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Procº nº 106/95 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I.- Relatório
1.- A. interpôs recurso contencioso de anulação na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo do despacho do Chefe do Estado Maior da Força Aérea de 4 de Dezembro de 1992, que lhe indeferiu recurso hierárquico necessário da decisão que lhe atribuiu a classificação de serviço relativa ao ano de 1990.
Como fundamento da ilegalidade do acto administrativo impugnado, invocou a recorrente, inter alia, a inconstitucionalidade formal das normas do Decreto Regulamentar nº 57-A/81, de 29 de Dezembro, devido à falta de audição das associações sindicais no procedimento da sua elaboração.
2.- Por Acórdão de 15 de Novembro de 1994, a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo concedeu provimento ao recurso e anulou o acto impugnado. Para o efeito, considerou que, tendo sido este praticado ao abrigo do Decreto Regulamentar nº 57-A/81, de 29 de Dezembro, que à data - 1990 - não vigorava na ordem jurídica, ou por os diplomas a que se destinava dar execução, em matéria de classificação de serviço, serem inconstitucionais ou por ele o ser também, o mesmo enfermava de erro nos pressupostos de direito, a que corresponde o vício de violação de lei.
3.- Deste aresto interpôs o Ministério Público o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo
280º, nº 1, alínea a), da Constituição e dos artigos 70º, nº 1, alínea a), 71º, nº 1, alínea a), e nº 3, e 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº
28/82, de 15 de Novembro), com o fundamento de no mesmo se ter recusado a aplicação do Decreto Regulamentar nº 57-A/81, de 29 de Dezembro, 'por ele próprio enfermar de inconstitucionalidade formal ou por inconstitucionalidade formal - falta de audição dos representantes dos trabalhadores - dos Decretos-Leis nºs. 33/80, de 13 de Março, e 271/81, de 26 de Setembro, que aquele Decreto Regulamentar pretendia regulamentar'.
4.- Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apresentou alegações, tendo-as concluído do seguinte modo:
'1.- O Estatuto do Pessoal Civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 33/80, bem como o Decreto-Lei nº 271/81, cujas disposições se aplicam também àquele pessoal civil, enquadram-se na noção de legislação do trabalho.
2.- Assim, por força do disposto no artigo 58º, nº 2, alínea a), da Constituição, na sua versão originária, as associações sindicais representativas dos trabalhadores deveriam ter sido convidadas a participar na feitura daqueles diplomas, o que não se verificou, pelo que estes enfermam de inconstitucionalidade formal.
3.- Consequentemente, o respectivo regulamento de execução (Decreto Regulamentar nº 57-A/81, de 29 de Dezembro) não é aplicável em matéria de classificação de serviço do referido pessoal civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas, por não ter suporte legal.'
Por sua vez, a recorrida louva-se, na suas alegações, na posição defendida pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, dizendo que deve ser confirmado o acórdão recorrido.
5.- Corridos os vistos legais, vejamos, então, se as normas do Decreto Regulamentar nº 57-A/81, de 29 de Dezembro - o único diploma que constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade - são, ou não, inconstitucionais, por violação do artigo 58º, nº 2, alínea a), da Constituição, na versão originária [a que corresponde, na versão decorrente da revisão constitucional de 1989, a alínea a) do nº 2 do artigo 56º].
II - Fundamentos
6.- Conclui-se no aresto aqui sob recurso que a classificação de serviço deveria ter sido feita, como de resto o foi, ao abrigo do Decreto Regulamentar nº 57-A/81. Isto, não obstante o Decreto-Lei nº 264/89, de 18 de Agosto, no seu artigo 3º, nº 1, ter revogado expressamente o Decreto-Lei nº 33/80, de 13 de Março, na parte que aprovou o Estatuto do Pessoal Civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas, já que no seu nº 3 mantém transitoriamente em vigor o actual regime de classificação de serviço aplicável a este pessoal até à sua revisão, nos termos da lei geral.
E a seguir pondera-se:
'Mas assim sendo, o regime de classificação de serviço aplicável à recorrente, no ano de 1990, era o previsto naquele Decreto-Lei nº 33/80, bem como no Decreto-Lei nº 271/81, e no regulamento de execução de ambos, nessa parte, ou seja, o Decreto Regulamentar nº 57-A/81.
Trata-se, no entanto, indubitavelmente, de legislação do trabalho, como opina o Exmo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer e se salienta no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 15/88, embora para o Pessoal Civil dos Estabelecimentos Fabris das Forças Armadas, mas que não pode ter qualificação jurídica diferente no Estatuto do Pessoal Civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas, dada a natureza das normas jurídicas deste serem semelhantes, pois também se referem às mesmas matérias: da constituição e cessação da relação de serviço, das carreiras e quadros, dos direitos e deveres dos trabalhadores, das suas responsabilidades e garantias, das condições da prestação do trabalho, da suspensão da prestação do trabalho, das licenças, e da apreciação e preparação profissionais.
Por outro lado o Decreto-Lei nº 271/81, para além de conter normas relativas
à classificação de serviço, estabelece, como se escreve no seu preâmbulo, critérios gerais reguladores do ordenamento das carreiras dos actuais técnicos superiores, dos técnicos, do pessoal técnico--profissional e administrativo e do pessoal operário e auxiliar, estabelece ainda regras comuns de ingresso e de acesso nas carreiras, sem impedir a verificação de requisitos especiais, considerados indispensáveis, em função das tarefas desempenhadas: valoriza e aperfeiçoa as categorias condicionadas a uma única classe, estabelecendo, por um lado, critérios de selecção mais rigorosos e, por outro, facultando a progressão
à generalidade das carreiras.
Ora, muito embora, como se lê no Acórdão nº 15/88 do Tribunal Constitucional, citando o aresto nº 451/87, do mesmo Tribunal, 'a Constituição não defina o conceito de legislação de trabalho, parece que esta há-de ser 'a que visa regular as relações individuais e colectivas de trabalho, bem como os direitos dos trabalhadores, enquanto tais, e suas organizações' (cfr. o parecer nº 17/81, Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 16, pág. 14), ou se assim melhor se entender, há-de abranger a 'legislação regulamentar dos direitos fun- damentais dos trabalhadores reconhecidos na Constituição' (cfr. o Acórdão nº 31/84, cit.).
Ora, qualquer que seja a perspectiva seguida, quer o Estatuto do Pessoal Civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas - Decreto-Lei nº 33/80 -, quer o Decreto-Lei nº 271/81, enquadram-se na noção de legislação do trabalho.
Daí que, por força do disposto no artigo 58º, nº 2, alínea a), da Constituição, na sua versão originária, as associações sindicais repre- sentativas dos trabalhadores do Pessoal Civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas deveriam ter sido convidadas a participar na feitura de tais diplomas.
Como tal não se verificou, os mesmos enfermam de inconstitucionalidade formal.
Mas assim sendo, então não é aplicável à classificação de serviço da recorrente, em 1990, o regulamento de execução (Decreto Regulamentar nº 57-A/81) nessa matéria, daqueles diplomas, por lhe faltar a base legal, pois sendo aqueles inconstitucionais tudo se passa como se não existissem na ordem jurídica.
Mas considerando o citado Decreto Regulamentar independente e autónomo relativamente ao Decreto-Lei nº 33/80, como sustenta a entidade recorrida na sua resposta ao recurso, então também não pode deixar de considerar-se ferido de inconstitucionalidade formal nos termos do artigo 58º, nº 2, alínea a), da Constituição, já que, constituído por normas inseridas no conceito de legislação do trabalho, como são as relativas à classificação de serviço com incidência na progressão na carreira e respectivas promoções (cfr. artigo 78º do mencionado Estatuto e artigo 3º, nº 3, do Decreto-Lei nº 271/81), também as associações sindicais representativas dos trabalhadores não foram convidadas a participar na sua feitura.'
7.- No acórdão cujos traços mais salientes vêm de ser transcritos, os Decretos-Leis nºs. 33/80, de 13 de Março, e 271/81, de 26 de Setembro, são enquadrados na noção de 'legislação do trabalho'. Trata-se de uma qualificação que, atento o conteúdo daqueles diplomas e tendo em conta a vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de densificação do conceito de 'legislação do trabalho', merece a inteira concordância deste Tribunal (para uma análise daquela jurisprudência, cfr., por último, os Acórdãos nºs. 124/93 e 430/93, publicados no Diário da República, I Série-A, nº 52, de 3 de Março de 1993, e nº 248, de 22 de Outubro de 1993). Considerando que as associações sindicais representativas dos trabalhadores do Pessoal Civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas não foram convidadas a participar no procedimento de elaboração daqueles diplomas legais, o acórdão recorrido entendeu que eles enfermam de inconstitucionalidade formal.
8.- No que concerne ao Decreto Regulamentar nº
57-A/81, o Acórdão da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Novembro de 1994 qualifica-o como mero regulamento de execução relativamente aos Decretos-Leis nºs. 33/80 e 271/81. Tendo em consideração esta qualificação, aquele aresto concluiu que aquele decreto regulamentar era (consequencialmente) inconstitucional, por serem inconstitucionais (formalmente) os diplomas legais que ele pretendeu regulamentar.
Não deixou, no entanto, o acórdão recorrido de conceder que, no caso de se entender que o Decreto Regulamentar nº 57-A/81 assume a natureza de regulamento independente e autónomo em relação aos Decretos-Leis nºs. 33/80 e 271/81, então terá de concluir-se que ele é, em si mesmo, inconstitucional, sob o ponto de vista formal, por violação do artigo 58º, nº 2, alínea a), da Constituição (versão originária), uma vez que ele, visto nessa perspectiva, disciplinará, com carácter inovador, matérias inseridas no conceito de 'legislação do trabalho', como são os relativos à classificação de serviço com incidência na progressão na carreira e respectivas promoções. De acordo com uma tal óptica, o Decreto Regulamentar nº 57-A/81, na medida em que teria um conteúdo inovador face aos Decretos-Leis nºs. 33/80 e 271/81 e teria uma vinculação mais ténue a estes diplomas legais do que a verificada nos regulamentos de execução, deveria ser considerado como 'legislação do trabalho' e, conse- sequentemente, na sua elaboração deveria ter sido solicitada a participação das associações sindicais (sobre a problemática de saber que tipo de regulamentos podem ser considerados 'legisla- ção do trabalho', cfr. o citado Acórdão deste Tribunal nº 430/93).
9. Sucede, porém, como sublinha o Exmº Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, que o Decreto Regulamentar nº 57-A/81, de 29 de Dezembro, não pode ser considerado como um regulamento independente, sendo, antes, um regulamento de execução dos Decretos-Leis nºs. 33/80 e 271/81.
Com efeito, aquele decreto regulamentar aprovou as normas de classificação de serviço do pessoal civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas, esclarecendo-se no seu preâmbulo que se considerou necessário reunir num único diploma a legislação prevista no nº 3 do artigo 78º do Estatuto do Pessoal Civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 33/80, de 13 de Março, e no nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 271/81, de 26 de Setembro.
O artigo 78º do Estatuto do Pessoal Civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 33/80, tem o seguinte conteúdo:
Artigo 78º
(Classificação de serviço)
1- O mérito profissional do pessoal civil será apreciado e classificado periodicamente, no mínimo uma vez em cada ano.
2- A classificação de serviço será individualizada e terá por base o juízo de mérito acerca da conduta, capacidade profissional e rendimento, para a generalidade das categorias, devendo incluir a capacidade de lide- rança para as categorias com funções de chefias.
3- A classificação de serviço deve terminar por uma graduação, de acordo com o que vier a ser estabelecido em diploma regulamentar, aí se prevendo a entidade competente para a sua homologação.
Por sua vez, o artigo 3º do Decreto-Lei nº 271/81 estatui o seguinte:
Artigo 3º
(Classificação de serviço)
1- O sistema de classificação será objecto de decreto regulamentar a publicar no prazo de noventa dias.
2- O diploma a que se refere o número anterior deverá consagrar os seguintes princípios:
a) Periodicidade da classificação de serviço;
b) Conhecimento da graduação da classificação de serviço ao interessado;
c) Garantia de recurso.
3- A atribuição da classificação de serviço graduada em Muito bom ou equivalente durante dois anos consecutivos poderá reduzir de um ano, para efeitos de progressão na carreira, o tempo mínimo de permanência previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 2º.
Resulta dos preceitos transcritos que a lei contém as regras fundamentais que disciplinam o sistema de classificação de serviço, regras essas que o Decreto Regulamentar nº 57-A/81, reproduziu e desenvolveu, a fim de assegurar a respectiva execução. O Decreto Regulamentar nº 57-A/81 caracteriza-se, assim, como um regulamento meramente executivo, isto é, para nos expressarmos com A. Rodrigues Queiró, como um regulamento que contém tão-só 'as providências necessárias para assegurar a fidelidade, ou seja, a conformidade à vontade do legislador, na medida em que esta seja relativamente obscura ou lacunosa', em suma, um regulamento que não se substitui em nenhuma medida à lei, que rigorosamente não dá vida a nenhuma 'regra de fundo', a nenhum preceito jurídico
'novo' ou originário e que se limita a repetir os preceitos ou regras de fundo que o legislador editou - só que de uma maneira clara ou, de toda a maneira, mais clara (cfr. A. Rodrigues Queiró, Teoria dos Regulamentos, I Parte, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXVII, 1981, p. 9. Cfr. ainda J.C. Vieira de Andrade, Autonomia Regulamentar e Reserva de Lei, Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra «Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró», 1986, Coimbra, 1987, p. 13,14; A. M. Sandulli, L.Attività Normativa della Pubblica Amministrazione, Napoli, Jovene,
1970, p. 39,40; e R. Entrena Cuesta, Curso de Derecho Administrativo, Vol. I, Madrid, Tecnos, 1986, p. 142).
Assim sendo, aquele diploma regulamentar não pode qualificar-se como independente, entendido este como aquele em que a lei se limita a definir a competência objectiva (isto é, a matéria sobre que pode incidir o regulamento) e a competência subjectiva (ou seja, a entidade competente para emitir o regulamento) [cfr. J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Ed., Coimbra, Coimbra Editora,
1993, p. 513, 514].
Era, por isso, dispensável a participação na sua elaboração das associações sindicais representativas dos trabalhadores, pelo que, em si mesmo, não enferma da apontada inconstitucionalidade.
O Decreto Regulamentar nº 57-A/81, de 29 de Dezembro, é, no entanto, consequencialmente inconstitucional, por efeito da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do Decreto-Lei nº. 33/80, de
13 de Março, constante do Acórdão nº 15/88, publicado no Diário da República, I Série, de 3 de Fevereiro de 1988, diploma que aquele pretendeu regulamentar.
III - Decisão.
10. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido, na parte impugnada.
Lisboa, 20 de Novembro de 1996 Fernando Alves Correia Messias Bento José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Bravo Serra Luís Nunes de Almeida