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Proc. Nº 560/94
Sec. 1ª
Rel. Cons. Vítor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. – A. propôs uma acção sumária de despejo, que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, contra B., invocando como fundamento a ausência permanente do arrendado, que teria deixado de habitar e a falta de pagamento das rendas, estando em dívida as rendas desde Abril de
1990 até ao momento da propositura da acção.
Em 21 de Dezembro de 1993, veio a ser proferida a sentença que julgou a acção procedente, considerando resolvido o contrato de arrendamento, condenando a ré a despejar o arrendado e no pagamento das rendas vencidas e vincendas desde 2 de Novembro de 1993.
2. - Inconformada com a decisão, a ré interpôs recurso para a Relação de Coimbra, tendo suscitado nas suas alegações a questão da constitucionalidade da interpretação do artigo 64º do RAU, que no entender da recorrente viola o artigo 65º da Constituição.
A Relação tirou em 20 de Setembro de 1994 um acórdão pelo qual julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida, ainda que com outra fundamentação, de facto e de direito.
No respeitante à questão de constitucionalidade, escreveu-se no acórdão o seguinte:
' 9. Por último vem a recorrente levantar a questão da inconstitucionalidade da norma do artº 64º do R.A.U., na interpretação que lhe deu o douto julgador, por violadora do disposto no artº 65º da Constituição.
Diz que a aplicação daquela norma (que compendia os casos de resolução do contrato por iniciativa do senhorio) conduziria à perda em termos práticos da habitação da família da recorrente.
Não tem a mínima razão neste ponto também a apelante.
Como é jurisprudência constante, incluindo a provinda do Tribunal Constitucional, o artº 65º da Constituição consagra um direito fundamental à habitação, mas esse comando (como outros que se reportam a direitos sociais de natureza análoga) é dirigida ao Estado, como entidade a quem incumbe intervir e solucionar situações de carência no domínio da habitação.
Trata-se, portanto, de uma norma que como explicam os tratadistas (cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, 205-209 e Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 608) não confere ao cidadão um direito imediato a uma prestação efectiva por não ser directamente aplicável, nem exequível por si mesmo.
Isto significa que tal direito não é susceptível de conferir, sem mais, ao arrendatário faculdades jurisdicionalmente exercitáveis por forma a impedir a cessação de um contrato de arrendamento. Muito menos quando na génese dessa cessação está uma infracção contratual do próprio inquilino.
...Desta forma e por muito penosa que possa parecer a situação criada ao irmão da Ré com o decretamento do despejo, ela não legitima o juízo formulado, sendo que a legislação vinculística que rege o inquilinato urbano proporciona já ao arrendatário, em nome do direito à estabilidade do seu lar, vasta panóplia de meios de defesa cuja justeza, pensamos, poucos discutirão.
Improcede, portanto, a derradeira conclusão, nenhuma censura neste particular merecendo a douta decisão.'
3. - É deste acórdão da Relação que vem agora interposto recurso pela originária ré ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Pretende a recorrente que o Tribunal aprecie a conformidade constitucional do artigo 64º, nº1, alínea i), conjugada com a alínea c) do nº2 dessa disposição, ambas do R.A.U., na medida em que na decisão recorrida se fez uma interpretação restritiva do conceito de família, que viola o artigo 65º da Constituição.
Após a recorrente ter prestado este esclarecimento sobre a interpretação feita na decisão, foram as partes notificadas para alegar, tendo a recorrente concluído as suas alegações pela forma seguinte:
'1º
O irmão da recorrente integra a família da recorrente com direito a residir no andar, tomado de arrendamento há mais de 20 anos.
2º
Na interpretação dada à al. c) do nº 2 do artigo 64º - que possibilitou a resolução do contrato - foi violado o artigo 65º, nº 1 da C.R.P..'
Pelo seu lado, a recorrida também alegou, concluindo da seguinte forma:
...'Nenhuma norma foi violada pelo Tribunal da Relação de Coimbra no caso 'sub judice', pelo que, salvo melhor entendimento, será de confirmar 'in totum' o douto acórdão recorrido, assim se fazendo JUSTIÇA.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
4. - Embora a recorrente nas alegações apresentadas neste Tribunal refira que deve declarar-se inconstitucional (por violação do artigo 65º, nº 1 da C.R.P.) a alínea c) do nº 2 do artigo 64º do RAU, o certo é que conforme consta do relato feito, a norma cuja apreciação se pediu ao tribunal foi a resultante da conjugação da alínea c) do nº2 com a norma da alínea i), do nº1, do artigo 64º do RAU, na interpretação expressamente referida no requerimento de fls. 217, dos autos.
Não primam pela clareza os termos em que vem interposto o recurso, nem sequer depois da resposta da recorrente ao convite que lhe foi dirigido pelo relator neste Tribunal para discriminar o número do artigo 64º do RAU e a respectiva alínea a que respeitaria a interpretação considerada inconstitucional - aliás na sequência de outro convite que lhe fora dirigido no tribunal a quo para mencionar qual a norma ou princípio constitucionais violados.
Seja como for, a questão da constitucionalidade, referida genericamente embora ao artigo 64º do RAU, foi suscitada nas alegações apresentadas no recurso de apelação e sobre ela também de forma genérica se pronunciou o acórdão recorrido, concluindo pela improcedência do alegado.
Somos assim remetidos para os termos da decisão em apreciação. Nesta considerou-se ter sido 'plenamente provada «in casu» a previsão típica da alínea i) do nº 1 do artº 64º do R.A.U. «falta de residência permanente da arrendatária no prédio destinado a habitação»', bem como se confirmou a decisão de não considerar preenchida a hipótese do afastamento do direito à resolução, contemplada na alínea c) do nº 2 daquele artigo.
Neste particular, que é o que verdadeiramente interessa dada a determinação do objecto do recurso que acabou por ser obtida, considerou o Tribunal da Relação de Coimbra que 'ficou por demonstrar (ónus que sobre a recorrente incumbia em exclusivo nos termos gerais do nº 2 do artº 342º do C. Civil) a apontada dependência económica do irmão em relação à Ré'.
No entendimento do tribunal a quo 'não é suficiente que o arrendatário, ausente do prédio onde permaneça um seu familiar, alegue e prove que à data da sua saída com ele convivia há mais de um ano: o arrendatário carece ainda de alegar e demonstrar que se mantém a conexão económica entre um e outro'
5. - Revertamos ao Regime do Arrendamento Urbano (RAU), que foi aprovado e faz parte integrante do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, e ao seu artigo 64º, o qual corresponde ao revogado artigo 1093º do Código Civil. Nele se dispõe que o senhorio poderá resolver o contrato se o arrendatário 'conservar o prédio desabitado por mais de um ano ou, sendo o prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia' (alínea i) do nº 1). A esta regra pode excepcionar o arrendatário visto que o assim disposto não terá aplicação 'se permanecerem no prédio o cônjuge ou parentes em linha recta do arrendatário ou outros familiares dele, desde que, neste último caso, com ele convivessem há mais de um ano' - trata-se da alínea c) do nº 2.
A questão que vem posta é precisamente a de saber se é inconstitucional, à luz do disposto no nº 1 do artigo 65º da Constituição, o entendimento de que se deverá manter a conexão económica entre o arrendatário e as pessoas que permaneceram no prédio para que a excepção possa merecer acolhimento.
6. - O artigo 65º, nº 1, da Constituição estabelece que
'todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar'. Do teor literal da norma transcrita, desde logo resulta como é estreita a ligação entre esse direito e a preocupação constitucional de, pela via do direito à habitação contribuir para a protecção da família. Aquele direito é titulado desde logo pelo sujeito directo e imediato da relação contratual locatícia, mas uma vez constituída esta, alarga-se à própria família do locatário, encarada como não pode deixar de ser, porque a família não é sujeito de direito, na sua dimensão institucional.
Esta última nota tem aqui um peso específico muito próprio. Com efeito, mais do que a definição estritamente jurídica das relações interpessoais de parentesco e de afinidade - cuja relevância para outros efeitos não poderá minimizar-se e que de alguma forma tem tutela constitucional no artigo 36º da Lei Fundamental - importa termos presente que a problemática em que estamos situados, que é, sublinhe-se, a da interpretação da Constituição e não a da interpretação da lei, nos remete para o campo da vida social económica e cultural. É aí efectivamente que tem lugar próprio o direito à habitação e não
é por acaso que o mesmo surge conexionado com a família, entendida então na sua vertente também ela económica, social e cultural, ou seja, na família como
'elemento fundamental da sociedade', que 'tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros' (artigo 67º, nº 1, da Constituição). Mas nesta óptica a família é encarada como uma unidade constituída por elementos cuja coesão não
é posta em causa pela individualidade própria de cada um. É assim que se explica que naquele artigo 67º se aluda à regulação dos impostos e benefícios sociais de harmonia com os encargos familiares [alínea e) do nº 2], é por isso que o legislador constituinte se preocupa com a promoção da 'independência social e económica dos agregados familiares' [alínea a) do mesmo número, com sublinhados acrescentados].
Está bem de ver que a ausência do arrendatário do prédio onde permanece um seu familiar, sem implicar a ruptura de todos os laços familiares, e com certeza que muitos e muitíssimo respeitáveis e ponderosos e de muito variada natureza poderão subsistir, traz consigo um enfraquecimento sensível daquela coesão e actuação em comum que vem pressuposta na norma de protecção à família consagrada no artigo 67º da Constituição. Mas muito mais enfraquecida se patenteará essa mesma ligação quando acresce a ruptura da conexão económica entre dois membros da mesma família.
Enfraquecida a ponto de poder consentir ao legislador, na sempre difícil ponderação dos valores em que se há-de concretizar a solução legislativa a dar em sede de resolução do contrato de arrendamento para habitação, valorar a outra luz os direitos do locador, que é o titular do direito de propriedade sobre a coisa locada, direito este também constitucionalmente garantido. Ou seja, não repugnará no plano de uma consideração sistemática da Lei Fundamental que naquelas situações em que a unidade familiar deixe de surgir dotada do grau normal de consistência correspondente aos padrões que foram tidos em conta para conferirem à família a qualidade de elemento da vida social a requerer protecção, outros valores, também relevantes no plano constitucional, façam ouvir a sua voz a ponto de prevalecerem sobre a opção constitucional pela tutela dos interesses e valor emergentes dos laços familiares. Tendo de se reconhecer uma larga margem de conformação das normas jurídicas, o entendimento de que o arrendatário só poderá opor-se à resolução do arrendamento, caso não tenha residência no prédio arrendado, entre outros fundamentos, com base em que nele permanece um seu familiar com o qual mantem conexão económica, e de que ao mesmo arrendatário caberá a correspondente prova, não contraria o direito à habitação, tal como se encontra constitucionalmente configurado.
Advirta-se porém que a análise até agora desenvolvida se moveu não propriamente no campo do direito à habitação mas no campo das restrições ao direito de propriedade e ao direito de autonomia da vontade que ao Estado será lícito estatuir sob a invocação do direito constitucional à habitação. Mostrou-se que a ligação que subsiste entre duas pessoas que deixaram de morar sob o mesmo tecto e que entre si não mantêm relações de dependência económica só muito parcialmente corresponde àquele padrão de relações familiares que se encontra consignado na Constituição como merecedor de especial tutela. No entanto, olhando agora ao artigo 65º da Lei Fundamental e ao que dele directamente decorre em termos de direitos dos particulares mais se reforçará a conclusão obtida de que, no caso em apreciação, a norma na interpretação que lhe foi dada não fere a Constituição.
Com efeito, para assegurar o direito à habitação, a Constituição comete ao Estado a realização de certas incumbências, designadamente, a de programar e executar uma política de habitação, incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais com vista a resolver os problemas da habitação, fomentando a criação de cooperativas de habitação e a auto-construção, além de estimular a construção privada, subordinadamente ao interesse geral e ao acesso à habitação própria (artigo 65º, nº 2).
O direito à habitação entendido como o direito a ter uma morada condigna, é um direito fundamental de natureza social, do tipo de direito a prestações, isto é, pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respectivo conteúdo, a efectivar-se segundo a «reserva do possível», não conferindo, por si mesmo, habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e de conforto, com preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar, na medida em que isso sempre dependerá da concretização da tarefa constitucionalmente atribuída ao Estado.
Desta concepção decorre que o único sujeito passivo do direito à habitação condensado no artigo 65º é o Estado (v.g., as regiões autónomas e municípios), e não os proprietários ou senhorios, ao menos em princípio.
O reconhecimento do direito à habitação não pode implicar - ainda que além de uma dimensão positiva (o direito a uma habitação condigna) - se lhe atribua uma dimensão negativa (dever de abstenção do Estado e de terceiros de não praticar actos que prejudiquem a possível efectivação tal direito) - a atribuição de casas a quem delas não dispõe contra vontade dos proprietários ou que os arrendatários disponham das mesmas sem qualquer limitação.
Com efeito, dada a necessária intervenção do legislador ordinário para concretizar o conteúdo do direito, o cidadão só pode exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos plasmados na lei (cfr. Acórdão nº
130/92, in Diário da República, IIª Série, de 24-7-1992), não sendo também constitucionalmente exigível que tal direito se realize pela imposição de limitações intoleráveis e desproporcionadas de direitos constitucionalmente consagrados de terceiros, como é o caso do direito de propriedade (cfr. Acórdão nº 101/92, in Diário da República, IIª Série, de 18-8-1992).
Assim, tem de se concluir que a interpretação feita na decisão recorrida de que a falta de residência permanente do arrendatário no arrendado só não acarretará a resolução do respectivo contrato de arrendamento no caso de ali permanecer um familiar do arrendatário que com ele convivesse há mais de um ano e estivesse na sua dependência económica, não viola o artigo 65º, nº1 da Constituição ou outra norma ou princípio constitucional, pelo que o recurso não pode proceder.
III - DECISÃO:
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Lisboa, 1996.17.10 Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa