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Processo nº 76/95
2ª Secção
Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do
Tribunal Constitucional:
1. A., com os sinais identificadores dos autos, 'tendo atempadamente
interposto recurso da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa para o Tribunal
Constitucional, nos termos dos artigos 70º e 75º--A da Lei nº 28/82 de 15 de
Novembro, Lei do Tribunal Constitucional', mas 'viu o respectivo requerimento
de interposição ser indeferido pelo Juiz-Desembargador Relator', veio 'nos
termos dos artigos 48º, 76º, nº 4 e 77º da Lei do Tribunal Constitucional e
artigo 688º do Código de Processo Civil, (...) reclamar daquele despacho de
indeferimento', de 24 de Novembro de 1994, confirmado ou mantido no acórdão do
mesmo Tribunal da Relação, de 12 de Janeiro de 1995 (e concluiu assim o
requerimento: 'Assim, e em conclusão requere-se, nos termos da Lei do Tribunal
Constitucional a admissão da presente reclamação bem como o subsequente
julgamento desta reclamação, revogação do despacho de indeferimento e admissão
do recurso interposto para o Tribunal Constitucional atempadamente').
2. Na extensa reclamação invoca a reclamante fundamentos que, em síntese,
passam a transcrever-se:
- A reclamante é ré numa acção de condenação com processo sumário para
despejo, que foi julgada procedente na primeira instância e a sentença
confirmada no Tribunal da Relação de Lisboa, mas, interposto o recurso de
constitucionalidade, 'o Juiz-Desembargador Relator resolveu indeferir o
requerimento do recurso...' e a 'justificação para tal indeferimento foi a de
que 'a apelante não suscitou no processo qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa''.
- 'Só que, contrariamente ao que afirma o Juiz-Desembargador, a apelante (ora
reclamante) suscitou no processo, especialmente nas suas alegações de recurso
de apelação, uma questão de inconstitucionalidade normativa'.
- 'De facto, quando nessas alegações se refere a questão da limitação ao
direito de denúncia devido ao facto de a apelante (ora reclamante) se manter no
locado há mais de 20 anos que a lei então em vigor, a Lei nº 55/79 de 15 de
Setembro, excluía o direito de denúncia ao senhorio nessas situações, que o
Decreto-Lei nº 321/B/90 de 15 de Outubro ao alargar o limite da denúncia a um
prazo superior a 30 anos não se poderia aplicar, nessa parte, àqueles que vissem
os seus direitos subjectivados e, por isso, protegidos face à legislação
anterior em virtude do decurso do prazo anterior, mais de vinte anos, como era o
caso da apelante (ora reclamante), sob pena de ofensa dos direitos adquiridos,
está a apelante (ora reclamante) a suscitar uma questão de clara
inconstitucionalidade normativa'.
- 'A apelante (ora reclamante) estava, assim, a suscitar a questão da ofensa
dos seus direitos adquiridos e, consequentemente, a violação do princípio da
confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica ínsito no princípio
do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Lei Fundamental'.
- 'Claro que não é o artigo 107º do Regime de Arrendamento Urbano, na sua
plenitude, que é passível de inconstitucionalidade mas uma certa interpretação
dele, a sua aplicação a todas as situações anteriormente constituídas ao abrigo
de legislação anteriormente vigente, inclusivamente àquelas que já tinham visto
a sua situação protegida por essa lei anterior'
- 'É esta aplicação do artigo 107º que ofende o princípio da confiança e dos
direitos adquiridos e, por isso, também a norma constitucional do artigo 2º da
C.R.P., tratando--se, portanto, de uma inconstitucionalidade normativa'.
- Não deixa em todo o caso, a reclamante de reconhecer que 'não referiu
expressamente a violação do princípio constitucional mas a reclamante disse, a
propósito da limitação ao direito de denúncia e da interpretação do artigo 107º
do Regime de Arrendamento Urbano, que a 'ordem jurídica protege o direito
adquirido da Ré na vigência da lei anterior' que não poderia ser afectado pela
sucessão da lei nova', e a afirmação constante do artigo 42º das suas alegações
'significa a invocação do princípio constitucional da confiança com a
subsequente protecção dos direitos adquiridos'.
3. No seu visto, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que a
presente reclamação 'é claramente improcedente, já que - ao contrário do que
pretende o ora reclamante - não foi por ele suscitada 'durante o processo' -
isto é, antes de proferida a decisão de que pretendia recorrer - qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa'.
E aduziu, a propósito, a seguinte argumentação:
'Carece efectivamente o recorrente, nos recursos previstos na alínea b) do nº 1
do art. 70º da Lei nº 28/82 de cumprir o ónus de suscitar tempestivamente e com
a clareza e concludência exigíveis a questão da desconformidade com preceitos
ou princípios constitucionais determinados de certa norma ou interpretação
normativa.
E não se trata - como vem sendo repetidamente afirmado na jurisprudência
constitucional - de impor ao recorrente um mero dever de cooperação com o
Tribunal na enunciação e clarificação das questões de direito, com incidência
jurídico-constitucional, controvertidas, mas de lhe impor a prática de uma
conduta processual, fundamental para a admissibilidade do recurso - isto é,
condicionante da própria regularidade procedimental da instância de recurso
perante o Tribunal Constitucional.
Ora, referir apenas e tão-somente - como consta do art. 42º das alegações de
recurso para a Relação - que: 'resulta assim claro que a ordem jurídica protege
o direito adquirido da Ré pela vigência de lei anterior que, nos termos do
artigo 12º do Código Civil, não pode ser afectado pela sucessão de lei nova'
não traduz seguramente a suscitação de uma questão de inconstitucionalidade
normativa - limitando-se, com toda a clareza, o ora reclamante a pretender
operar uma limitação temporal à aplicação de lei nova com fundamento num
preceito constante do Código Civil...
E não é obviamente lícito ao recorrente convolar, em termos radical e
substancialmente inovatórios, no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade e, muito em particular, na própria reclamação deduzida
contra a rejeição do recurso (!), de uma questão perspectivada como de
interpretação da norma questionada em função de uma regra de direito ordinário
- a constante do art. 12º do C.C. - para a 'elaboração' de uma argumentação de
índole jurídico-constitucional, totalmente omitida 'durante o processo''.
4. Vistos os autos, cumpre decidir:
Interessa, antes de mais, registar a seguinte sequência processual:
4.1. Contra a reclamante foi intentada, na comarca de Lisboa, por B. e marido
C., a acção já referenciada, pedindo que fosse 'declarada a não renovação do
contrato de arrendamento em causa em 1/8/92 e, consequentemente decretado o
despejo condenando-se a R. a entregar aos A.A. completamente livre e desocupado
o local arrendado', a qual foi julgada procedente e decretado o despejo, por
sentença do Mmº Juiz do 15º Juízo Cível da comarca de Lisboa, de 24 de Maio de
1993.
4.2. Interposto pela reclamante recurso de apelação dessa sentença para o
Tribunal da Relação de Lisboa, veio dizer, nas alegações, no que aqui importa, e
em subordinação à epígrafe: 'LIMITAÇÃO AO DIREITO DE DENÚNCIA', o seguinte
(sintetizado na alínea c) da conclusão das alegações):
'28º
O contrato de arrendamento referente ao imóvel objecto da presente acção de
despejo foi celebrado em 1 de Agosto de 1964 com o marido da Ré, a qual, com o
falecimento deste, lhe sucedeu, nos termos da lei, no referido arrendamento já
que procedeu às comunicações legais necessárias constantes do processo a fls.
11 e seguintes.
29º
Assim, à data da propositura da acção, em 1992, a Ré mantinha-se no local
arrendado há mais de 27 anos.
30º
Como se sabe a alínea b) do nº 1 do artigo 2º da Lei nº 55/79 de 15 de Setembro
estipulava que o direito de denúncia não podia ser exercido pelo senhorio
quando o inquilino se manteve no local arrendado há mais de vinte anos.
31º
Ora, a Lei nº 55/79 que estipulava o prazo de vinte anos esteve em vigor até
1990 e só veio a ser revogada pelo Decreto-Lei nº 321/B/90 de 15 de Outubro.
32º
Portanto, na data de entrada em vigor da R.A.U. a Ré já habitava a casa por um
período superior a 20 anos tendo visto assim constituir a seu favor um direito a
permanecer no local que qualquer legislação posterior que houvesse uma mudança
na ordem jurídica, não poderia pôr em causa a sua situação sob pena de ofender
os direitos adquiridos.
33º
Assim, tendo o prazo de vinte anos decorrido na totalidade no domínio da lei
nº 55/79 sem que os Autores tivessem alguma vez denunciado o arrendamento, o
alargamento do prazo para trinta anos, por força da nova legislação de 1990,
não faz renascer um direito de denúncia do senhorio que já se tinha extinto.
34º
.....
35º
.....
36º
Portanto, a Ré tem, assim, um direito adquirido de se manter no local arrendado
por efeitos do decurso do prazo da lei nº 55/79, que limita decisivamente o
eventual direito de denúncia do senhorio, prevalecendo, portanto, sobre este.
37º
Assim, não se pode concordar nem se compreende a douta sentença do Tribunal 'a
quo' (a fls. 90) onde se refere que o Decreto-Lei 321-B/90 não limita a denúncia
do arrendamento do senhorio para fins habitacionais...
38º
Na verdade a R.A.U. continua obviamente a limitar o direito de denúncia do
senhorio, mas somente altera o prazo de vinte anos que até então vigorava, Lei
nº 55/79, para um prazo superior de 30 anos.
39º
Contudo, como se demonstra este novo prazo de 30 anos aplica-se apenas aos
arrendamentos novos bem como aos arrendamentos que ainda não tivessem perfazido
vinte anos na vigência da lei anterior, a Lei nº 55/79.
40º
Ora, não é esse o caso da Ré.
41º
Pelo exposto carece de qualquer fundamento a conclusão do Tribunal 'a quo'
quando refere que 'a Ré não tinha adquirido qualquer direito a manter-se no
arrendado para sempre'...
42º
Resulta assim, claro que a ordem jurídica protege o direito adquirido da Ré
pela vigência da lei anterior que, nos termos do artigo 12º do Código Civil, não
pode ser afectado pela sucessão da lei nova'.
4.3. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23 de Junho de 1994, foi
decidido 'negar provimento à apelação, confirmando-se a sentença recorrida'.
Nesse aresto, depois de se registar o 'modelar sintetismo das conclusões da
alegação da apelante' (ora reclamante), a 'sua bem delineada alegação de
recurso', erigiu-se como 'questão principal - a da limitação ao direito de
denúncia pelo decurso do prazo de vinte anos, previsto na Lei nº 55/79 e por
efeito do artigo 12º do Código Civil' e respondeu-se-lhe da seguinte forma:
'Assim, é nossa firme convicção que - ao contrário do que entende a corrente
oposta - o prazo de 20 anos previsto na al. b) do nº 1 do art. 107 do RAU - não
é um prazo de caducidade, mas antes uma limitação ao exercício do direito de
denúncia atinente à pessoa do arrendatário, pois que este direito do senhorio
não é inerente a esta qualidade ab initio, mas só quando se verificarem todas
as condições do seu exercício, previstas taxativamente na lei (artigos 71 e 107
a 109 do RAU).
'A esta luz, quando se diz que o senhorio não pode exercer o direito de denúncia
quando o arrendatário se mantenha no local há 30 anos ou mais nessa qualidade...
não se está a significar que o senhorio teve «30 anos de arrendamento» para
denunciar o contrato, sob pena de caducidade' (ob. cit. pág. 290).
Não se pode falar de caducidade de um direito que ainda não nasceu...
A limitação temporal em apreço é o tempo limite para que o tempo de arrendatário
não constitua obstáculo ao exercício da denúncia, não lhe sendo, por isso,
aplicável o regime do nº 2 do artigo 298º do Código Civil.
Essa limitação deve ser apreciada à luz da lei vigente no momento em que, na
expressão do nº 1 do artigo 107 do RAU, o exercício do direito de denúncia deva
produzir os seus efeitos.
Por isso, e relembrando ainda o que a melhor doutrina tem ensinado, como atrás
se referiu, sobre a regra do nº 2 do artigo 12 do Código Civil, é de aplicar o
prazo de 30 anos, ainda que já tenham decorrido 20 anos da manutenção da
qualidade de arrendatário'.
4.4. De tal acórdão veio a reclamante interpor recurso de constitucionalidade
para este Tribunal Constitucional, dizendo no requerimento que pretende
'recorrer para o Tribunal Constitucional, nos termos das alíneas b) e f) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional por violação do princípio da
confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica ínsito no princípio do
Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Lei Fundamental na
medida em que desrespeita direitos legítimos dos cidadãos já adquiridos e
subjectivados face à lei anterior'.('Esta ofensa ao princípio dos direitos
adquiridos já tinha sido alegada pela recorrente nas suas alegações de recurso
de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa' - acrescenta a reclamante.
5. O quadro descrito até aqui mostra à evidência que a reclamante fundou o
recurso de constitucionalidade no artigo 70º, nº 1, b) e f), da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, e expressamente identifica como 'peça processual onde foi
invocada' a questão de inconstitucionalidade 'as suas alegações de recurso de
apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa' (e registe-se desde já que não
interessa ao caso a invocação que a reclamante faz daquela alínea f), pois ela
reporta-se unicamente a questões de ilegalidade, que não de
inconstitucionalidade, o que patentemente não é a hipótese sub judicio).
Só que, contrariamente ao que alega a reclamante, não se pode dar como
verificado, entre os pressupostos exigidos para aquele tipo de recurso de
constitucionalidade, o de ter 'sido suscitada durante o processo' a questão da
inconstitucionalidade dirigida ao 'artigo 107º do Regime de Arrendamento
Urbano' (aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro), de 'uma
certa interpretação dele, a sua aplicação a todas as situações anteriormente
constituídas ao abrigo de legislação anteriormente vigente, inclusivamente
àquelas que já tinham visto a sua situação protegida por essa lei anterior' ('É
esta aplicação do artigo 107º que ofende o princípio da confiança e dos direitos
adquiridos e, por isso, também a norma constitucional do artigo 2º da C.R.P.,
tratando-se portanto, de uma inconstitucionalidade normativa' - é como se
expressa a reclamante no requerimento de reclamação).
Com efeito, é bom de ver que, apesar de não ter sido expressamente indicado,
na sentença da primeira instância, aquele artigo 107º, nela dá-se conta da
'questão suscitada pela Ré' (ora reclamante), na base de que 'era arrendatária
do locada há mais de 20 anos, desde 1 de Agosto de 1964', sendo este facto
temporal 'impeditivo do exercício do direito de denúncia do contrato objecto dos
autos', mas responde-se negativamente a tal questão, dizendo-se que 'será
conveniente ter presente o art. 12º do C. Civil'.
Mas, nas alegações do recurso de apelação, a reclamante limita-se a invocar
'um direito adquirido de se manter no local arrendado por efeitos do decurso do
prazo da lei nº 55/79, que limita decisivamente o eventual direito de denúncia
do senhorio, prevalecendo, portanto, sobre este', não deixando de recordar,
embora também não identificasse o dito artigo 107º, que 'este novo prazo de 30
anos aplica-se apenas aos arrendamentos novos bem como aos arrendamentos que
ainda não tivessem perfazido vinte anos na vigência da lei anterior, a Lei nº
55/79' (exactamente o prazo que consta do regime daquele artigo 107º). E remata
com a seguinte afirmação essencial: 'Resulta assim, claro que a ordem jurídica
protege o direito adquirido da Ré pela vigência da lei anterior que, nos termos
do artigo 12º do Código Civil, não pode ser afectado pela sucessão da lei nova'.
Depreende-se daqui que a reclamante nunca suscitou perante o Tribunal da
Relação de Lisboa, e de modo adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade
relativa àquele artigo 107º (e nem sequer o identifica) ou outro preceito
legal, e muito menos numa certa dimensão interpretativa da norma legal, e teve
oportunidade de o fazer na fase das alegações.
A exigência processual de suscitação da questão de inconstitucionalidade
durante o processo implica, num sentido funcional, que ela vá a tempo de o
tribunal a quo se pronunciar sobre a questão, como é jurisprudência corrente
deste Tribunal Constitucional. E, in casu, o tribunal a quo não se pronunciou,
porque não lhe foi colocada tal questão.
E não se diga, como parece querer a reclamante, que a afirmação constante do
artigo 42º das suas alegações no recurso de apelação 'significa a invocação do
princípio constitucional da confiança com a subsequente protecção dos direitos
adquiridos', estando o tribunal de recurso 'obrigado, nos termos da lei, a
requalificar a questão como se de constitucionalidade se tratasse', pois a
exigência do dito pressuposto processual obriga a uma expressa suscitação da
questão de inconstitucionalidade durante o processo, em termos de o Tribunal
recorrido dever saber que tem essa questão de inconstitucionalidade para
decidir. A reclamante centrou a sua posição no artigo 12º do Código Civil e foi
nessa perspectiva que se colocou o tribunal a quo para responder à mencionada
'questão principal a da limitação ao direito de denuncia (...)'.
Tanto basta para se entender que não merece censura o despacho reclamado.
6. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação, condenando-se a
reclamante nas custas, com a taxa de justiça de cinco unidades de conta.
Lisboa, 20 de Junho de 1995
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Messias Bento
Luís Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa