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Proc. nº 537/94
1ª Secção
Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal
Constitucional:
I
1. Em 20 de Setembro de 1994, o Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras-Direcção Regional de Lisboa notificou o cidadão romeno
A. de que fora recusada a admissão do pedido de asilo por este formulado, por
despacho do Ministro da Administração Interna de 18 de Agosto de 1994, em
virtude de a sua situação não se enquadrar no disposto nos nºs 1 e 2 do art. 2º
da Lei nº 70/93, de 29 de Setembro, sendo advertido de que deveria abandonar
Portugal no prazo de quinze dias, sob pena de expulsão, podendo ainda impugnar
contenciosamente o despacho ministerial.
No mesmo dia, o referido cidadão requereu ao
Supremo Tribunal Administrativo a nomeação de patrono oficioso, de harmonia com
o disposto na legislação sobre Apoio Judiciário (arts. 1º nº 1, 7º nº 1, 8º,
15º, 22º, nº 2, e 23º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro), invocando
não possuir meios económicos suficientes para suportar honorários com
profissionais forenses e manifestando a sua vontade de recorrer contenciosamente
desse despacho do Ministro de Administração Interna.
Por despacho de 27 de Setembro de 1994 do
Conselheiro relator foi admitido liminarmente o pedido de apoio judiciário, foi
mandado notificar o Secretário de Estado Adjunto do Ministro de Administração
Interna e mandado dar vista ao Ministério Público.
O Ministério Público não se opôs à concessão
do benefício requerido.
Através de despacho do Conselheiro relator foi
concedido ao requerente o solicitado apoio judiciário, tendo sido recusada a
aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, dos arts. 7º, nº 2, do
Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, e 1º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº
391/88, de 26 de Outubro, 'na parte em que vedam a concessão de apoio
judiciário, na modalidade de patrocínio judiciário, ao estrangeiro que, tendo
impetrado asilo político, pretenda impugnar contenciosamente a decisão
administrativa que lho denegou', por violação dos arts. 15º, nºs 1 e 2, e 20º,
nºs 1 e 2, da Constituição. Nesse despacho remeteu-se para a fundamentação
constante de diferentes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo,
nomeadamente o de 18 de Novembro de 1993 (publicado na Revista do Ministério
Público, ano 15º, nº 57, págs. 117 a 123).
Deste despacho reclamou para conferência o
representante do Ministério Público.
Entretanto a Ordem dos Advogados indicou
patrono para ser nomeado ao requerente.
Por acórdão de 27 de Outubro de 1994 foi
mantido o despacho reclamado. Sobre a recusa de aplicação das normas com
fundamento em inconstitucionalidade pode ler-se o seguinte:
'O direito de acesso aos tribunais, de que é componente essencial o patrocínio
judiciário, é assegurado pela Constituição «a todos» (artigo 20º), o que logo
inculca a universalidade do respectivo reconhecimento, não suscitando dúvidas a
sua inclusão nos clássicos direitos fundamentais (direitos, liberdades e
garantias), pelo que não são admitidas, nesta matéria, distinções entre
estrangeiros residentes e não residentes em Portugal.
Por outro lado, o direito de asilo é concebido como um direito
subjectivo (artigo 33º, nº 3), a que não pode deixar de estar associada a
garantia do acesso aos tribunais para impugnar as decisões administrativas que o
deneguem e, assim, são constitucionalmente inválidas as normas que recusem o
apoio judiciário ao requerente de asilo.
Tais normas violam ainda a proibição de discriminação em razão da
situação económica, genericamente proclamada no artigo 13º, nº 2, e
especificamente reafirmada, no que tange ao acesso aos tribunais, pelo nº 1 do
artigo 20º, ao afirmar que a justiça não pode ser denegada por insuficiência de
meios económicos [...].
Saliente-se que não se trata, agora, de saber se o requerente de
asilo, na pendência do respectivo processo, tem direito a apoio judiciário para
litigar em qualquer outro processo (civil, laboral, penal, etc.) em que seja
interessado, e mesmo que aí estejam em causa outros seus direitos fundamentais,
mas sim se tem esse direito no próprio processo em que se discute a concessão do
estatuto de asilado.
Negar-lhe esse direito surge como uma intolerável negação da
tutela judicial efectiva para defesa de um direito subjectivo fundamental. Se a
Constituição e a lei atribuem o direito de recurso contencioso contra o acto
administrativo de recusa de asilo, não podem deixar de atribuir também os meios
necessários para a efectivação desse direito, que é, para o requerente de asilo,
o mais básico dos seus direitos básicos'. (a fls. 20-21 dos autos)
Anteriormente ao passo agora transcrito, o
mesmo acórdão considerou que as normas violadas violavam igualmente os nºs 1 e 2
do art. 15º da Constituição. De harmonia com esse aresto, o princípio de
equiparação dos direitos e deveres entre, por um lado, cidadãos portugueses e,
por outro, estrangeiros ou apátridas, quer estes residam ou apenas se encontrem
em Portugal, constituiria um corolário do princípio de igualdade e da vocação
universalista da Constituição, traduzindo uma manifestação concreta do valor da
dignidade da pessoa humana.
O princípio de equiparação referida
constituiria uma 'verdadeira cláusula ampliativa de direitos a todos os
estrangeiros e apátridas, funcionando paralelamente, como critério decisório e
interpretativo de todas as normas sobre posições jurídicas subjectivas de
estrangeiros', nomeadamente no que toca aos seus direitos fundamentais, a que se
aplicariam os nºs 2 e 3 do art. 18º da Constituição. E concluía-se nesse ponto o
seguinte:
'Porém, no que respeita a direitos fundamentais que não sejam reservados, em
termos absolutos ou relativos, pela Constituição ou pela lei, exclusivamente aos
cidadãos portugueses, a Lei Fundamental não consente que a lei ordinária
estabeleça discriminações entre estrangeiros residentes e não residentes em
Portugal - porque se trata de direitos atribuídos atenta a qualidade da pessoa
humana, basta a sujeição à ordem jurídica portuguesa para ter garantido o seu
reconhecimento' (a fls. 19 dos autos).
Deste acórdão interpôs recurso de
constitucionalidade a representante do Ministério Público, ao abrigo da alínea
a) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. O recurso foi admitido
por despacho de fls. 26.
2. Subiram os autos ao Tribunal
Constitucional.
Apenas alegou a entidade recorrente, a qual
formulou as seguintes conclusões:
'1º - As normas dos artigos 7º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de
Dezembro, e 1º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 391/88, de 26 de Outubro, na parte
em que vedam a concessão de apoio judiciário, na modalidade de patrocínio
judiciário ao estrangeiro que, tendo impetrado asilo político, pretenda impugnar
contenciosamente a decisão administrativa que lho denegou, são materialmente
inconstitucionais por violação do disposto nos artigos 13º, nº 2, 15º, nºs 1 e
2, e 20º, nº 1 e 2 da Constituição.
2º Termos em que deve ser confirmada a decisão recorrida, na parte impugnada.'
(a fls. 39 dos autos)
3. Foram dispensados os vistos.
Importa, por isso, conhecer do objecto do
recurso, por não haver motivos que a tal obstem.
II
4. Dispõe o art. 7º, nº 2, do Decreto-Lei nº
387-B/87, de 29 de Dezembro (Lei do Sistema de Acesso ao Direito e aos
Tribunais):
'Os estrangeiros e os apátridas que residam habitualmente em Portugal gozam do
direito a protecção jurídica.'
Por seu turno, estatui o art. 1º do
Decreto-Lei nº 391/88, de 26 de Outubro (Regime de Protecção Jurídica):
'1. Para efeito de protecção jurídica, a residência habitual de estrangeiros ou
apátridas titulares de autorização de residência válida a que se refere o nº 2
do art 7º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, implica a sua
permanência regular e continuada em Portugal, por período não inferior a um ano,
salvo regime especial decorrente de tratado ou convenção internacional que
Portugal deva observar.
2. O estrangeiro a quem foi concedido asilo ou que goze de estatuto de refugiado
pode usufruir de protecção jurídica a partir da data de concessão do direito de
asilo ou do reconhecimento do estatuto de refugiado.'
Constituem objecto do recurso de
constitucionalidade as referidas normas na parte em 'que vedam a concessão de
apoio judiciário, na modalidade de patrocínio judiciário, ao estrangeiro que,
tendo impetrado asilo político, pretenda impugnar contenciosamente a decisão
administrativa que lho denegou'.
5. O art. 33º, nº 6, da Constituição estatui
que é 'garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos
ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência da sua actividade em
favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da
liberdade e dos direitos da pessoa humana'. O número subsequente do mesmo artigo
estabelece que a lei define o estatuto de refugiado político.
Chamam a atenção Gomes Canotilho e Vital
Moreira para que o direito de asilo assume, quando considerado genericamente,
três dimensões: uma dimensão internacional, 'enquanto direito dos Estados a
acolher e dar refúgio a quem seja perseguido ou ameaçado de perseguição por
outro Estado'; uma segunda dimensão, de ordem pessoal ou subjectiva, que se
traduz num direito subjectivo público de carácter fundamental de que é titular a
pessoa perseguida e que tem por objecto a obtenção de refúgio e asilo noutro
Estado e a não ser remetido para o país de proveniência; por último, 'uma
dimensão constitucional objectiva, enquanto meio de protecção dos valores
constitucionais da «democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os
povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana»' (Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 211).
A Lei nº 70/93, de 29 de Setembro, regula o
direito de asilo, prevendo nomeadamente o processo da respectiva concessão
(arts. 13º e seguintes).
No processo normal, o estrangeiro ou apátrida
que se encontre legalmente no País formula o seu pedido de asilo por escrito ou
oralmente, em certo prazo a contar da entrada em Portugal. Na pendência do
pedido de asilo, o candidato goza de uma autorização de residência provisória,
válida por 60 dias e renovável por períodos de trinta dias até decisão final. O
Serviço de Estrangeiros e Fronteiras procede a diligências instrutórias, devendo
elaborar um ralatório que acompanhará o processo a ser enviado ao Comissário
Nacional de Refugiados. Este Comissário elabora então proposta fundamentada ao
Ministro da Administração Interna, da qual dá simultaneamente conhecimento ao
representante do Alto Comissário das Nações Unidas para os refugiados, entidade
que tem a faculdade de se pronunciar sobre a proposta. Por último, o Ministro da
Administração Interna decide sobre o pedido (arts. 13º a 16º da Lei nº 70/93).
Pode haver um processo acelerado de apreciação do pedido, verificados certos
pressupostos (art. 19º).
Havendo recusa de asilo, a notificação de
decisão deve mencionar o direito de recurso no prazo de 20 dias para o Supremo
Tribunal Administrativo (arts. 17º, nº 2, da Lei nº 70/93).
6. Ora, a Lei nº 70/93 não prevê nenhum
regime específico de protecção jurídica relativamente aos candidatos ao estatuto
de refugiado, que pedem a concessão de asilo ao Estado português e vêem denegada
a sua pretensão pelo Ministro da Administração Interna. De facto, esta lei
apenas prevê a concessão de apoio social e de segurança social aos peticionários
que se achem em situação de carência económica e social (arts. 35º a 37º).
Tal significa que os peticionários que não
disponham de meios patrimoniais para o efeito e que pretendam impugnar
contenciosamente o acto ministerial de recusa de asilo se têm de sujeitar ao
disposto no regime geral de apoio judiciário. Simplesmente, como resulta das
transcritas normas dos Decretos-Leis nºs 387-B/87 e 391/88, não pode ser-lhes
atribuído o patrocínio judiciário oficioso, por falta dos pressupostos legais:
não residem habitualmente no país, nem lhes foi concedido asilo ou reconhecido o
estatuto de refugiado (quanto a estas duas últimas situações, veja-se o art. 7º
da Lei nº 70/93 e o art. 16º da Convenção de Genebra de 1951 relativa ao
Estatuto dos Refugiados, aprovada pelo Decreto-Lei nº 43201, de 1 de Outubro de
1961; e ainda Mario Bettati, L'Asile Politique en Question, Paris, 1985, págs.
175 e segs.).
Os peticionários em situação de carência
económica e social ficam assim praticamente privados do direito de recurso
contencioso contra o acto administrativo que lhes foi desfavorável, na medida em
que, no contencioso administrativo, se impõe o patrocínio obrigatório de
advogado (art. 5º da Lei do Processo nos Tribunais Administrativos, Decreto-Lei
nº 267/85, de 16 de Julho).
Dir-se-á, pois, que, em casos de peticionários
em situação de carência económica, seria uma ironia a concessão pela lei de um
direito de impugnação contenciosa, sem a correlativa atribuição dos respectivos
meios instrumentais.
7. O que acaba de dizer-se aponta para a
insusceptibilidade de censura ao juízo de inconstitucionalidade formulado pelo
acórdão recorrido.
O nº 2 do art. 7º do Decreto-Lei nº 387-B/87 e
os nºs 1 e 2 do art. 1º do Decreto-Lei nº 391/88 são inconstitucionais na parte
em que vedam a concessão de apoio judiciário, na modalidade de patrocínio
judiciário, ao estrangeiro ou apátrida que, tendo pedido asilo político,
pretenda impugnar contenciosamente, na Secção de Contencioso do Supremo Tribunal
Administrativo, o despacho ministerial que haja recusado a admissão do pedido de
asilo.
De facto, a proibição de concessão de apoio
judiciário, na modalidade indicada, atinge a consistência prática do direito
fundamental ao recurso contencioso, enquanto meio de acesso à justiça
administrativa, discriminando as pessoas em situação de carência económica,
relativamente aos peticionários com disponibilidades patrimoniais. Ora, nos
termos do nº 1 do art. 15º da Constituição, os estrangeiros e os apátridas que
se encontrem em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do
cidadão português. É o chamado princípio do tratamento nacional. E embora o nº 2
do art. 15º da Constituição preveja que a lei possa estabelecer excepções à
regra de equiparação dos estrangeiros e apátridas aos nacionais, no que toca aos
direitos e deveres, a verdade é que a lei não é livre no estabelecimento de
outras exclusões de direitos aos estrangeiros: tais excepções 'só podem ser
determinadas através de lei formal da A.R. (art. 168º-1/b), ela mesma
heteronomamente vinculada aos princípios consagrados neste artigo [15º]' (Gomes
Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 135).
8. Por outro lado, e como é posto em relevo no
acórdão recorrido e nas alegações do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, a todos 'é
assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e
interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de
meios económicos' (art. 20º, nº 1, da Constituição). O direito de acesso ao
direito é um elemento integrante do princípio constitucional da igualdade: por
isso, o nº 2 do art. 20º da Lei Fundamental, prescreve que todos têm direito,
nos termos da lei, à informação e consulta jurídica e ao patrocínio judiciário.
Como resulta do acórdão recorrido, a garantia
fundamental de recurso contencioso ficaria postergada se não fosse garantido, no
caso concreto, ao peticionário da concessão de asilo o direito ao patrocínio
judiciário, tanto mais que se trata de um estrangeiro que, presumivelmente, não
tem familiaridade com a língua portuguesa e com o direito português. Acresce
que, no caso concreto, o direito ao recurso contencioso é a última possibilidade
de aquisição pelo peticiário do estatuto de refugiado, por força da eventual
concessão de asilo: negar ao peticionário tal direito 'surge como uma
intolerável negação da tutela judicial efectiva para defesa de um direito
subjectivo fundamental'. (a fls. 21 dos autos). Daí resultaria violado o
disposto no nº 1 do art. 20º da Constituição, conjugado com o nº 4 do art. 268º
do mesmo diploma.
9. Conclui-se, assim, que o nº 2 do art. 7º do
Decreto-Lei nº 387-B/87 e os nºs 1 e 2 do art. 1º do Decreto-Lei nº 391/88, na
parte em que negam ao peticionário do direito de asilo o apoio judiciário, na
modalidade de concessão de patrocínio judiciário, para impugnar contenciosamente
o acto administrativo de recusa de admissão do pedido de asilo, violam os arts.
13º, nº 1, 15º, nºs 1 e 2, e 20º, nº s 1 e 2, - o nº 1 deste último conjugado
com o nº 4 do art. 268º - da Constituição.
III
10. Nestes termos e pelas razões expostas,
decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso.
Lisboa, 22 de Junho de 1995
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Luís Nunes de Almeida