alvará”, bem como sobre as “questões gerais de abertura e transferência”, dispõem os artigos 26.º e 27.º. Neste último artigo, que contém a norma agora impugnada, está portanto apenas em causa o licenciamento para abertura e transferência das farmácias e não o seu funcionamento. É somente quanto ao primeiro que se coloca o problema da remissão para normação regulamentar, e não quanto ao segundo, que aparece regulado com relativo pormenor na lei regional.
Com efeito, o Decreto Legislativo Regional nº 6/2011/A veio revogar, no seu artigo 58.º, nº 1, alínea a), o Decreto Legislativo nº 19/99/A (alterado pelo Decreto Legislativo nº 25/99/A), que estabelecia o “regime jurídico de abertura e transferência das farmácias”, regulando as condições gerais e excecionais de licenciamento para instalação e transferência de farmácias (artigos 3.º, 4.º, 6.º, 7.º, e 20.º) e as regras processuais e de competências a respeitar no âmbito do concurso público para licenciamento de novas farmácias (artigos 5.º e 8.º a 19.º). Em contrapartida, o novo diploma remeteu, no seu artigo 27.º, a regulação de tal regime de abertura e transferência de farmácias para decreto regulamentar regional.
É por entender que tal remissão implica violação da reserva de lei instituída pelo já mencionado artigo 59.º, nº 2, alínea e) do Estatuto Político-Administrativo que o requerente pede que o Tribunal Constitucional declare, com força obrigatória geral, a ilegalidade do disposto no artigo 27.º do Decreto Legislativo Regional nº 6/2011/A.
7. A tese do requerente, que sustenta o pedido de declaração de ilegalidade, parte do princípio segundo o qual a norma estatutária, que atribui à Assembleia Legislativa Regional dos Açores a competência para legislar sobre política de saúde, aí incluindo as questões relativas ao regime de licenciamento das farmácias, não tem apenas por efeito a delimitação do âmbito das matérias em relação às quais, nos termos do atual quadro constitucional [artigos 227.º, nº 1, alínea a) e 228.º, nº 1 da CRP], exerce a região a sua autonomia legislativa. Mais do que concretizar o quadro constitucional de repartição de competências legislativas entre República e região, a norma estatutária, de acordo com o requerente, tem ainda o efeito de estabelecer um critério material de distribuição entre o que é próprio da função legislativa e o que é próprio da função administrativa no seio do ordenamento interno da região.
É esta tese, particularmente expressa na afirmação segundo a qual “o fim da norma [constante do artigo 59.º do EPARAA] é o de: (i) estabelecer uma reserva de Decreto Legislativo para todo o ‘regime de funcionamento das farmácias’; (ii) subtrair à atividade administrativa as matérias compreendidas no âmbito daquele regime” (cfr. supra, ponto 2 do Relatório; itálico nosso), que explica em última análise que o pedido, apresentado nos termos do disposto pela parte final da alínea g) do nº 2 do artigo 281.º da Constituição, seja um pedido de declaração de ilegalidade, fundado em violação, por parte de lei regional, de norma constante do Estatuto Político-Administrativo da região. Subjacente a este pedido está com efeito a ideia segundo a qual os estatutos da região contêm eles próprios o parâmetro de validade da norma constante da lei regional, o que implica partir do princípio segundo o qual a CRP, para além de conferir ao legislador estatutário o poder de enunciar as matérias sobre as quais deterá a região competência legislativa própria, também o habilitou a constituir reservas de lei a favor do legislador regional, com a consequente exclusão da possibilidade de normação administrativa nas matérias estatutariamente enunciadas.
É certo que a esta tese, segundo a qual a norma estatutária, para além de concretizar o quadro constitucional de repartição de competências legislativas entre República e região, constitui ela própria, e no domínio do ordenamento interno da região, uma reserva material a favor do legislador regional – com a consequente exclusão da possibilidade de normação administrativa sobre a matéria –, o requerente faz acrescentar uma segunda ideia: a de que a reserva será, nesses domínios, uma reserva total, de modo a que nenhum espaço seja deixado à regulação por fonte administrativa. É isso mesmo que decorre da afirmação que faz a certo passo do seu requerimento, segundo o qual “[o] artigo 27.º, agora escrutinado, ofende a reserva de lei estabelecida pelo artigo 59.º do EPARAA, a qual é uma reserva total quanto às matérias cobertas pelo regime jurídico do licenciamento (…) das farmácias” . [cfr. supra, ponto 2 do Relatório].
Aliás, deve desde já sublinhar-se que é essencialmente esta segunda ideia que é, no presente caso, discutida entre o requerente e o órgão autor da norma, visto que este último, na sua resposta, não contesta propriamente a existência da reserva; o que questiona é que ela tenha, como afirma o requerente, uma extensão total.
Com efeito, e como se depreende do relato anteriormente feito, toda a argumentação apresentada pelo autor da norma parte do princípio segundo o qual os artigos 112.º, nº 4, 227.º, nº 1, e 232.º, nº 1 da CRP configuram uma efetiva reserva de lei formal a favor das assembleias legislativas regionais, naquelas matérias que, sendo enunciadas nos respetivos estatutos, delimitam o âmbito da autonomia legislativa das regiões. O que se acrescenta, porém, é que essa reserva de lei formal não deve ser entendida como uma reserva material esgotante, uma vez que tal acarretaria uma interpretação arcaica do conceito de reserva de lei material, segundo a qual caberia ao ato legislativo tudo regular. (No caso, tal implicaria que ao decreto legislativo regional caberia a conformação de toda a arquitetura normativa, até ao mais ínfimo pormenor, do regime jurídico das farmácias na Região Autónoma dos Açores).
Com este argumento não se questiona, portanto, que a reserva exista. Não se questiona que as normas dos Estatutos Político-Administrativos que enunciam as matérias sobre as quais a região pode legislar, para além de terem efeitos “externos”, ou seja, nas relações entre República e regiões (delimitando a esfera da autonomia legislativa das últimas face à primeira), tenham também efeitos “internos”, nas relações entre parlamentos e governos regionais, delimitando a esfera de ação reservada dos primeiros face aos segundos. O que se questiona é a extensão da reserva, na medida em que se põe em causa o princípio da total exclusão de regulamentação administrativa nas matérias enunciadas nos estatutos.
Os fundamentos que para tanto se invocam são, também, de ordem constitucional. Basicamente, o que se entende é que das normas constitucionais que “habilitam” os estatutos a constituir reservas de lei a favor das assembleias legislativas regionais (artigos 112.º, nº 4; 227.º, nº 1; 232.º, nº 1) se não pode retirar a ideia segundo a qual o campo reservado à lei será um campo material esgotante. E isto porque uma tal leitura, para além de contrariar outros princípios constitucionais, como os do pluralismo e da descentralização, se mostrará dificilmente compatível com as modernas exigências de uma boa administração, que, num quadro de complexidade e tecnicidade crescente, deverá conviver – sobretudo nas regiões, em que só as assembleias detêm competência legislativa – com modelos de lei flexíveis e abertos à normação administrativa, que possibilitem a adaptação da norma legal às condições específicas da sua aplicação.
Como quer que seja, a verdade é que deste quadro de argumentação, apresentado tanto pelo requerente quanto pelo autor da norma, resultam duas questões diferentes, que devem ser distinguidas, sendo que a resolução da primeira tem prioridade lógica sobre a resolução da segunda.
Com efeito, só será possível determinar qual a extensão da reserva de lei que o artigo 59.º, nº 2, alínea e) do EPARAA instituiu – e qual a margem por ela eventualmente deixada à regulação administrativa – se antes for resolvida a questão de saber se a norma estatutária, que identifica, nos termos dos artigos 227.º e 228.º da CRP, as matérias sobre as quais detém a região competência legislativa própria, para além de completar o edifício constitucional de repartição de competências entre República e região, é também, nos termos da CRP, norma apta a constituir por si mesma uma reserva a favor do legislador regional, de forma a excluir a possibilidade de, no território da região, vir a incidir sobre a “matéria” regulação proveniente da administração regional.
Assim sendo, pela análise desta questão se começará.
8. É sabido que a sexta revisão da Constituição da República, levada a cabo pela Lei Constitucional nº 1/2004, veio alterar profundamente o modelo básico de repartição de competências legislativas entre Estado e regiões. No centro da alteração encontra-se a nova função que às normas estatutárias é agora atribuída. De acordo com a atual redação da alínea a) do nº 1 do artigo 227.º, e dos nº 1 e 2 do artigo 228.º da CRP, cabe aos estatutos político-administrativos enunciar as matérias, ou os setores de atividade, em relação às quais se exerce a autonomia legislativa regional, em harmonia com o princípio da supletividade da legislação nacional. Daqui resulta, portanto, um quadro constitucional de repartição de competências entre República e regiões que, sendo diverso do vigente antes da sexta revisão da CRP – e tendo sido adotado pelo legislador de revisão com o intuito de assegurar uma mais ampla leitura do princípio da autonomia regional -, devolve aos estatutos político-administrativos a função de completar ou integrar o próprio modelo constitucional de repartição de competências entre legislador nacional e legislador regional. Na verdade, e como tem dito o Tribunal (vejam-se, entre outros, os Acórdãos nºs 258/2007, 402/2008, 432/2008 e 304/2011), o âmbito de atuação daquele último legislador passou a ser definido pela Constituição e pelos Estatutos Político-Administrativos das regiões, que, uma vez respeitadas as exigências impostas pelo âmbito regional e pela reserva de competência dos órgãos de soberania [artigos 112º, nº 4; 227.º, nº 1, alínea a) da CRP], definem os setores de atividade sobre os quais se exercerá a competência legislativa regional.
A questão que se coloca é, porém, a de saber se às normas estatuárias que enunciam as matérias sobre as quais a região exerce a sua autonomia legislativa pode, constitucionalmente, ser assinalada uma outra função para além daquela que acabou de descrever-se – a de completar ou integrar o quadro constitucional de repartição de competências entre legislador nacional e legislador regional. Mais precisamente, tudo está em saber se essas normas têm ainda, na ordem interna da região, o efeito de reservar à função legislativa regional a normação sobre as matérias enunciadas, com a consequente subtração da regulação administrativa. No caso, sustenta a requerente que assim é quanto ao artigo 59.º do EPARAA, que determina que “[c]ompete à Assembleia Legislativa legislar em matéria de política de saúde”, incluindo-se nela “o regime de licenciamento das farmácias”.
Deve desde já dizer-se que a Constituição não impede que se confira às normas estatutárias que enunciam as matérias que [tendo âmbito regional e não estando reservadas à competência dos órgãos de soberania] são da competência legislativa própria da região, para além da função externa de recorte do âmbito das competências legislativas nacionais e regionais, ainda a função interna de distribuição de tarefas entre o que deve ser, na região, regulado por lei, e o que nela pode vir a ser objeto de regulação administrativa. Na verdade, dois argumentos de ordem constitucional sustentam esta conclusão.
Encontra-se o primeiro na forma como a Constituição concebe os Estatutos Político-Administrativos. O lugar hierárquico que lhes reserva no quadro das fontes de Direito interno [onde, como já se viu, são “leis de valor reforçado”, nos termos dos artigos 112.º, nº 3; 280.º, nº 2, alíneas b) e c), e 281.º, nº1, alíneas c) e d)], associado ao procedimento especial que impõe para a sua aprovação (artigos 226.º) revelam a importância que os estatutos regionais têm no sistema da CRP. O Estatuto Político-Administrativo é a lei básica da região, que, dentro do quadro constitucional, regula o modo de organização e de exercício do poder autonómico, definindo as competências e inter-relações entre os órgãos de governo próprio da região e o estatuto dos seus titulares (artigo 231.º). As normas que integram esta lei básica, e que completam o quadro constitucional de repartição de competências entre legislador nacional e legislador regional, detêm, pelo lugar, hierárquico e funcional, que a Constituição lhe atribui – e pela função substancial que cumprem, de serem a primeira expressão da autonomia político-legislativa da região: artigo 6.º, nº 2, da CRP – legitimidade bastante para serem elas próprias “normas distribuidoras” de tarefas no seio da região, enunciando as matérias que, sendo reservadas à função reguladora do legislador regional, ficam subtraídas, na região, à regulação administrativa.
A este argumento, atinente ao lugar que as normas estatutárias ocupam no sistema de fontes normativas desenhado pela Constituição, acresce um outro argumento, desta vez relativo ao lugar que as Assembleias Legislativas Regionais ocupam nos sistema de governo da região, tal como ele foi estabelecido pela CRP.
As relações que, nas regiões, se estabelecem entre o poder legislativo e o poder executivo não replicam aquelas outras que, na República, se estabelecem entre Parlamento e Governo. Por razões que se prendem, afinal, com os fundamentos da própria autonomia regional (artigo 225.º), na região a assembleia legislativa, de base eletiva, detém uma reserva de competência face ao governo regional que, sendo bem mais vasta do que a reserva homóloga da Assembleia da República, abarca não apenas todas as competências legislativas da região, mas também certos dos seus poderes regulamentares, bem como as suas competências de iniciativa legislativa (artigo 232.º, nº 1).
É por estes motivos que se conclui que a CRP não impede que se entenda que as normas dos estatutos que enunciam as matérias sobre as quais a região pode legislar são normas que têm por efeito a constituição, na ordem interna dessa região, de reservas de lei a favor do legislador regional. Assim, nada obsta a que se entenda que o artigo 59.º do EPARAA, ao dispor que compete à Assembleia Legislativa Regional legislar em matéria de política de saúde, incluindo o licenciamento das farmácias, constituiu neste domínio uma reserva de lei, a ser exercida pela assembleia através da emissão de um decreto legislativo regional, com a consequente exclusão da possibilidade de este setor de atividade vir a ser regulado por norma administrativa.
Resta no entanto determinar qual a extensão que deve ter esta reserva de lei.
9. Com efeito, e como já se viu, o autor da norma, na sua resposta, não contesta a existência da reserva. O ponto de partida de toda a sua argumentação é, justamente, o de que os artigos 112.º, nº 4, 227.º, nº 1 e 232.º, nº 1 da CRP configuram uma efetiva reserva de lei formal a favor das assembleias legislativas regionais, naquelas matérias que, sendo enunciadas nos respetivos estatutos, delimitam o âmbito da autonomia legislativa das regiões. O que acrescenta, porém, é que a referida reserva de lei formal não tem necessariamente que se traduzir numa reserva material esgotante. De acordo com o seu entendimento, aos parlamentos regionais caberá a definição, através de lei, das opções políticas primárias que regularão os setores de atividade estatutariamente enunciados; mas tal não significa que a administração regional esteja impedida de, uma vez definidas por lei as opções gerais sobre certa matéria, vir a desenvolver, através de regulamento, essas mesmas opções, aplicando-as às especificidades das situações concretas.
Por assim entender, sustenta ainda na sua resposta o autor da norma que se deve ter por válido o Decreto Legislativo Regional nº 6/2011, de 10 de março, “[o qual] estabelece os princípios gerais relativos à instalação, abertura e transferência de farmácias na Região Autónoma dos Açores (cf. artigos 19.º, 26.º e 46.º), remetendo para regulamento regional o desenvolvimento desses princípios gerais e as respetivas condições específicas [de aplicação]”.
Sucede, porém, que os artigos do decreto legislativo regional acabados de mencionar não contêm quaisquer “ princípios gerais” relativos às condições materiais de licenciamento das farmácias no Arquipélago dos Açores. Diversamente do que ocorria com o Decreto Legislativo Regional nº 19/99/A, agora revogado, que, nomeadamente nos seus artigos 3.º, 4.º, 6º, 7º e 20.º, definia as “condições gerais” de licenciamento, o novo diploma legal remete totalmente para decreto regulamentar regional a definição dessas mesmas condições.
É certo, como afirma ainda na sua resposta o órgão autor da norma, que tais condições foram, a nível nacional, definidas por mero regulamento (nomeadamente, a Portaria nº 1430/2007, de 2 de novembro). No entanto, é também certo que, a esse “nível”, não existe sobre a matéria qualquer reserva de lei. Ora, se se entende que tal reserva foi constituída, no domínio regional, pela norma constante da alínea e) do nº 2 do artigo 59.º do EPARAA, há então que daí retirar as devidas consequências.
A extensão de uma reserva especial de lei pode ter gradações diversas, consoante a específica matéria sobre a qual incida. Todavia, tanto a jurisprudência (veja-se, por exemplo, o Acórdão nº 289/2004, disponível em www.tribunalconsitucional.pt) quanto a doutrina (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed. Vol. II, Coimbra 2010, p. 70) são unânimes em considerar que, aí onde houver reservas de lei, ao ato legislativo caberá sempre, e pelo menos, fixar “o sentido e os limites da intervenção regulamentar” (Acórdão nº 289/2004) “não podendo a lei, no âmbito da reserva, deixar de esgotar toda a regulamentação “primária” das matérias, só podendo remeter para regulamento os aspetos “secundários”. (ob. e loc. cits.)
Ora a edição, por via de lei, de tal 'regulamentação primária' da matéria de licenciamento de farmácias não ocorre no diploma agora em apreciação.
Na verdade, o Decreto Legislativo Regional n.º 6/2011/A é omisso no que respeita a quaisquer condições substantivas de atribuição de alvará. Nada diz, do ponto de vista material, sobre 'o sentido e os limites da intervenção regulamentar' em matéria de licenciamento. Não contém quaisquer critérios materiais relativos à concessão de alvará para abertura ou transferência de farmácias.
O artigo 26.º do decreto legislativo regional limita-se a estabelecer genericamente a exigência de 'concurso público' e a determinar a entidade competente para conceder o alvará: a 'Direção Regional de Saúde'. Prescreve que deverá existir um procedimento concursal e estabelece uma regra de competência para a concessão de alvarás de licenciamento. Apenas contém regras de cariz estritamente orgânico-formal. Não estabelece, pois, qualquer princípio geral dotado de conteúdo material relativo ao exercício da competência para concessão de licenciamento. Por seu turno, o seu artigo 19.º (preceito este que o requerente invoca) não se refere a matéria de licenciamento, pelo que não pode aqui ser tido em consideração. E, de igual modo, também o artigo 46.º do mesmo diploma se não refere diretamente às condições de licenciamento de abertura e transferência de farmácias, mas apenas à questão da 'transformação de postos farmacêuticos permanentes' em farmácias.
É certo que se o Estatuto Político-Administrativo atribui expressamente à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores a competência para legislar em matéria de “licenciamento de farmácias”, não sendo aliás essa competência passível de delegação ao Governo (em conformidade com o artigo 232.º, nº 1, da Constituição), tal não significa que a lei tenha que ser absolutamente exaustiva na regulamentação: haverá naturalmente que deixar todo um necessário conjunto de pormenores para concretização a fazer através de regulamento. No entanto, também é certo que, havendo limites impostos pela reserva de lei constituída pelas normas estatutárias, não pode o decreto legislativo regional deixar de oferecer à regulação administrativa um quadro substantivo de referência, devendo por isso ele próprio ser dotado de um conteúdo material suficiente.
O Decreto Legislativo Regional n.º 6/2011/A, ao não definir sequer os princípios gerais que deverão materialmente regular o licenciamento das farmácias, e ao remeter globalmente para decreto regulamentar, no artigo 27.º, a definição dos termos em que tal se deverá fazer, desrespeita portanto a norma constante do artigo 59.º, n.º 2, alínea e), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, padecendo, por isso, de ilegalidade.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se declarar a ilegalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 27.º do Decreto Legislativo Regional nº 6/2011/A, de 10 de março, por violação do artigo 59.º, nº 2, alínea e) do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
Lisboa, 17 de abril de 2012.- Maria Lúcia Amaral – J. Cunha Barbosa – João Cura Mariano – Ana Maria Guerra Martins – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – Vítor Gomes – Maria João Antunes (vencida, nos termos da declaração que anexa) – Carlos Fernandes Cadilha (vencido nos termos da declaração de voto em anexo) – Gil Galvão (vencido, no essencial pelas razões constantes da declaração de voto da Exma. Conselheira Maria João Antunes) – Carlos Pamplona de Oliveira – vencido, conforme declaração que anexo. – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida por entender que os requerentes, deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, não têm legitimidade para formular o pedido de declaração da ilegalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 27.º do Decreto Legislativo Regional n.º 6/2011, de 10 de março, face ao que dispõe o artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição da República Portuguesa: os deputados à Assembleia Legislativa regional podem requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, quando o pedido se fundar em violação dos direitos das regiões autónomas e a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, quando o pedido se fundar em violação do respetivo estatuto.
Ao remeter para decreto regulamentar regional a definição das condições gerais e específicas de instalação, abertura e transferência de farmácias, sem definir sequer os princípios gerais de tal regulação, o artigo 27.º daquele Decreto Legislativo Regional viola o disposto no artigo 232.º, n.º 1, da Constituição, na parte em que remete para a alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º Vício de inconstitucionalidade que consome o vício de ilegalidade decorrente da violação do artigo 59.º, n.º 2, alínea e), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, na medida em que esta disposição estatutária reproduz o critério constitucional de atribuição de competência legislativa à Assembleia Legislativa da região autónoma.
Admitir nestes casos de coincidência que os deputados da Assembleia Legislativa tenham legitimidade para requerer a apreciação da ilegalidade, com força obrigatória geral, implica uma “manifesta contradição com a ratio legis e com o sentido histórico” do artigo 281.º, n.º 2, da Constituição, como se conclui no Acórdão n.º 198/2000 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se lê o seguinte:
«Na verdade, se houvesse de admitir-se, por ser essa a intenção normativa, que a coincidência de uma norma estatutária com uma norma constitucional não afetaria a legitimidade dos requerentes, estar-se-ia, igualmente, a admitir que através da reprodução de normas constitucionais nos estatutos das regiões se poderia alargar o âmbito do poder dos deputados regionais quanto à formulação de pedidos de declaração de inconstitucionalidade.
Essa consequência, porém, é insustentável, dentro da lógica articulação entre declarações de inconstitucionalidade e ilegalidade, tal como elas são previstas na Constituição. Com efeito, não poderia o legislador constitucional ter pretendido restringir a legitimidade de certos requerentes, quanto ao pedido de declaração de inconstitucionalidade, de modo apenas formal, admitindo, porém, que essa restrição não operaria se o legislador ordinário viesse a integrar no estatuto regional uma reprodução da norma constitucional.
A delimitação da legitimidade não há de ser, por isso, compreendida como mera limitação de invocação da violação de normas pela sua inserção formal, mas desde logo como uma subtração a certos requerentes da competência para questionar a violação de normas ou princípios constitucionais, estejam eles formulados onde estiverem, quando não esteja em causa a defesa de direitos regionais.
Não sendo, aliás, a legitimidade dos deputados regionais genérica, isto é, relativa a quaisquer normas constitucionais, ela só pode compreender-se como uma legitimidade excecional, que não poderia compatibilizar-se, em termos sistemáticos, com a possibilidade do conteúdo normativo do preceito constitucional ser questionado pela via da legalidade.
11. Por outro lado, surge como evidente a opção que orientou o legislador constitucional quanto a não atribuir aos órgãos regionais ou aos representantes das regiões o poder de suscitar, fora do âmbito dos direitos da região, a fiscalização da constitucionalidade. Trata-se de uma opção pela concentração de tal poder em órgãos representativos do Estado, aos quais é atribuído um papel exclusivo no desencadeamento do controlo da constitucionalidade. Assim, o efeito de “degradação” de uma verdadeira questão de constitucionalidade (isto é, de violação de normas ou princípios constitucionais) numa questão de legalidade, pela via formal da legitimidade, frustraria a lógica das opções constitucionais plasmadas nos artigos 280º e 281º da Constituição.
12. Deverá, em consequência do que se expôs, concluir-se que o vício de inconstitucionalidade consome o de ilegalidade para efeitos de delimitação da legitimidade dos deputados regionais requerentes, no caso do artigo 281º, nº 2, alínea g), da Constituição. E não pode o facto de a norma constitucional cuja violação é invocada ser simultaneamente uma norma estatutária permitir que o interesse que se protege com a exclusão da legitimidade para a formulação do pedido de fiscalização abstrata da constitucionalidade venha a ser postergado pela via do pedido de ilegalidade. Impõe-se, antes, a prevalência desse interesse, na medida em que ele exprime a posição do sistema quanto aos poderes gerais de suscitar a fiscalização de constitucionalidade».- Maria João Antunes.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido com base nas seguintes considerações:
O reenvio normativo efetuado pelo artigo 27º do Decreto Legislativo Regional n.º 6/2001/A, de 10 de março, para Decreto Regulamentar Regional em relação às condições gerais e específicas da instalação, abertura e transferência de farmácias, sem qualquer prévia definição dos princípios gerais atinentes a essa matéria, configura uma situação de deslegalização que se reconduz a uma violação da reserva de competência da Assembleia Legislativa Regional, por força da aplicação conjugada das disposições dos artigos 111º, n.º 2, 227º, n.º 1, alínea a), e 232º, n.º 1, da CRP.
O artigo 59º, n.º 1, e n.º 2, alínea e), do EPARAA, ao atribuir à Assembleia Legislativa Regional a competência para legislar em matéria de política de saúde, designadamente, no tocante ao regime de licenciamento de farmácias, limita-se a reproduzir o critério constitucional que resulta já das mencionadas disposições dos 227º, n.º 1, alínea a), e 232º, n.º 1, da CRP, que, por um lado, delimitam o poder legislativo regional por referência a matérias de âmbito regional que se encontrem enunciadas no estatuto político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania, e, por outro, dentro das atribuições regionais, conferem esse poder, em exclusivo, à Assembleia Legislativa.
Em termos constitucionais, a inscrição da matéria relativa ao licenciamento das farmácias no estatuto político-administrativo implica necessariamente (salvo quando se trate simultaneamente de competência reservada dos órgãos de soberania) a delimitação do âmbito objetivo e material da competência legislativa da Região, que se encontra atribuída à correspondente assembleia legislativa, sendo inteiramente irrelevante, no plano jurídico, que a norma estatutária venha reafirmar esse mesmo princípio de competência (como sucede, no caso, por força da formulação verbal do n.º 1 do artigo 59º).
A enumeração pelos estatutos das matérias que integram o poder legislativo das regiões autónomas é, por conseguinte, um mero requisito da competência reservada das assembleias legislativas regionais (que se encontra predefinido no texto constitucional), pelo que a atribuição de normação primária ao Governo Regional em detrimento da norma estatutária não representa um vício autónomo de ilegalidade, mas uma questão de inconstitucionalidade, que, pela sua prevalência, consome a possível violação simultânea de uma disposição do estatuto (cfr., em situação similar, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 198/2000 e 499/2008).
Daqui decorre, como necessária consequência, a ilegitimidade dos requerentes, enquanto deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, para formular o pedido, face ao que dispõe o artigo 281º, n.º 2, alínea g), da Constituição, que estipula que o pedido de declaração de inconstitucionalidade, quando por eles acionado, se deverá fundar em violação dos direitos das regiões autónomas, e não em violação do respetivo estatuto.
Nem tem cabimento afirmar que, deste modo, se retira aos deputados regionais o poder de desencadearem a intervenção do Tribunal Constitucional para garantir a observância da repartição de competências entre órgãos regionais. O critério de legitimidade, tal como se encontra definido no artigo 281º da Constituição, é uma opção constitucional que tem por base, não um mero interesse pessoal ou político-partidário, mas a titularidade de determinados cargos e a sua especial vocação para a defesa e garantia do princípio da constitucionalidade e da legalidade; e, no caso, entendeu-se que os deputados regionais são especialmente qualificados para defender a autonomia regional, seja com fundamento na violação dos direitos das regiões autónomas, seja com fundamento na violação do estatuto regional, deixando de lado o poder de iniciativa no tocante a outras matérias em que esteja em causa a mera relação interna entre órgãos regionais. E é este critério que o Tribunal Constitucional não pode deixar de acolher (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, II Vol., 4ª edição, pág. 967; neste sentido, o citado acórdão n.º 198/2000).
Teria, por isso, decidido no sentido da ilegitimidade dos requerentes, tomando como assente que o vício imputado ao diploma legislativo em causa configura, em primeira linha, uma questão de inconstitucionalidade, sobre a qual o Tribunal Constitucional não poderia deixar de se pronunciar, ainda que o pedido tenha sido originariamente reportado a matéria de ilegalidade.
Carlos Alberto Fernandes Cadilha
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à pronúncia de ilegalidade do artigo 27º do Decreto Legislativo Regional nº 6/2011, de 10 de março, pelas seguintes razões:
O vício que os requerentes apontam à norma consiste, essencialmente, na violação 'da reserva de lei' que é, no seu entender, estabelecida na alínea e) do nº 2 do artigo 59.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
Acontece que não é ao Estatuto da Região que cabe distribuir as competências de produção normativa pelos órgãos regionais, pois tal tarefa cabe, exclusivamente, à Constituição. Conforme explica Jorge Miranda, existe uma autêntica “reserva de Constituição no domínio das competências legislativas, das formas e da força de lei” (Manual de Direito Constitucional, Tomo V, 3ª Edição, Coimbra Editora, 2004, p. 197), pelo que se é certo que “a Constituição permite ao legislador escolher o tempo e as circunstâncias da sua intervenção e determinar ou densificar o seu conteúdo, desde que respeitados os fins, os valores e os critérios constitucionais (…) já no plano orgânico-formal é completa a vinculação, sob um tríplice aspeto: o dos órgãos, o das formas, e o da força jurídica”.
E a verdade é que o invocado artigo 59º n.º 2 alínea e) do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores não visa identificar o órgão competente para a produção legislativa regional, pois tal já está determinado pela alínea a) do n.º 1 do artigo 227º e pelo n.º 1 do artigo 232º da Constituição; a economia do preceito reside, com efeito, em fazer incluir na competência da Região o poder de legislar sobre matéria de política de saúde e, designadamente, sobre o 'regime de licenciamento e funcionamento das farmácias', conforme, aliás, permite a citada alínea a) do n.º 1 do artigo 227º da Constituição, na sua atual redação.
Isto significa que é a Constituição que assume o papel de norma primária sobre a produção jurídica, o que lhe reserva a definição de três importantes funções: a identificação das fontes de direito do ordenamento jurídico português, o estabelecimento de critérios de validade e eficácia de cada uma das fontes, e a determinação de competência das entidades que revelam normas de direito positivo. Na verdade, a identificação das fontes de direito do ordenamento jurídico regional, o estabelecimento de critérios de validade e eficácia de cada uma das fontes, e a determinação da competência das entidades envolvidas na produção de normas de direito regional, ocorrem por via do disposto nos n.ºs 1, 4 e 5 do artigo 112º, na alínea a) do n.º 1 do artigo 227º e no n.º 1 do artigo 232º da Constituição.
Em suma, o vício invocado como fundamento do pedido não é, como erradamente aceita o acórdão, um vício de ilegalidade por violação do artigo 59º n.º 2 alínea e) do Estatuto regional, mas um vício de inconstitucionalidade por violação dos referidos n.ºs 1, 4 e 5 do artigo 112º, alínea a) do n.º 1 do artigo 227º e n.º 1 do artigo 232º da Constituição. No caso em presença, esta qualificação acarreta a impossibilidade de os requerentes poderem pedir ao Tribunal a declaração de inconstitucionalidade, uma vez que, para os efeitos da alínea g) do n.º 2 do artigo 281º da Constituição, não está em causa a 'violação dos direitos das regiões autónomas'.
O Tribunal deveria, portanto, abster-se de decretar a pedida ilegalidade da norma.- Carlos Pamplona de Oliveira.