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Processo nº 417/94
1ª Secção
Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A., identificado nos autos, foi submetido a
julgamento com processo sumário no Tribunal Judicial da Comarca de Portimão, em
9 de Julho de 1994, em virtude de se indiciar que, nesse mesmo dia, pelas 0,45
horas, conduzia um veículo automóvel ligeiro, em estrada municipal,
apresentando uma taxa de alcoolemia no montante de 2,51 gramas de álcool por
litro.
O Senhor Juiz, por sentença do mesmo dia, condenou
o arguido como autor material de um crime previsto e punido nos artigos 1º e 2º,
nº 1, do Decreto-Lei nº 124/90, de 11 de Abril, na pena de 120 dias de multa à
taxa diária de 400$00 - fixando em alternativa a esta 80 dias de prisão -
mas não o condenou na 'sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir,
por julgar inconstitucional o disposto no artigo 4º, nº 2, alínea a), do
Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril'.
No entendimento desse magistrado, a norma cuja
aplicação afastou viola não só o disposto no artigo 30º, nº 4, da Constituição
da República (CR) e o princípio constitucional da culpa, como igualmente o
preceituado nos artigos 1º, 13º, nº 1, e 25º, nº 1, do mesmo texto.
2.- Do assim decidido recorreu a magistrada do
Ministério Público junto dessa comarca, de acordo com o disposto nos artigos
70º, nº 1, alínea a), e 72º, nºs. 1, alínea a), e 3, da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro.
Admitido o recurso, só apresentou alegações neste
Tribunal o Senhor Procurador-Geral Adjunto, que as concluiu do seguinte modo:
'1º- Não pode considerar-se como efeito automático da
condenação por certo tipo legal de crime a imposição de uma sanção acessória,
mediante decisão do juiz, que se encontra habilitado a graduar a medida
concreta daquela, em função da ponderação das circunstâncias do caso.
2º- O regime estatuído no artigo 4º, nºs. 1 e 2, alínea a),
não ofende o disposto no artigo 30º, nº 4, da Constituição, nem envolve
qualquer infracção aos princípios constitucionais da culpa e da
proporcionalidade das sanções criminais.
3º- Termos em que deve proceder o presente recurso,
determinando-se a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o juízo de
constitucionalidade das normas desaplicadas'.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e
decidir.
II
1.1.- O objecto do presente recurso encontra-se delimitado pela norma
do Decreto-Lei nº 124/90 que o juiz a quo recusou aplicar, por a considerar
inconstitucional.
O Decreto-Lei nº 124/90, editado ao abrigo da
autorização legislativa constante da Lei nº 31/89, de 21 de Agosto, criou um
novo tipo de ilícito penal correspondente à condução de veículos, com ou sem
motor, apresentando o seu condutor uma taxa igual ou superior a 1,20 gramas de
álcool por litro no seu sangue, além de criar ilícitos de natureza
contravencional nos casos em que aquela taxa, sendo inferior àquele valor, seja,
porém, igual ou superior a 0,50 gramas e inferior a 0,80 gramas de álcool, ou
superior a esta última, mas inferior a 1,20 gramas.
Para o ilícito de natureza criminal a sanção
enunciada, havendo dolo, é a de pena de prisão até um ano ou multa até 200
dias, se pena mais grave não for aplicável, e, no caso de negligência, pena de
prisão até seis meses ou multa até 100 dias - cfr. os nºs. 1 e 2 do artigo 2º
do diploma.
A estas penas acresce, no entanto, uma outra,
acessória, de inibição da faculdade de conduzir, constante precisamente do
artigo 4º, ora em causa e que assim preceitua:
'Artigo 4º
Inibição da faculdade de conduzir
1.- Às penas previstas nos artigos 2º e 3º acresce a sanção
acessória de inibição da faculdade de conduzir.
2.- A inibição terá a seguinte sanção:
a) seis meses a cinco anos nos casos previstos no artigo 2º;
b) três meses a dois anos nos casos previstos no nº 3 do
artigo 3º.'
A norma desaplicada - já se registou - é a da
alínea a) do nº 2 do transcrito artigo 4º.
A questão em apreço não é, aliás, pela primeira vez
colocada à apreciação deste Tribunal, tendo já sido lavrados acórdãos que firmam
uma linha jurisprudencial uniforme e estabilizada, se bem que recente (cfr.,
inter alia, os Acórdãos nºs.234/95, 235/95, 236/95 e 237/95, da 1ª Secção e
nºs.667/94, 70/95, 73/95, 143/95 e 144/95 da 2ª Secção, todos inéditos, excepto
o nº 667/94, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Fevereiro de
1995).
1.2.- A norma em causa, de acordo com a decisão recorrida, violaria o
disposto no nº 4 do artigo 30º da CR na medida em que, ocorrendo o ilícito
criminal previsto no artigo 2º do diploma, estabelece uma sanção de
funcionamento automático.
Por sua vez, ao prever-se um período de inibição da
faculdade de conduzir sem que se distinga o dolo de mera negligência no
cometimento do crime, desrespeita-se o princípio constitucional da culpa.
Finalmente, está em causa o princípio da
proporcionalidade, e bem assim o da igualdade, dado a moldura da medida de
inibição ser superior à própria moldura da pena principal, no caso de
negligência. Ou seja, 'a mesma culpa levaria a uma punição na pena principal
desfasada da punição na pena acessória. Só o máximo da pena principal pelo
cometimento do crime na forma negligente permitiria a aplicação da inibição em
período semelhante'.
De acordo com o juiz a quo semelhante disparidade
não é justificável, como tão pouco a indistinção entre a culpa dolosa e a
negligente, desse modo se violando o princípio da culpa (CR, artigos 1º, 13º, nº
1, e 25, nº 1).
2.- Ora, contrariamente ao que se defende na sentença
recorrida, entende-se que a norma da alínea a) do nº 2 do artigo 4º em
referência não viola o nº 4 do artigo 30º da CR - independentemente da sua
qualificação jurídica como medida de segurança, 'sanção' ou 'pena' acessória ou
como mero 'efeito' da pena - uma vez que não surge como efeito automático da
pena de prisão ou da pena de multa previstas no artigo 2º do mesmo texto legal.
Na verdade, cumpre perguntar, onde está o
automatismo da medida quando esta não deriva necessariamente da aplicação de
uma dada pena mas é aplicada pelo juiz em face do circunstancialismo de cada
caso, o que o leva a gradua-la dentro dos parâmetros estabelecidos legalmente,
em função, nomeadamente, da culpa do agente?
Como conciliar a tese do automatismo, conducente ao
juízo de inconstitucionalidade formulado, com a necessidade da aplicação
jurisdicional e graduada da medida?
Na realidade, o Acórdão nº 224/90 deste Tribunal
Constitucional - publicado no Diário da República, I Série, de 8 de Agosto de
1990 - invocado pelo magistrado recorrido, em abono da sua tese, não é de
considerar no caso vertente.
Aí se decidiu, ao analisar o disposto no artigo
46º, nº 2, alíneas a), b), c), d) e e), do Código da Estrada aprovado pelo
Decreto-Lei nº 39 672, de 20 de Maio de 1954, quanto à medida de inibição de
condução prevista nesse preceito, e tomando a faculdade de conduzir veículos
automóveis como um direito civil, não permitir o artigo 30º, nº 4, da CR, que a
perda desse direito se produza ope legis, provenha directamente da lei.
E, com efeito, no texto de então, a uma das
condenações por crimes previstos naquele preceito, ou a uma das situações
contempladas nas suas várias alíneas, correspondia a proibição de condução como
seu efeito, automaticamente, sem a intervenção de mediação do julgador,
adequadora às circunstâncias de cada caso.
Ora, é só à perda de direitos como efeito
automático da pena que o nº 4 do artigo 30º da CR se refere ao dispor que
'nenhuma pena envolve, como efeito necessário, a perda de quaisquer direitos
civis, profissionais ou políticos'.
Na verdade, não é constitucionalmente proibido que
à condenação por certos crimes se sigam, necessariamente, certas consequências.
O que se veda é que uma certa condenação penal produza automaticamente, por mero
efeito da lei, a perda de qualquer um daqueles direitos; já não, como se
observa no acórdão nº 143/95, que a sentença condenatória possa decretar essa
perda de direitos em função de uma graduação da culpa, feita casuisticamente
pelo juiz.
Tão-pouco é adequado trazer à colação, como solução
alternativa, constitucionalmente inatacável, o disposto no artigo 218º do
Código Penal ou no artigo 12º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28
de Dezembro, como argumenta, por último, o juiz recorrido, casos em que a
limitação ao exercício de um direito civil se opera no âmbito de uma moldura
penal e de modo não automático.
A este propósito perfilha-se o observado pelo
Senhor Procurador-Geral Adjunto, a dado passo das suas alegações:
'O que, na realidade, a decisão recorrida parece pretender extrair
do disposto no nº 4 do artigo 3º [...] é algo que já nada tem a ver com a
problemática da 'automaticidade' dos efeitos da aplicação de certas penas ou da
condenação por certos crimes - e que, em última análise, se traduziria na
'discricionariedade judicial' na própria aplicação (ou não aplicação) de
determinadas sanções acessórias - como efectivamente ocorrerá, por exemplo,
com o invocado artigo 218º do Código Penal - consoante a valoração das
circunstâncias do caso'.
Esta matéria, no entanto, transcende claramente a
problemática em causa - como mais se observa - situando-se na margem da
livre regulação do legislador estabelecer a tipologia das sanções (principais e
acessórias) aplicáveis, em abstracto, a determinado tipo legal de crime -
'tanto podendo optar por devolver ao julgador a própria aplicação (ou não
aplicação) de certas sanções, como por, atentos os interesses em causa, cominar,
como regra, a aplicação obrigatória de certa sanção pelo juiz, cumprindo-lhe
graduar a concreta medida desta'.
Acresce, por último, mas não menos relevantemente,
não se apresentar a medida de inibição da faculdade de conduzir como estranha ou
desarticulada relativamente à conduta geradora da responsabilidade criminal.
Com efeito, entre o facto gerador dessa
responsabilidade - a condução de veículos sob influência de uma determinada
taxa de álcool no sangue - e a sanção de inibição é óbvia a conexão, em termos
de se poder afirmar que é por ter violado de forma intensa os seus deveres
enquanto condutor que o agente é privado temporariamente da faculdade legal de
conduzir.
3.- Também não se surpreende, na norma em sindicância,
violação dos princípios da culpa e da proporcionalidade das sanções criminais,
não obstante a decisão recorrida.
Na verdade, e como se vem salientando na
jurisprudência deste Tribunal, a circunstância de a medida abstracta da sanção
acessória da inibição da faculdade de conduzir - seis meses a cinco anos -
ser a mesma, independentemente de se tratar de um comportamento doloso ou
meramente culposo, não impede o julgador de, atendendo às circunstâncias do caso
e ao grau de culpa do agente, fixar diferentemente a respectiva pena, consoante
se mostre confrontado com uma conduta dolosa ou simplesmente negligente.
Não sendo constitucionalmente imperativo que as
medidas das penas principais e das penas acessórias aplicáveis a certo
comportamento hajam necessariamente de coincidir na sua expressão numérica, é
irrelevante que os limites mínimo e máximo abstractamente previstos para a
sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir sejam desconformes ou
mesmo superiores (no caso da negligência) aos limites estabelecidos para a pena
de prisão (prisão até um ano ou até seis meses, consoante o facto seja imputável
a título de dolo ou de negligência).
Por outro lado, a especial gravidade social do
comportamento aqui previsto - condução sob a influência do álcool com taxa de
álcool no sangue superior a 1,20 g/l - torna inteiramente adequada a sanção
acessória com os limites estabelecidos no artigo 4º, nº 2, alínea a),
justificados não só pela natureza da conduta, como também pela perigosidade dela
decorrente.
No já referenciado acórdão nº 143/95, sustentou-se
idêntico entendimento, aduzindo-se, além de outras, as considerações seguintes:
'Efectivamente, nada autoriza a pensar que o número de dias da
moldura abstracta da inibição de ser idêntico ao número de dias da prisão ou ao
da multa.- Aliás, nem mesmo entre a prisão e a multa pode ser feita uma
equivalência deste tipo: apesar de a lei estabelecer critérios para a
substituição da prisão por multa (artigo 43º do Código Penal) e para a
determinação da prisão alternativa (artigo 46º, nº. 3, do Código Penal), nunca
pode haver uma igualdade entre as molduras abstractas respectivas, desde logo
porque a lei começa por fixar em geral o mínimo da multa em 10 dias e o mínimo
da prisão em 30 dias (artigos 40º, nº 1, e 46º, nº 1, do Código Penal) e estatui
em especial limites mínimos e máximos muito diversificados'.
Assim, e pelo exposto, há-de afirmar-se que a norma
desaplicada na decisão recorrida não sofre de qualquer das
inconstitucionalidades que ali lhe foram assacadas.
III
Em face do exposto, decide-se conceder provimento
ao recurso e, em consequência, determinar a reforma da sentença recorrida na
parte impugnada, de acordo com o presente juízo sobre a questão de
constitucionalidade.
Lisboa, 7 de Junho de 1995
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria da Assunção Esteves
Maria Fernanda Palma
José Manuel Cardoso da Costa