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Processo nº 465/95
2ª secção Relator: Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O HOSPITAL DISTRITAL DE TOMAR requereu execução sob a forma sumária contra a COMPANHIA DE SEGUROS A ..., para pagamento da quantia de
10.500$00 (acrescida de juros moratórios desde a citação à taxa legal de 15%), devida por tratamentos feitos a vários sinistrados (em acidentes de trabalho uns; e outros, em acidentes de viação), por cujo pagamento ela é responsável, já que a respectiva responsabilidade civil fora transferida para si.
Juntou uma certidão de dívida passada pelo mesmo Hospital, a qual, nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, constitui título executivo.
A petição foi indeferida liminarmente, por despacho de 5 de Junho de 1995, com fundamento em falta de título executivo, em virtude de as normas dos artigos 2º, nº 2, a), 4º e 6º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, terem sido julgadas inconstitucionais.
2. É deste despacho (de 5 de Junho de 1995) que vêm os presentes recursos, um, interposto pelo Ministério Público e o outro, pelo referido Hospital, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade dos artigos 2º, alínea a), 4º e 6º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro.
Neste Tribunal, alegou o Procurador-Geral Adjunto que formulou as seguintes conclusões:
1º - A certificação da existência de um crédito próprio, emergente de tratamentos prestados em consequência de lesões decorrentes de acidentes de viação, pelos órgãos de gestão dos estabelecimentos hospitalares, contra os possíveis eventuais obrigados a indemnizar, não representa o exercício de qualquer tarefa ou função jurisdicional, mas a mera criação de um título executivo admninistrativo.
2º - A criação de tal título administrativo em nada preclude o direito de defesa dos executados, que podem perfeitamente alegar, através da dedução de embargos do executado, todos os meios de defesa que lhes seria lícito deduzir em sede de acção declaratória. Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida.
O Hospital recorrente concluiu assim as alegações que apresentou: A) - O artº 46 al. d) do C.P.C - dispõe que podem servir de base à execução os títulos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva. B) - Por disposição especial contida no artº 2º do DL 194/92 de 08/09 o legislador conferiu à Declaração elaborada nos termos aí prescritos força executiva. C) - O título assim constituído em nada viola o princípio constitucional ínsito no artº 205 nº 1 da Constituição República Portuguesa. D) - Uma vez que para tal acontecer só as sentenças condenatórias teriam força executiva. E) - O DL em causa e, em especial, as invocadas normas dos artºs 2º al. a) 4º e
6º do DL 194/92, não enfermam de qualquer inconstitucionalidade material. Nestes termos [...] deve ser dado provimento ao presente recurso em conformidade com as anteriores conclusões.
3. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. A Lei nº 48/90, de 24 de Agosto (Lei de Bases da Saúde) - depois de prescrever no nº 1 da sua base XXXIII que o Serviço Nacional de Saúde é financiado pelo Orçamento do Estado - acrescenta no nº 2 da mesma base que os respectivos serviços e estabelecimentos podem cobrar receitas: de entre elas, 'o pagamento de cuidados por parte de terceiros responsáveis legal ou contratualmente, nomeadamente subsistemas de saúde ou entidades seguradoras'
[cf. alínea b)].
No nº 1 da base XLIII, acrescenta-se que o Governo deve desenvolver a lei em decretos-leis.
O Governo editou o Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, com o qual veio regular a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde (cf. artigo 1º).
A matéria da cobrança dessas dívidas achava-se regulada no Decreto-Lei nº 147/83, de 5 de Abril, que mandava que, fosse qual fosse o valor, ela se fizesse em processo declaratório sumaríssimo, com assinaláveis adaptações (cf. artigo 1º).
As execuções fundadas em sentença proferidas naquelas acções seguiam também a forma sumaríssima (cf. artigo 5º).
(Anteriormente ao Decreto-Lei nº 147/83, de 5 de Abril, a cobrança de tais dívidas fazia-se nos termos dos artigos 41º a 44º do Decreto-Lei nº 46.301, de 27 de Abril de 1965).
Mas, face aos 'insatisfatórios resultados conseguidos com o Decreto-Lei nº 147/83, de 5 de Abril' - o que se terá ficado a dever ao facto de as dívidas aos estabelecimentos de saúde estarem sujeitas ao regime da prescrição presuntiva, que é uma prescrição de curto prazo (dois anos, no caso de a dívida ser exigida do próprio assistido ou familiares; três anos, quando o hospital interpele 'o terceiro responsável pela lesão corporal ou quem por sub-rogação haja assumido tal responsabilidade, v.g. entidades seguradoras') e, bem assim, à circunstância de 'o recurso, sempre moroso, à acção declarativa, como forma de obter a declaração de direitos quase sempre certos e indiscutíveis, funciona[r], muitas vezes, como obstáculo de vulto à efectiva cobrança dos créditos' - o legislador decidiu 'generalizar a todas as unidades de saúde públicas' a solução, 'de acerto indiscutível', 'consagrada no artigo 6º da Lei nº 1981, de 3 de Abril de 1940, que atribui força de título executivo às certidões de dívida pelo tratamento de doentes passados pelos Hospitais Civis de Lisboa' (cf. preâmbulo do mencionado Decreto-Lei nº 194/92).
Dispôs-se, por isso, no artigo 2º deste Decreto-Lei nº
194/92: Artigo 2º ( Exequibilidade das certidões de dívida)
1 - As certidões de dívida a qualquer das entidades a que se refere o artigo anterior, por serviços ou tratamentos prestados, são títulos executivos.
2 - São condições de exequibilidade do título: a) A identificação do assistido e dos terceiros legal ou contratualmente responsáveis, se os houver, nos termos do presente diploma; b) A menção precisa e individualizada dos serviços prestados; c) A indicação da quantia exequenda, calculada nos termos do presente diploma; d) A assinatura do presidente do órgão de administração da entidade credora ou de quem legitimamente o substitua; e) A autenticação do título de dívida com a aposição do selo branco em uso na instituição credora.
No artigo 4º, também aqui sub iudicio, prescreve-se: Artigo 4º (Dívidas resultantes de tratamentos a sinistrados por acidentes de viação)
1 - Em caso de dívidas resultantes de assistência ou de tratamentos prestados a sinistrados em acidentes de viação, a execução corre solidariamente contra o transportador e a respectiva entidade seguradora se seguro houver.
2 - Se o sinistrado não circular em qualquer veículo, a execução corre contra a entidade seguradora do veículo ou dos veículos que tenham intervindo no sinistro, salvo se ocorrer qualquer das causas de exclusão da responsabilidade a que se refere o artigo 505º do Código Civil.
No artigo 6º, cuja constitucionalidade também vem questionada, dispõe-se: Artigo 6º (Dívidas resultantes de tratamentos de sinistrados em acidente de trabalho ou equiparado)
1 - Se as dívidas resultarem de tratamento de sinistrados por acidente de trabalho, a execução corre contra aquele a quem o sinistrado prestava os seus serviços, no momento da ocorrência do sinistro, independentemente da natureza jurídica do vínculo nos termos do qual eram prestados tais serviços.
2 - Havendo contrato de seguro, a execução corre contra a entidade seguradora respectiva.
5. A decisão recorrida - recorda-se - entendeu que as normas constantes da alínea a) do nº 2 do artigo 2º e dos artigos 4º e 6º, acabados de transcrever, violam o artigo 205º, nº 1, da Constituição da República.
O artigo 205º, nº 1, da Constituição da República prescreve que 'os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo', sendo que 'na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados' (cf. nº 2 do mesmo artigo 205º).
O exercício da função jurisdicional acha-se, assim, constitucionalmente reservada aos juízes e aos tribunais.
Este Tribunal já, em diversas ocasiões, se pronunciou sobre o que deve entender-se por função jurisdicional [cf., entre outros, os acórdãos nºs 71/84, 104/85, 98/88, 182/90, 443/91 e 396/95 (Diário da República, II série, de 2 de Janeiro de 1985, de 2 de Agosto de 1985, de 22 de Agosto de
1988, de 11 de Setembro de 1990, de 2 de Abril de 1992 e de 15 de Novembro de
1995 respectivamente)].
Escreveu-se no acórdão nº 98/88, acabado de citar - seguindo, de resto, na esteira de AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ (cf. 'A função administrativa', in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXIV, 1977, página
31) - que o quid specificum distintivo de um acto de índole jurisdicional
'estará na circunstância de que ele 'não apenas pressupõe, mas é necessariamente praticado para resolver uma questão de direito', de que nele não se tem em vista
'conseguir a produção de um resultado prático diferente da paz jurídica decorrente da resolução dessa questão de direito'.
É, portanto, na resolução de conflitos relativos a casos concretos - resolução que se faz lançando mão de normas jurídicas ou de critérios legais pré-existentes - que reside o punctum saliens caracterizador da função jurisdicional, a qual, assim, outro interesse público não prossegue, nem realiza, que o da composição desses conflitos. O seu fim específico é, pois, a realização do direito e da justiça.
Escreveu-se lapidarmente no acórdão nº 182/90 que a função jurisdicional se consubstancia 'numa composição de conflitos de interesses, levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a realização do Direito ou da Justiça'.
Sendo estas as notas que caracterizam a função jurisdicional, logo se vê que a elas se não reconduzem os poderes conferidos pelos artigos 2º, 4º e 6º, do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, ao
'presidente do órgão de administração' das 'instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde' (ou a 'quem legitimamente o substitua') para a emissão de certidões de dívida por serviços ou tratamentos prestados.
Nestas certidões de dívida, que são títulos executivos, o emitente, que é uma entidade pública, certifica, não apenas a existência de um crédito próprio, como também a identidade daquele ou daqueles contra quem a execução deve correr. E isso, sem que o executado haja assumido a responsabilidade pelo débito e sem que tenha havido qualquer decisão judicial prévia a definir (declarar) essa responsabilidade. Ou seja: tais certidões de dívida gozam legalmente de um grau de fé pública tal que dispensam a intervenção do juiz, previamente à instauração da execução, para declarar a existência da dívida e dizer quem o responsável pelo seu pagamento.
Esta actividade de certificação de um crédito por parte da entidade pública que dele é titular não representa, contudo, o exercício de poderes característicos da função judicial, pois que o hospital, ao emitir a certidão de dívida, não resolve ou compõe qualquer conflito que, acaso, oponha o credor (ou outrem) àquele que, no título, é indicado como devedor. Na execução, pode, de facto, o executado lançar mão dos meios de defesa que podia ter usado na acção declarativa, se esta tivesse tido lugar. Ele pode opor-se à execução, designadamente mediante embargos de executado. E, se o fizer, então sim, haverá lugar à resolução do conflito por um órgão independente e imparcial, de harmonia com normas ou critérios legais pré-existentes - e tudo com vista à realização do direito e da justiça.
Como sublinha o Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, a possibilidade legal de criar um tal título executivo, que se constitui por via administrativa, representa apenas 'a atribuição por lei de determinado nível de fé pública às declarações de débito, provenientes dos
órgãos legítimos de pessoas colectivas ou entidades públicas - suficiente para dispensar o prévio reconhecimento ou declaração do crédito, relegando para os embargos de executado a (verdadeira) dirimição do conflito que porventura exista acerca da obrigação exequenda'.
A atribuição de uma tal fé pública aos títulos de dívida hospitalar relativas a serviços ou tratamentos prestados, nada tem, de resto, de estranho. Só o teria, se a acção executiva houvesse de ser precedida em todos os casos de uma acção de condenação no termo da qual o juiz declarasse a existência da dívida e dissesse quem o responsável pelo seu pagamento.
No nosso sistema jurídico, isso não é, porém, assim, como este Tribunal sublinhou ainda recentemente no acórdão nº 398/95 (por publicar).
De facto - para além das sentenças condenatórias [cf. artigo 46º, alínea a), do Código de Processo Civil] - podem ser dados à execução os documentos exarados ou autenticados por notário, as letras, livranças, extractos de factura, vales, extractos de factura conferidas e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas ou de entrega de coisas fungíveis e, ainda, os títulos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva [cf. artigo 46º citado, alíneas b), c) e d)].
É certo que, instaurar execuções nas condições previstas nas normas aqui sub iudicio, significa, como sublinha o Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, fazê-lo um pouco 'às cegas'. E isso pode ter como consequência um proliferar de embargos de executado, nos quais a seguradora se limita - para dizer com aquele Magistrado - 'a alegar a inexistência dos pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo do seu segurado, lançando tal
ónus para a entidade exequente, que naturalmente terá sérias dificuldades em o cumprir'. E, então, o desiderato da eficácia na cobrança das dívidas hospitalares, perseguido pelo legislador, acabará por não ser alcançado.
Isso significará que a solução legal encontrada é, afinal, mau direito; não que seja não direito.
Ora, com o controlo de constitucionalidade, visa-se apenas expurgar o ordenamento jurídico do não direito: só este não pode subsistir, por só ele ser incompatível com as normas e princípios constitucionais.
7. É certo que, recebidos os embargos, a execução só se suspende, se o embargante prestar caução (cf. artigo 818º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Simplesmente, de um lado, quando a execução prossegue achando-se pendentes os embargos, também o exequente só pode obter pagamento se prestar caução (cf. artigo 919º, nº 1, do mesmo Código); e, de outro, atento o montante da quantia exequenda, no caso, nunca a exigência de caução poderia dificultar a defesa em termos tais que pudesse ter-se por violado o direito de acesso à justiça.
8. Conclusão: As normas sub iudicio, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, não violam o artigo 205º, nº 1, da Constituição da República.
III. Decisão:
Isto posto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o despacho recorrido, a fim de ser reformado em conformidade com o aqui decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 7 de Fevereiro de 1996 Messias Bento
Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida