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Proc. nº 245/94
1ª Secção
Rel.: Consª. Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. No Tribunal Judicial da Póvoa do Varzim, A. e B.
propuseram acção de despejo contra C. e D., visando denunciar o contrato de
arrendamento para aumentar a capacidade do prédio.
Por sentença, foi decretado o despejo do prédio
arrendado e os réus foram condenados a desocupá-lo, sem prejuízo de o poderem
reocupar, se as obras não fossem iniciadas no prazo previsto no artigo 13º da
Lei nº 2088, de 3 de Junho de 1957.
2. Posteriormente, em 22 de Maio de 1992, os réus
suscitaram no processo o incidente de reocupação do prédio arrendado, pedindo ao
tribunal a emissão de mandado de reocupação, com fundamento no não início das
obras dentro do prazo legalmente previsto.
O tribunal de primeira instância começou por ordenar a
emissão de mandado de reocupação, em 26 de Maio de 1992. Porém, os autores
arguiram a nulidade desse despacho, designadamente por não ter sido respeitado o
princípio do contraditório, pedindo que fossem notificados para se pronunciarem
sobre a verificação da condição de que a lei faz depender a reocupação.
3. Na sequência deste requerimento, o juiz proferiu três
despachos. Por despacho de 25 de Junho de 1992, declarou sem efeito o despacho
anterior e mandou notificar os réus para se pronunciarem sobre a nulidade
arguida pelos autores. Por despacho de 2 de Julho de 1992, julgou nulo o
despacho de 26 de Maio e determinou a anulação dos termos processuais
subsequentes à sua prolação. E, por despacho de 30 de Setembro de 1992, ordenou
a notificação dos autores para se pronunciarem sobre o requerimento inicial do
incidente, ou seja, sobre o pedido de emissão do mandado de reocupação.
4. Após tais vicissitudes processuais, o tribunal de 1ª
instância proferiu, em 9 de Dezembro de 1992, decisão em que indeferiu o pedido
de reocupação do prédio.
Da respectiva fundamentação destacam-se os seguintes
trechos:
'(...) Os artigos 13º e 14º da Lei nº 2088 prevêem o processamento
do pedido de reocupação do prédio despejado como incidente da acção, com
tramitação própria (...).
(...) se é facto que aos réus pertence o ónus de provar a condição
de que depende o direito que querem exercer - artigo 804º, nº 1, do Código de
Processo Civil, ex vi do artigo 17º da Lei nº 2088 -, aos autores, para obstar a
tal ocupação incumbirá provar, eventualmente, que as obras se não iniciaram no
prazo normal devido a caso fortuito ou de força maior' - artigo 13º, in fine, da
Lei nº 2088. (...)
(...) Considerando, pois, por um lado, que os réus não demonstraram
que os autores não deram início às obras - as fotografias apenas mostram o
aspecto exterior e o documento junto pelos réus apenas atesta que não tinha sido
passada a licença de construção - e, por outro lado, considerando que os autores
provaram que têm vindo, desde, pelo menos, 30/9/91 até 11/6/92, a diligenciar
pela emissão da licença para realização de obras no prédio a que se referem os
autos, indefiro a requerida reocupação do prédio pelos réus. (...)'
5. Desta decisão interpuseram os réus recurso para o
Tribunal da Relação do Porto.
Por acórdão de 28 de Junho de 1993, foi concedido
provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido para ser substituído
por outro que ordenasse a passagem de mandado de reocupação do prédio.
Na fundamentação, foram identificadas deste modo as
questões a tratar:
'(...) Os problemas que aqui se levantam prendem-se com duas
questões:
- Por que meio processual se deve efectivar a reocupação do local
arrendado, aludida no art. 14º da Lei nº 2088 (que ao caso continua a ser
aplicável por força do disposto no art. 73º do Regime do Arrendamento Urbano -
R.A.U.);
- Como se deve dar por verificada (ou não) a condição para tal
reocupação (não início das obras dentro do prazo legal). (...)'
Quanto à primeira questão, sustentou-se o seguinte:
'(...) Existindo título (sentença) que confere o direito de
reocupação do prédio despejado, o meio de o fazer valer é a execução da
sentença.
Para a ocupação ou reocupação prevê a Lei um processo simples e
rápido para a execução da sentença. É o que prescreve o art. 990º do Cód. de
Proc. Civil, aplicável ex vi do art. 17º da Lei nº 2088 (...), nos termos do
qual, tendo o arrendatário (despejado) o direito de reocupar o prédio arrendado,
pode requerer que se passe mandado para a respectiva diligência. (...)
(...) Entendemos que, tal como acontece com o mandado de despejo
(...), é dispensada a citação, ou notificação do executado, previstas,
respectivamente, nos nºs 1 e 2 do art. 928º do Cód. de Proc. Civil. Sendo assim,
não há lugar a embargos de executado (...).
Pelos atrás referidos despachos de 25/6/92 e 2/7/93 (...), que
transitaram em julgado, entendeu-se que deveria aplicar-se o incidente previsto
no art. 804º do Cód. de Proc. Civil para averiguar se estava verificada a dita
condição (início das obras), de que se encontrava dependente o direito dos RR.
de reocuparem o prédio despejado.
Vamos aceitar essa solução, até porque existe, assim, caso julgado
formal a tal respeito e tendo em conta o art. 17º da Lei nº 2088, que se refere
ao preceituado nesse art. 804º. (...)'
No que respeita à segunda questão, desenvolveu-se a
seguinte argumentação:
'(...) Temos como certo que não é qualquer início de obras que pode
obstar à reocupação em foco, e que só relevam para tanto as obras que estejam a
prosseguir ou em vias de continuação.
Assim, se as obras tiverem início e, mal começaram, hajam parado de
forma definitiva ou de modo a não se vislumbrar se e quando recomeçarão, e se as
poucas obras realizadas não impedirem a reocupação do prédio despejado, pelos
arrendatários, esta reocupação poderá efectuar-se, se eles o requererem.
Se tal início das obras impedir a reocupação (para nele, no estado
em que se encontrar, os arrendatários habitarem), resta aos arrendatários
despejados o direito de serem indemnizados pelo incumprimento da obrigação dos
senhorios de, atempadamente, iniciarem e continuarem as obras em causa.
Perante os elementos provados, fica em dúvida se as obras discutidas
tiveram realmente início.
Mesmo admitindo que tal aconteceu, é duvidoso que a parte interior
da casa, da forma como actualmente se encontra, sem outras, permita a sua
reocupação pelos aqui agravantes.
Se nada mais se discutisse, podíamos dar já como assente que a
verificação da impossibilidade da reocupação deverá ser feita através de
diligência para o cumprimento do mandado (de reocupação) respectivo. (...)
Mas a verificação da condição está contraditada pelos AA. (ora
agravados), que lhe opuseram que o atraso verificado no prosseguimento das obras
resultava de caso de força maior, sendo-lhe consequentemente aplicável a
ressalva prevista na última parte do corpo do mencionado art. 13º da Lei nº
2088.
Dos factos provados infere-se que se gerou uma situação de impasse
quanto à realização das discutidas obras: por um lado, os AA. pretendem executar
essas obras, de acordo com o projecto inicial, aprovado pela Câmara Municipal,
que foi invocado na acção de despejo como fundamento da denúncia do contrato de
arrendamento; por outro lado, a Câmara Municipal indeferiu a licença de alvará
para tanto pedida àquele órgão autárquico pelos AA., deliberando que estes
deveriam apresentar novo projecto, em virtude de as deliberações anteriores
terem caducado, com as alterações referidas (...).
A posição dos RR., ora agravantes, é a de que o novo projecto em
causa, com tais alterações, não lhes interessa (...).
No nosso entendimento, o senhorio só pode valer-se de caso fortuito
ou de força maior para justificar o atraso ou mora no início das obras
(relativamente ao prazo previsto no dito art. 13º da Lei nº 2088).
É o que resulta da letra desse preceito, encimado pela epígrafe
'Prazo para início das obras'.
E à mesma conclusão chegamos pelo espírito da Lei.
Efectivamente, se as obras, mesmo sem culpa do proprietário ou por
motivo de força maior, não tiveram início ou pararam, não se vislumbrando se e
quando se iniciarão ou prosseguirão deixa de haver motivo para que o
arrendatário despejado não reocupe o prédio, se tal for fisicamente possível
(por o prédio continuar a ter condições de habitabilidade).
De outro modo, cairíamos na seguinte hipótese absurda, que o
legislador, sempre preocupado com o máximo aproveitamento do parque habitacional
(de que é reflexo, precisamente, a denúncia do contrato de arrendamento para
aumento do número de locais arrendáveis), não quis certamente: de um lado,
existiria uma casa vazia, susceptível de ser habitada, sem se vislumbrar quando
e até se essa situação se alteraria, designadamente pela construção do novo
prédio projectado; de outro, estaria o arrendatário despejado, indefinidamente à
espera que fosse edificado o novo prédio, para aí ocupar a habitação, que,
segundo o respectivo projecto, nele lhe era destinada.
No caso dos autos, perante o impasse gerado pelas ditas posições
assumidas pela Câmara Municipal e pelos proprietários do prédio, estamos face à
situação acabada de descrever.
Entendemos que se aplica aqui o disposto no art. 808º, nº 1, do Cód.
Civil.
Apreciando objectivamente tal situação, afigura-se que os RR., ora
agravantes, em consequência da mora que se arrasta desde fins de Novembro de
1991 (...), perderam o interesse que tinham na prestação devida pelos AA.
(executando as obras para edificação de novo prédio, para depois nele facultarem
uma habitação aos RR.).
Por isso, nos termos desse art. 808º, nºs 1 e 2, deve considerar-se
para todos os efeitos não cumprida tal obrigação dos AA.
Não há que falar em fixação de prazo admonitório aludido nesse
preceito, uma vez que a mora só perdura enquanto houver legítima expectativa de
que o devedor possa cumprir a prestação, tendo esta interesse para o credor.
Desde que essa expectativa se desvaneça, como acontece no caso dos autos, deixa
de haver mora e passa a haver não cumprimento (...).
O que acaba de se dizer leva-nos a concluir que estamos perante uma
situação de não cumprimento da dita obrigação dos senhorios no arrendamento em
causa, que ficou suspenso pela sentença exequenda.
Esse não cumprimento, independentemente de se saber se foi ou não
culposo, ou devido ou não a caso fortuito ou de força maior, gera a situação
objectiva que possibilita aos RR., ora agravantes, reocupação do prédio que
despejaram.
Nesta conformidade - dado o que dissemos quanto à prova da
verificação da condição em causa (não início das obras; ou início destas sem
prosseguimento, em termos que não impossibilitem a dita reocupação) - nada obsta
à passagem do mandado de reocupação. (...)'
6. Os autores arguiram então a nulidade deste acórdão.
Sustentaram, para o efeito, que o acórdão conheceu
questões que não podia conhecer, por extravasarem as conclusões das alegações de
recurso, que delimitariam o respectivo objecto, formulando as seguintes
conclusões:
'(...) o acórdão [recorrido] conheceu de questões que não podia
conhecer, por excluídas das conclusões do agravo, incorrendo na nulidade
prevista no art. 688º, nº 1, d), do CPC - ao fundamentar a sua decisão:
a - na perda de interesse dos RR. na ocupação da fracção que
lhes estava destinada;
b - e, por via dessa perda de interesse, na irrelevância da
ausência de culpa dos AA. senhorios, e da recusa da passagem do alvará como
causa de força maior, na não continuação da obra;
c - e considerando que os RR. não podem aguardar pelo
convencimento da Câmara Municipal a passar o alvará de licença, a que se
obrigou, pela aprovação do projecto de obras, que fundamentou a sentença, que
reconheceu aos AA. o direito de as realizar e decidiu o despejo;
d - fazendo tábua rasa das alegadas diligências para esse
convencimento, pelas vias graciosa e contenciosa. (...)'
Foi, precisamente, com base no alegado conhecimento de
questões novas pelo acórdão recorrido que os autores introduziram pela primeira
vez a questão da constitucionalidade, nestes termos:
'(...) O conhecimento de todas estas questões, colheu de surpresa os
agravados, que só agora se vêem perante uma decisão, que incorre em
inconstitucionalidade material, na interpretação dos arts. 13º e 14º da Lei
2088.
Por isso que, aplicada no tratamento de questões de que o douto
tribunal não podia conhecer, quer porque excluídas das conclusões do recurso,
quer porque sempre seriam questões novas - só agora colocados perante decisão
desfavorável, baseada nessa interpretação inconstitucional dessas normas, - os
agravantes só agora têm oportunidade de argui‑la de inconstitucional. (...)
(...) Tal interpretação dos arts. 13º e 14º da Lei 2088, além de
contrariar a letra e o espírito da lei, é inconstitucional, por ofensa dos arts.
13º, 20º, nº 1, e 62º da Constituição da República.
Não é só em homenagem do interesse social que a Lei 2088 dá ao
senhorio o direito de construir no seu prédio, satisfeitos certos
condicionalismos.
Presente na lei está também o interesse do proprietário, de exercer
a faculdade de transformação do seu prédio, que integra, o conteúdo daquele
direito, o do respectivo uso e fruição (art. 1305º do CC).
Não poderia entender-se:
- como é que puderam os inquilinos usar de todos os expedientes
processuais para opor-se ao despejo e à execução das obras - conseguindo que,
desde a aprovação do projecto, em 1985, até à efectivação do despejo, em fins de
1991, tivessem demorado 6 longos anos;
- e ao senhorio, após ter sofrido avultadíssimos prejuízos - não
seja consentido defender um direito, que já lhe foi reconhecido por sentença,
porque o inquilino já não tem interesse na obra. (...)
O entendimento, que emerge do douto acórdão, da irrelevância da
recusa da passagem do alvará, pela Câmara Municipal, como causa da força maior
obstativa, não já do início, mas da continuação da obra
- vale assim, pela recusa aos senhorios do direito de defesa do seu
direito, judicialmente reconhecido, pelos meios graciosos e contenciosos
referidos nos autos.
Com isso se ofende o art. 20º, nº 1, da CR.
Ao mesmo tempo são eles tratados desigualmente, relativamente aos
inquilinos, - que puderam retardar até limites que não ousariam pisar, - se a
lei os obrigasse a indemnizar os senhorios pelos elevados prejuízos, que lhes
causaram, com tais delongas processuais, que se revelaram sem fundamento,
pretendendo agora valer-se da recusa do alvará - fundamentada em pretenso
excesso do prazo de validade do projecto, motivado por essas delongas da acção
de despejo.
Segundo o douto acórdão, aos senhorios nem mesmo deveria ter sido
concedido o exercício do contraditório. E - o que é ainda mais surpreendente -
nem mesmo são consentidos embargos de executado.
E assim também ofendido fica o art. 13º, nº 2, da CR. (...)'
Sobre a questão de constitucionalidade suscitada, os
autores formularam as seguintes conclusões:
'(...) [o acórdão recorrido] incorreu em inconstitucionalidade
material, na interpretação dos arts. 13º e 14º da Lei 2088, por ofensa dos arts.
13º, 20º, nº 1, e 62º da CR, - negando aos AA. o direito de, perante a recusa da
passagem do alvará, esgotarem os meios graciosos e contenciosos ao seu alcance.
Tratando-os em desigualdade com os RR., inquilinos, que não se cansaram de
massacrar os AA., com todos os expedientes processuais, para retardar por 6 anos
a efectivação do despejo - mas aceitando que 3 meses bastaram para que se
cansassem de esperar pela continuação das obras, que os AA. não puderam realizar
antes e negando-se-lhes igual defesa de um direito judicialmente reconhecido.
(...) a arguição da inconstitucionalidade é tempestiva, porque
inesperada esta interpretação da lei, pelos AA., vencedores no tribunal
recorrido e não podendo contar com ela, no conhecimento daquelas questões.
(...)'
7. O Tribunal da Relação do Porto indeferiu a
reclamação, com estes argumentos:
'(...) É óbvio que aqui só podem ser apreciados vícios formais
(erros de actividade), e não os vícios substanciais de que enferme o acórdão
proferido (erros de julgamento ou de juízo).
Conforme o ensinamento do Prof. Alberto dos Reis (in 'Código de
Processo Civil anotado', vol. V, 1981, pág. 124 e segs.), 'um magistrado comete
erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida,
ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente
os factos; comete erro de actividade quando, na elaboração da sentença, infringe
as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional'.
O art. 668º do Cód. de Proc. Civil (aqui aplicável ex vi dos arts.
716º, nº 1, e 749º do mesmo Código, entre si conjugados) apenas contempla os
ditos vícios formais (loc. cit.).
Face ao disposto no art. 664º, também do Cód. de Proc. Civil, pode o
tribunal suprir as faltas ou inexactidões de carácter jurídico da alegação de
qualquer das partes, designadamente do Autor ou recorrente, ao qual é lícito dar
razão por fundamentos diferentes dos que ele alegara para justificar a
providência pedida desde que com isso não se altere a causa de pedir.
Não podem ser confundidas as questões a que se refere o mencionado
art. 668º, nº 1, d), com as razões de argumentos em que a decisão se apoia para
as resolver. Assim, se o tribunal, para resolver uma questão posta pelas partes,
se socorre de meio de prova de que não podia lançar mão, ou se deu como provado
indevidamente um facto, a decisão assenta em fundamento ilegal ou padece de erro
de julgamento (e não da nulidade de vício previsto na falada alínea d) do nº 1
do art. 668º) - v. Prof. A. dos Reis, idem, pág. 143 e 144. (...)
No acórdão reclamado não se considerou que eram objecto de recurso
as questões do meio processual para se obter a reocupação em causa e do modo
como se deve dar por verificada a condição para tal reocupação. O que aí se
disse foi que os problemas levantados no recurso se prendiam com essas duas
questões (em sentido amplo).
Ao conhecer disso, este tribunal confinou-se ao campo da
argumentação jurídica, sobre a qual, como vimos, o tribunal não está limitado ao
que foi alegado por qualquer das partes, nomeadamente pelos recorrentes.
Analisando a prova feita nos autos (cuja apreciação, se errada foi,
constitui erro de julgamento, e não a discutida nulidade), concluiu-se que nada
legalmente impedia o deferimento do pedido dos RR., ora agravantes, no sentido
de ser passado mandado para a diligência de reocupação do prédio em litígio por
parte dos mesmos (arrendatários).
Como argumento a favor desse entendimento (e não como questão a
decidir), adiantou-se que, se (através do cumprimento dessa diligência) fosse
verificado que tal reocupação não era possível, restava 'aos arrendatários
despejados o direito de serem indemnizados pelo incumprimento da obrigação dos
senhorios de, atempadamente, iniciarem as obras'.
É evidente que esse entendimento quanto à indemnização (que não
constitui 'thema decidendum' no recurso) não obsta a que, noutra decisão em que
se tenha de resolver tal questão da indemnização, esta não seja arbitrada (por
ex., por ser entendido que para tanto seria necessário que os AA. (senhorios)
tivessem agido com culpa e que esta culpa não se provou).
Do que se acaba de explanar resulta que é descabido dizer-se que,
nos presentes autos, não foi reconhecido aos ora reclamantes o direito de se
defenderem quanto a tal hipotética indemnização. (...)
Quanto à dita perda de interesse dos RR. na ocupação da fracção que
lhes estava destinada no novo prédio a construir pelos AA.:
Trata-se de um argumento ou uma razão que se extraiu dos factos
provados nos autos para se concluir que, nos termos do art. 808º do Cód. Civil,
para os efeitos aqui em causa, se devia considerar não cumprida a dita obrigação
dos AA. (de, atempadamente, iniciarem e continuarem as obras de construção desse
novo prédio).
Se esse argumento ou razão ou tal conclusão não podem ser extraídos
dos factos nos autos provados, o vício assim cometido constitui erro de
julgamento (por recurso a um fundamento ilegal), e não a apontada nulidade (por
excesso de pronúncia).
Nesta ordem de ideias, o que se diz no requerimento dos reclamantes,
se sintetiza na respectiva conclusão (...), não passa de crítica ao acórdão
proferido, tendente a demonstrar que nele se julgou mal (ou que houve erro de
julgamento) - o que nada tem a ver com a nulidade (vício de forma) que ao
acórdão é assacada. (...)
Da arguição de inconstitucionalidade:
A reclamação contra a decisão proferida, na parte que aqui
interessa, só pode ter por base qualquer dos vícios enumerados no citado art.
668º por forma taxativa (Prof. A. dos Reis, idem, págs. 137 e segs.).
Assim, e porque não se trata de esclarecimento ou de reforma do
acórdão pelas razões e termos que se referem no art. 669º, igualmente do Cód. de
Proc. Civil, não tem qualquer pertinência a arguição de 'inconstitucionalidade'
que os reclamantes fazem quanto ao acórdão de fls. 259 e segs. ou quanto aos
arts. 13º e 14º da Lei nº 2088, na interpretação que nele lhes foi dada. (...)'
8. Os autores interpuseram então recurso para o Tribunal
Constitucional, nos seguintes termos:
'(...) vêm interpor recurso para o Tribunal Constitucional, do
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que decidiu do agravo, e do Acórdão que
apreciou e indeferiu as arguições da nulidade e de interpretação
inconstitucional dos preceitos abaixo citados, da Lei 2088, em que incorreu o
Acórdão reclamado, do mesmo Tribunal.
O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da
LOTC, para apreciação da inconstitucionalidade dos arts. 13º e 14º da Lei 2088,
de 3 de Junho de 1957 - na interpretação que lhes foi dada por aqueles acórdãos.
Os preceitos constitucionais ofendidos são os dos arts. 13º, 20º, nº
1, e 62º da Constituição da República e a questão da inconstitucionalidade foi
suscitada pelos aqui recorrentes na alegação daquela reclamação (...) -
relativamente à fundamentação do acórdão reclamado, do Tribunal da Relação do
Porto - segundo o qual, requerida, pelo inquilino, despejado por motivo de
obras, a reocupação do arrendado, decorrido o prazo previsto no art. 13º da Lei
2088, deve ser-lhe deferida a reocupação, sem audição do senhorio e sem que este
possa defender-se, deste modo impedido de demonstrar o caso fortuito ou de força
maior, previstos naquele preceito, impeditivos do início ou da continuação das
obras naquele prazo legal e negando-se‑lhe o direito de se defender e sendo
tratado discriminadamente relativamente ao inquilino - como melhor se demonstra
nas suas alegações daquela reclamação - decisão que o acórdão que a decidiu
confirmou.
A arguição da inconstitucionalidade naquela reclamação foi
tempestiva porquanto, vencedores na decisão da 1ª instância, como melhor se
expôs naquela reclamação, o douto Acórdão conhecendo de questões novas e
subtraídas ao objecto do recurso, colheu de surpresa os agravados, impedidos de
se defenderem, só então colocados perante uma decisão desfavorável, incorrendo
em inconstitucionalidade material, na interpretação dos arts. 13º e 14º da
citada Lei 2088.
Por isso que, aplicada no tratamento de questões de que o douto
tribunal recorrido não podia conhecer, quer porque excluídas das conclusões do
recurso, quer porque sempre seriam questões novas - só agora colocados perante
decisão desfavorável, baseada nessa interpretação inconstitucional dessas normas
-, os agravantes só então tiveram oportunidade de argui-la de inconstitucional.'
9. O requerimento de interposição de recurso foi
indeferido por despacho do relator, com fundamento em o recurso ser
'inadmissível ou manifestamente infundado', ante o disposto nos artigos 70º, nº
1, alínea b), e 76º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
Na fundamentação do despacho aduziu-se a seguinte
argumentação:
'(...) vieram interpor recurso para o Tribunal Constitucional do
acórdão de fls. 259 e segs., que decidiu o agravo, e do acórdão de fls. 289 e
segs., que indeferiu a arguição de nulidade daquela primeira decisão.
Afigura-se-me que tal recurso é inadmissível ou manifestamente
infundado.
Com efeito, foi suscitada a questão de inconstitucionalidade dos
arts. 13º e 14º da Lei nº 2088, de 3/6/1957 (na interpretação acolhida no dito
primeiro acórdão), só na reclamação em que os Autores arguiram a nulidade desse
Acórdão.
E na decisão sobre essa arguição de nulidade não se conheceu dessa
alegada inconstitucionalidade, por se entender que se tratava de questão fora do
âmbito legal daquela reclamação, face aos vícios enumerados no art. 668º, nº 1,
do Cód. Proc. Civil (aplicável ex vi dos arts. 716º, nº 1, e 749º do mesmo
Código), por forma taxativa.
Não se diga que 'a arguição de inconstitucionalidade, é tempestiva,
porque inesperada (a) interpretação da lei' acolhida no acórdão de fls. 259 e
segs., 'não podendo (os Autores) contar com ela, no conhecimento (das) questões'
suscitadas no recurso.
Na verdade, conforme se disse no acórdão que conheceu daquela
reclamação, não se podem confundir as questões que constituem objecto do recurso
com as razões ou argumentos em que a decisão do recurso se apoiou para as
resolver. E no campo da argumentação jurídica o tribunal não está limitado ao
que foi alegado pelas partes (arts. 664º, 1ª parte, 713º, nº 2, e 749º do Cód.
Proc. Civil).
Os Autores dizem, no seu requerimento de fls. 296, que os citados
arts. 13º e 14º da Lei nº 2088, na interpretação acolhida no acórdão de fls. 259
e segs., são inconstitucionais, por negarem ao senhorio 'o direito de se
defender', impedindo-o de demonstrar o caso fortuito ou de força maior,
previstos naquele preceito (art. 13º), impeditivos do início ou da continuação
das obras naquele prazo legal (referido no art. 13º)'.
Mas o que se entendeu no dito acórdão foi que, com base nesse art.
13º, o senhorio só pode valer-se do caso fortuito ou de força maior para
justificar o atraso ou mora no início das obras, relativamente ao dito prazo
legal; e que, no caso dos autos, a mora dera lugar a uma situação em que se
considerava, para todos os efeitos, não cumprida a obrigação, nos termos do art.
808º, nº 1 do Cód. Civil.
Apenas quanto ao não cumprimento (definitivo) - e não também quanto
à mora prevista nesse art. 13º - se entendeu que se gerara uma situação
objectiva que possibilitava aos Réus (ou agravantes, na fase do recurso do
presente processo) a reocupação do prédio que foram obrigados a despejar,
independentemente de se saber se esse não cumprimento foi ou não culposo, ou
devido ou não a caso fortuito ou de força maior.
Portanto, é evidente que em nenhum dos acórdãos em causa se decidiu
com base no entendimento de que os arts. 13º e 14º da Lei 2088 impediam o
direito de os Autores se defenderem, designadamente através da demonstração da
existência de caso fortuito ou de força maior prevista no art. 13º. (...)'
10. É do despacho de indeferimento do requerimento de
recurso para o Tribunal Constitucional que vem a presente reclamação, com os
seguintes fundamentos:
'(...) Argumenta-se na douta decisão que não tem cabimento a
surpresa dos aqui reclamantes (invocada na reclamação do Acórdão que decidiu o
agravo), na interpretação dada aos preceitos legais, no conhecimento de questões
que entenderam - e entendem, salvo o devido respeito - excluídas do objecto do
recurso, pelas razões explanadas na sua reclamação.
Continuam a contrapor os aqui reclamantes as seguintes razões:
1º - que, sendo agravados no recurso decidido pelo Acórdão
recorrido, não tinham que arguir de inconstitucional a decisão da 1ª instância,
que lhes fora favorável.
2º - continuam os aqui reclamantes a entender que aquela
interpretação da lei - nunca discutida nos autos - só foi possível, por o douto
Acórdão ter desviado do objecto do recurso, que consistia em saber se a recusa
do alvará, por parte da Câmara Municipal, constitui caso fortuito ou de força
maior, previsto no art. 13º da Lei 2088.
Em lugar algum dos autos - e menos ainda nas conclusões do recurso -
invocaram os agravantes o incumprimento da obrigação, em razão da situação
objectiva, a que alude o douto acórdão.
E caso essa questão se pudesse ler - com esforço - nas conclusões do
recurso, sempre se trataria de questão nova. Por isso sempre excluída do objecto
do recurso.
Na 1ª instância, os agravantes nada alegaram, como fundamento do
direito de reocupação, senão o não início no prazo previsto no art. 13º da Lei
2088 - aliás reconhecidamente improvado.
Terá de considerar-se inesperado para a parte recorrida, o
conhecimento de uma questão que estava vedada ao conhecimento do tribunal.
3º - relativamente ao argumento retirado do art. 664º do CPC, sempre
terá de considerar-se a Lei Constitucional um limite à aplicação e interpretação
da lei.
4º - O princípio de que a inconstitucionalidade deve ser arguida no
tribunal recorrido, terá de entender-se em termos de comportar o entendimento de
que essa arguição só pode ser obrigatória quando a parte pretenda que seja
afastada a aplicação de norma tida por inconstitucional: a aplicação de norma
inconstitucional.
Não quando a norma comporte outras interpretações, tendo o tribunal
optado por uma, nunca antes discutida nos autos, que se pretenda arguir de
inconstitucional - em decisão que não admita recurso ordinário. Não se trata
aqui da inconstitucionalidade da norma, mas de uma das suas interpretações.
Ora - para além das razões já aduzidas no nº 2 - o douto acórdão
recorrido foi a primeira decisão proferida nos autos, desfavorável aos aqui
reclamantes e susceptível de ser por eles arguida de inconstitucional.
Não se verifica aqui a ratio legis do art. 72º, nº 2, da LOTC. (...)
(...) Não se afigura que seja manifesta a improcedibilidade do
recurso - o segundo argumento do indeferimento do recurso.
No campo da responsabilidade contratual - como é o caso dos autos,
pois que se trata de dirimir um conflito de direitos e obrigações de senhorio e
inquilino, no domínio da relação locatícia - não vigora o princípio da
responsabilidade objectiva.
A responsabilidade do devedor depende da existência da culpa no
incumprimento (art. 789º do Código Civil). (...)
Os preceitos dos arts. 13º e 14º da Lei 2088, subordinando o direito
de reocupação do inquilino à inexistência de facto impeditivo do cumprimento da
obrigação da execução das obras, por parte do senhorio, mais não fazem do que
aplicar o mesmo princípio da culpa.
Decidindo em contrário, o douto acórdão - além de ofender as normas
constitucionais, citadas na reclamação e no requerimento de interposição do
recurso - ofendeu o direito constitucional de proprietário do senhorio, tratou-o
discriminadamente relativamente ao inquilino e negou, efectivamente, o direito
constitucional de defesa, ao senhorio - que, como se alegara e se demonstrou nos
autos, ainda se estava valendo dos meios processuais administrativos, para
convencer a Câmara Municipal a fazer cessar o impedimento do exercício do seu
direito de proprietário, reconhecido em sentença transitada em julgado e na
deliberação que aprovara o projecto das obras, que a fundamentou.
Concluindo:
- o recurso é admissível e os recorrentes têm legitimidade;
- o recurso não é manifestamente infundado, pois não é claro que a
decisão recorrida não ofendeu as normas constitucionais citadas no requerimento
de interposição do recurso, pelas razões invocadas na reclamação, que aqui se dá
como reproduzida. (...)'
11. Sobre a reclamação incidiu acórdão da conferência,
que manteve o despacho reclamado pelos mesmos fundamentos.
12. Neste Tribunal, foi dada vista ao Procurador- ‑Geral
Adjunto, que propugnou o indeferimento da reclamação, nos seguintes termos:
'(...) Os ora reclamantes pretenderam interpor recurso de
constitucionalidade do acórdão proferido pela Relação do Porto, no recurso de
agravo enxertado no incidente destinado a obter a imediata reocupação do local
arrendado, com fundamento no não início das obras, destinadas à respectiva
ampliação. Fundaram-no na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/82 e
delimitaram-no em função da interpretação, feita pelo acórdão recorrido, das
normas constantes dos arts. 13º e 14º da Lei nº 2088, de 3/6/57 - interpretação
essa que teria consistido em 'requerida, pelo inquilino, despejado por motivo de
obras, a reocupação do arrendado, decorrido o prazo previsto no art. 13º da Lei
nº 2088, deve ser-lhe deferida a reocupação, sem audição do senhorio e sem que
este possa defender-se, deste modo impedido de demonstrar o caso fortuito ou de
força maior, previstos naquele preceito, impeditivos do início ou da continuação
das obras naquele prazo legal e negando-se‑lhe o direito de se defender e sendo
tratado discriminadamente relativamente ao inquilino'.
Temos, porém, como seguro que as normas questionadas não foram
interpretadas e aplicadas, no acórdão recorrido, com o sentido que lhes imputam
os ora reclamantes.
Na verdade, tais normas apenas estabelecem que, findo o prazo para o
início das obras cuja realização motivou o despejo e salva a ocorrência de caso
fortuito ou de força maior, é lícito ao arrendatário pedir a imediata reocupação
do prédio.
Ora, em nenhum ponto do acórdão recorrido vemos afirmado que a
imediata reocupação do local arrendado deva ocorrer sem prévia audição do
senhorio e sem que lhe seja facultada a possibilidade de se defender daquele
pedido, apresentando as suas razões e deduzindo as respectivas provas. Aliás, no
caso dos autos, os senhorios foram admitidos, no incidente em causa, a sustentar
as suas razões e a produzir prova documental no sentido de que inexistiria culpa
da sua parte na demora na concretização das obras em questão, procurando
subsumir a matéria de facto e as provas produzidas ao referido conceito de 'caso
fortuito ou de força maior'.
É certo que na 1ª instância, estando o processo pendente no Tribunal
da comarca da Póvoa do Varzim, o sr. juiz havia começado por ordenar que se
passasse o mandado de reocupação sem prévia audição dos ora reclamantes. Porém,
arguida a nulidade do despacho, foi imediatamente reparada a decisão,
reconhecendo-se a arguida nulidade e determinando-se a notificação dos AA. para
se pronunciarem sobre o requerimento inicial, o que vieram a fazer.
Deste modo, a violação do princípio do contraditório, inicialmente
cometida, foi de imediato reparada, sem necessidade de recurso - estando tal
questão há muito ultrapassada e precludida.
É, por outro lado, de toda a evidência que não incumbe a este
Tribunal Constitucional sindicar a apreciação da matéria de facto ou a
interpretação do direito ordinário, feitas pela Relação do Porto, designadamente
no que respeita ao preenchimento e concretização dos conceitos legais de 'caso
fortuito ou de força maior' ou à consideração de que, no caso dos autos,
ocorreria um incumprimento definitivo da obrigação de realização das obras, nos
termos e com os efeitos do art. 808º, nº 1, do C. Civil.
Em suma: o acórdão recorrido, ao dirimir o litígio a que os autos se
reportam, não aplicou qualquer norma com o sentido 'inconstitucional' - por
violação do princípio do contraditório, ínsito no art. 20º, nº 1, da Lei
Fundamental - que lhe pretendem imputar os reclamantes, de dever ser deferido o
pedido de reocupação 'sem audição do senhorio e sem que este possa defender-se'.
O que, desde logo e só por si, implica a inadmissibilidade do recurso de
constitucionalidade que os ora reclamantes pretenderam interpor e que se mostra
correctamente rejeitado.'
13. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Fundamentação
14. Como flui, claramente, do requerimento de recurso,
os ora reclamantes entendem que o tribunal a quo terá perfilhado uma
interpretação inconstitucional dos artigos 13º e 14º da Lei nº 2088, de 3 de
Junho de 1957.
Tais normas dispõem o seguinte:
'Artigo 13º
As obras deverão ser iniciadas até três meses depois de tornado
efectivo o despejo de todos os arrendatários, salvo caso fortuito ou de força
maior.
§ único. Esse prazo será, todavia, de seis meses se nenhum
arrendatário houver declarado querer ocupar ou reocupar o edifício.'
'Artigo 14º
Em caso de inobservância do prescrito no artigo anterior ou no seu §
único, o senhorio perde o direito à execução das obras; e os arrendatários,
mesmo que não tenham optado pela modalidade estabelecida no nº 1 do artigo 5º,
podem reocupar imediatamente o prédio nas condições vigentes à data do despejo,
sem obrigação de restituir a indemnização recebida.'
15. Segundo os reclamantes, a interpretação feita pelo
Tribunal recorrido permite que '... seja definida a reocupação, sem audição do
senhorio e sem que este possa defender-se, (estando) deste modo impedido de
demonstrar o caso fortuito ou de força maior' (cf., supra, o nº 8 do presente
acórdão).
Tal interpretação normativa violaria, alegadamente, o
princípio da igualdade - por não assegurar o contraditório - e os direitos de
acesso aos tribunais e de propriedade privada, consagrados, respectivamente, nos
artigos 13º, 20º, nº 1, e 62º, nº 1, da Constituição. A decisão recorrida teria,
pois, aplicado normas cuja inconstitucionalidade (material) fora arguida no
decurso do processo.
16. Se bem que apenas as normas - e não, simplesmente,
as decisões judiciais, abstraindo das normas que aplicam - constituam objecto da
fiscalização concreta da constitucionalidade, o Tribunal Constitucional tem
entendido, uniformemente, que tais normas podem ser apreciadas segundo a
dimensão, o sentido ou a interpretação que, em concreto, lhes atribui o tribunal
a quo (cf., sobre isto, os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 62/85, 94/88
e 123/89, Diário da República, II, de 31 de Maio de 1985, 22 de Agosto de 1988 e
29 de Abril de 1989, respectivamente, e Cardoso da Costa, A Jurisdição
Constitucional em Portugal, 2ª ed., 1992, p. 50).
Por conseguinte, no caso sub judicio o Tribunal
Constitucional poderia conhecer a questão de constitucionalidade suscitada,
apreciando a conformidade das normas em crise, segundo determinada
interpretação, aos princípios e normas constitucionais. Porém, é indispensável
que o Tribunal recorrido haja, efectivamente, aplicado as normas segundo aquela
interpretação cuja constitucionalidade é questionada. No caso contrário, não
terá sido aplicada '... norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada
durante o processo' [artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1,
alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional] e o recurso de constitucionalidade
não será admissível.
17. No caso vertente, admitiu-se, ao contrário do que
pretendem os reclamantes, o exercício do contraditório. Na verdade, o tribunal
de primeira instância acabou por reconhecer a nulidade do despacho que
inicialmente proferiu (ordenando a reocupação do prédio pelos réus sem audição
dos autores da acção de despejo) e determinou a notificação dos ora reclamantes
para se pronunciarem sobre o requerimento de reocupação apresentado pela parte
contrária.
Assim os reclamantes tiveram oportunidade de alegar e
provar o 'caso fortuito ou de força maior' (impeditivo do início ou da
continuação das obras), para obstarem à reocupação do prédio. Averiguar se esta
prova foi correctamente valorada ultrapassa já, manifestamente, o âmbito dos
poderes cognitivos do Tribunal Constitucional, ao qual não compete fiscalizar a
interpretação e a aplicação de normas infraconstitucionais que não envolvam uma
eventual violação de normas ou princípios constitucionais.
18. É certo, por outro lado, que o Tribunal da Relação
do Porto veio interpretar as normas dos artigos 13º e 14º da Lei nº 2088
introduzindo uma distinção entre as hipóteses de mora e de incumprimento
definitivo da obrigação de realizar as obras no prédio. Só no primeiro caso será
admissível a invocação do 'caso fortuito ou de força maior'; no segundo, o
inquilino poderá reocupar o prédio que foi obrigado a despejar,
independentemente de haver culpa do senhorio (cf. supra, os nºs 5 e 9 deste
Acórdão).
Todavia, nunca os reclamantes questionaram a
constitucionalidade desta interpretação normativa, que pressupõe que o senhorio
pode provar, sucessivamente, que não há uma situação de incumprimento definitivo
(artigo 808º, nº 1, do Código Civil) e que a mora se deve a 'caso fortuito ou de
força maior'. Como se viu, os reclamantes sustentaram sempre que, segundo a
interpretação do Tribunal a quo, seria inadmissível, no plano processual,
exercer o contraditório.
Em suma: o Tribunal recorrido não perfilhou a
interpretação normativa cuja inconstitucionalidade foi arguida e os recorrentes
não invocaram a inconstitucionalidade da interpretação normativa acolhida por
aquele tribunal.
19. A inadmissibilidade do recurso não resulta - convirá
salientá-lo - dos fundamentos aduzidos em abono da tese da
inconstitucionalidade: violação do princípio da igualdade e dos direitos de
acesso aos tribunais e de propriedade privada (artigos 13º, 20º, nº 1, e 62º, nº
1, da Constituição). Embora o requerimento de recurso deva indicar a norma ou o
princípio constitucional que se considere terem sido violados, o Tribunal
Constitucional pode conceder-lhe provimento com fundamento na violação de normas
ou princípios constitucionais diversos (cf. os artigos 75º-A, nº 2 e 79º-C da
Lei do Tribunal Constitucional introduzidos pela Lei nº 85/89, de 7 de
Setembro). Só nas hipóteses de persistência na falta de indicação da norma ou
dos princípios constitucionais violados (artigo 75º-A, nº 5, da Lei do Tribunal
Constitucional; cf. o Acórdão nº 501/94, Diário da República, II, de 10 de
Dezembro de 1994), deverá ser indeferido o requerimento de interposição de
recurso.
Independentemente dos fundamentos invocados, que não
vinculam o Tribunal Constitucional, o recurso é inadmissível, no caso vertente,
por que não vem de decisão que tenha aplicado norma cuja inconstitucionalidade
haja sido suscitada durante o processo [artigos 280º, nº 1, alínea b), da
Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional). E a
este nível os poderes cognitivos do Tribunal estão, efectivamente, limitados
(cf. o artigo 79º-C da Lei do Tribunal Constitucional).
Assim, não merece censura o despacho de indeferimento do
recurso interposto pelo ora reclamante, devendo desatender-se a sua reclamação.