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Proc. nº 43/92
1ª Secção
Rel. Consª. Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. No âmbito do processo de recurso de avaliação fiscal
extraordinária, que corre os seus termos no 7º Juízo Cível do Tribunal da
Comarca de Lisboa, em que é recorrente A. e recorrida B., esta interpôs recurso
para o Tribunal da Relação de Lisboa da decisão final proferida em 1ª instância.
No respectivo requerimento, sustentou a recorrente a
inconstitucionalidade do artigo 15º, parágrafo único, do Decreto nº 37.021, de
21 de Agosto de 1948, na redacção dada pelo Decreto Regulamentar nº 1/86, de 2
de Janeiro, e no qual se determina que 'da decisão final não cabe recurso'.
Tal requerimento foi indeferido por aplicação directa da
citada disposição legal, que o tribunal de 1ª instância não considerou
inconstitucional.
2. A recorrente reclamou, então, para o Juiz Presidente
do Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do disposto no artigo 688º do Código
de Processo Civil, sustentando, mais uma vez, a inconstitucionalidade do artigo
15º, parágrafo único, do Decreto nº 37.021. Aí defendeu que a mencionada
disposição legal regularia matéria relativa à organização e competência dos
tribunais, integrada na reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia da República, nos termos do artigo 168º, alínea q), da Constituição.
Consequentemente, tal norma estaria ferida de inconstitucionalidade orgânica,
por constar de diploma regulamentar do Governo. Por outro lado, a recorrente
alegou a inconstitucionalidade material da mesma disposição legal, por ela
violar o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º da
Constituição, que compreenderá o direito de recurso para tribunal superior.
O juiz da causa manteve o despacho reclamado e o
Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente a reclamação,
por entender que não se verificam as inconstitucionalidades suscitadas pela
recorrente.
3. Do despacho do Presidente do Tribunal da Relação de
Lisboa vem interposto, pela recorrente no processo, o presente recurso para este
Tribunal, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional. Constitui objecto do recurso a questão da constitucionalidade do
artigo 15º, parágrafo único, do Decreto nº 37.021, de 21 de Agosto de 1948, na
redacção dada pelo Decreto Regulamentar nº 1/86, de 2 de Janeiro, por alegada
violação dos artigos 20º, nº 1, e 168º, alínea q), da Constituição.
Neste Tribunal, a recorrente produziu alegações,
formulando as seguintes conclusões:
1ª) O parágrafo único do artigo 15º do Decreto Regulamentar nº 1/86, de 2 de
Janeiro, ao impedir os recursos das decisões dos tribunais de comarca regulou a
competência destes tribunais e dos Tribunais de Relação;
2ª) Este dispositivo legal é inconstitucional, pois a competência dos
tribunais integra-se na reserva legislativa da A.R. e nunca podia ser objecto de
mero regulamento (cfr. artigos 115º, nºs 5 e 7, e 168º, nº 1, alínea q), da
C.R.P.);
3ª) O artigo 15º, parágrafo único do Decreto Regulamentar nº 1/86, de 2 de
Janeiro, ao impedir o recurso para um tribunal superior, viola clara e
frontalmente o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, nº 1,
da C.R.P. e, por isso, o preceito está ferido de inconstitucionalidade material.
4. Por sua vez, a recorrida produziu também alegações, opondo-se ao
provimento do recurso e concluindo da seguinte forma:
1ª) O presente recurso para este Venerando Tribunal não é admissível, uma vez
que a questão da inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo, o
que se traduz na falta de um requisito essencial para que o recurso seja
admitido;
2ª) Através do Decreto Regulamentar nº 1/86, de 2 de Janeiro, o Governo,
dentro das suas competências constitucionais, limitou-se a dar corpo à
jurispru-dência dominante sobre esta matéria, permitindo, assim, a boa execução
da lei, pelo que não violou qualquer preceito constitucional, nomeadamente a
alínea q) do nº 1 do artigo 168º da C.R.P.;
3ª) Ao fixar o juiz da comarca como última instância desta espécie de
processos, o parágrafo único do artigo 15º do Decreto nº 37.021, de 21 de Agosto
de 1948, não violou o direito de acesso aos tribunais nem qualquer outro direito
constitucional, pelo que não está ferido de inconstitucionalidade material.
5. Ouvida sobre a questão prévia suscitada pela recorrida, a
recorrente pronunciou-se no sentido de ela ser desatendida, com o argumento de
que a questão de inconstitucionalidade em causa, pela sua natureza, só poderia
ser suscitada no requerimento de interposição de recurso - conforme sucedeu - e,
posteriormente, na reclamação deduzida ao abrigo do artigo 688º do Código de
Processo Civil.
6. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Fundamentação
A - A questão prévia da admissibilidade do recurso
7. Antes de mais há que apreciar a questão prévia invocada pela
recorrida. Esta sustenta que a recorrente não suscitou a questão de
inconstitucionalidade 'durante o processo', como lhe impunha o artigo 70º, nº 1,
alínea b), parte final, da Lei do Tribunal Consitucional, na medida em que as
arguiu já depois de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria da
causa.
Constata-se, na verdade, que a questão da inconstitucionalidade do
artigo 15º, parágrafo único, do Decreto nº 37.021, foi suscitada, pela primeira
vez nos autos, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal da
Relação de Lisboa, ou seja, já depois de proferida a decisão final em 1ª
instância. A dúvida reside em saber se, em face destas circunstâncias, se pode
dizer que a questão da inconstitucionalidade foi ainda suscitada 'durante o
processo'.
8. Sobre este requisito de admissibilidade do recurso de
constitucionalidade, previsto no artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição
da República Portuguesa e no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional, já se pronunciou amplamente este Tribunal, estando fixada
orientação segura nessa matéria.
Assim, tem-se entendido que tal pressuposto deve ser visto não num
sentido formal, segundo o qual a questão da inconstitucionalidade poderia ser
suscitada até à extinção da instância, mas num sentido funcional, segundo o qual
a inconstitucionalidade tem de ser invocada enquanto o tribunal a quo ainda
possa conhecer da questão, ou seja, antes de esgotado o poder jurisdicional do
juiz sobre a matéria a que a questão de constitucionalidade respeita - e
ressalvada a situação excepcional de o interessado não dispor de oportunidade
processual para levantar a questão antes de esgotado o poder jurisdicional (cf.,
designadamente, os Acórdãos nºs 62/85, 90/85 e 94/88, no Diário da República,
II, de 31 de Maio de 1985, 11 de Julho de 1985 e 22 de Agosto de 1988,
respectivamente).
9. Ora, se é certo que o poder jurisdicional se esgota, em regra,
com a prolação da sentença ou decisão final, não é menos exacto que existem
matérias relativamente às quais o poder de jurisdição do tribunal não se esgota
com a sentença. Uma dessas matérias é, precisamente, a questão da
admissibilidade ou não de um recurso.
Com efeito, tal questão coloca-se, necessariamente, apenas em
momento posterior à decisão final: se está em causa a admissibilidade de um
recurso, o momento próprio para suscitar a questão não será, logicamente,
anterior ao do respectivo requerimento de interposição de recurso, sobre o qual
o juiz da causa ainda terá de se pronunciar (cf. artigo 687º do Código de
Processo Civil); e do eventual indeferimento do recurso, cabe ainda reclamação,
a ser apreciada pelo presidente do tribunal superior (cf. artigo 688º do Código
de Processo Civil). Se sobre a questão da admissibilidade do recurso ainda se
pode pronunciar o juiz da causa e o presidente do tribunal superior, é óbvio que
o poder jurisdicional do tribunal sobre a referida matéria não se esgotou com a
decisão final.
10. No caso em apreço, a recorrente suscitou a questão da
inconstitucionalidade da inadmissibilidade do recurso no próprio requerimento de
interposição de recurso, num momento em que o tribunal de 1ª instância ainda
podia pronunciar-se sobre essa matéria, através do despacho relativo a esse
requerimento, e em que o presidente do tribunal superior ainda poderia ser
chamado a apreciar a questão, em sede de reclamação, como veio a suceder. Ou
seja, este caso, ainda não se havia esgotado o poder jurisdicional sobre a
matéria a que respeitava a questão de constitucionalidade, pelo que cabe
concluir que, afinal, tal questão foi efectivamente suscitada 'durante o
processo'.
Deste modo, não assiste razão à recorrida na questão prévia
suscitada, que, assim, não será atendida.
B - A alegada inconstitucionalidade material do parágrafo único do artigo 15º do
Decreto-Lei nº 37.021
11. A questão da inconstitucionalidade material do parágrafo único
do artigo 15º do Decreto nº 37.021, de 21 de Agosto de 1948, apela ao tema,
largamente debatido na jurisprudência deste Tribunal, da eventual consagração no
texto constitucional da chamada garantia do duplo grau de jurisdição.
Como se disse, a recorrente sustenta que o direito de acesso aos
tribunais, contemplado no artigo 20º da Constituição, comporta o direito de
recurso para tribunal superior. Há, assim, que apurar o sentido último dessa
disposição constitucional, no plano do processo civil, em que se situa a norma
sub judicio.
O artigo 20º, nº 1, da Constituição, na versão resultante da revisão
constitucional de 1989 determina que 'a todos é assegurado o acesso ao direito
e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não
podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos'. Tal norma
reproduz, no essencial, o nº 2 do artigo 20º da Constituição, na versão dada
pela revisão constitucional de 1982, apenas inovando ao referir o 'acesso ao
direito'.
Na citada norma constitucional consagra-se a chamada garantia da via
judiciária (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 162), de que se extraem primariamente duas
regras: por um lado, garante-se a tutela jurisdicional mínima, segundo a qual o
legislador ordinário terá de assegurar a todos os cidadãos, sem discriminações
de ordem económica, o acesso a um grau de jurisdição; e, por outro lado,
garante-se que, quando o legislador ordinário estabelecer vários graus de
jurisdição, será assegurado, sem discriminações de ordem económica, o acesso a
essa via judiciária sucessiva (cf., entre outros, os Acórdãos nºs 65/88 e
202/90, no Diário da República, II, de 20 de Agosto de 1988 e de 21 de Janeiro
de 1991, respectivamente).
Mas, para além de tais regras mínimas, o direito de acesso aos
tribunais, enquanto expressão do direito de acesso à justiça, postula,
igualmente, um direito à reapreciação das decisões judiciais por tribunais
superiores, como forma de controlo da errada aplicação do direito. A
Constituição, aliás, ao prever a existência de tribunais de recurso (artigo
212º), admitiu, pelo menos implicitamente, um sistema de recursos e limitou, de
algum modo, a possibilidade de intervenções radicais do legislador ordinário
nesse sistema: o legislador não pode abolir genericamente o sistema de recursos
nem criar mecanismos que inviabilizem na prática a faculdade de recorrer (cf.
Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 1992, p. 99 ss.).
Porém, o conteúdo do direito a recorrer ou do direito a um grau de
jurisdição não tem sido entendido pela jurisprudência do Tribunal
Constitucional como uma directa emanação da Constituição. Dos artigos 20º e 212º
apenas se deduz uma garantia contra violações radicais, pelo legislador
ordinário, do sistema de recursos instituídos e da igualdade dos cidadãos na sua
utilização (cf. Acórdão nº 65/88).
Mas a esta exigência mínima impõe-se acrescentar ainda, por
imposição do princípio do direito de acesso à justiça e do princípio do Estado
de direito democrático (artigo 2º da Constituição) - do qual se extrai a
garantia de controlo pelo direito das decisões dos próprios órgãos
jurisdicionais - que o acesso a sucessivos graus de jurisdição deve ser definido
segundo critérios objectivos, ancorados numa ideia de proporcionalidade
(relevância das causas, natureza das questões) e que respeitem o princípio da
igualdade, tratando de forma igual o que é idêntico e de forma desigual o que é
distinto (cf., neste sentido, os citados Acórdãos nºs 68/85 e 163/90, no Diário
da República, II, de 15 de Junho de 1985 e de 18 de Outubro de 1991,
respectivamente).
Não será, assim, admissível que a lei exclua da possibilidade de
recurso determinada categoria de casos, 'sem que nenhuma justificação objectiva
se verifique para tal discriminação' (cf. Acórdão nº 68/85). E esta igualização
imposta pela Constituição radica numa distinção e graduação qualitativa das
matérias, que deve atender à hierarquia de valores constitucionais e à protecção
reforçada dos direitos fundamentais. Deste modo, seria inconstitucional, por
exemplo, a supressão do duplo grau de jurisdição em processo penal ou em
matérias de idêntica relevância para os direitos fundamentais.
12. No caso sobre que se decide, como se procurará demonstrar, não
se afigura arbitrária, desrazoável ou violadora da proporcionalidade e da
igualdade de protecção jurídica a exclusão da possibilidade de recurso para a
2ª instância da decisão final proferida em processo de recurso de avaliação
fiscal extraordinária.
Está em causa um processo de tipo particular, basicamente de
natureza administrativa (processo de avaliação fiscal extraordinária),
envolvendo matéria de natureza essencialmente técnica (avaliação de prédios
urbanos para efeitos fiscais e de definição do valor da renda dos arrendamentos
não habitacionais), que corre nas repartições de finanças (cf. artigos 5º e 10º
do Decreto nº 37.021) e que culmina com uma decisão do chefe da repartição de
finanças ou do presidente da comissão de avaliação ou com uma deliberação dessa
comissão (cf. artigo 14º do Decreto nº 37.021). Só em fase posterior (e
eventual) vem a ter lugar uma intervenção judicial, no caso de qualquer dos
interessados não se conformar com a decisão daquela entidade, e mediante a
interposição de um 'recurso' para o tribunal da comarca (cf. artigos 14º e 15º
do Decreto nº 37.021). Ou seja, o tribunal de 1ª instância funciona já como uma
instância de recurso. O que sugere que o legislador, devido ao carácter técnico
dos critérios das avaliações vinculativos para a entidade administrativa a quem
compete a decisão, ao instituir a possibilidade de recurso para um tribunal
judicial, pretendeu assegurar uma garantia de defesa de direitos idêntica
materialmente à garantia de um 'duplo grau de jurisdição' relativamente a
matérias em que a primeira decisão é estritamente jurídica.
Deste modo, surge como inadequada e excessiva a exigência de um
segundo recurso para uma outra instância judicial. Diga-se ainda que não se
vislumbram situações legais de tratamento processual diferente relativamente a
interesses idênticos aos que estão envolvidos nos processos de avaliação fiscal
extraordinária.
Nesta medida, pode concluir-se que a norma em crise não viola o
disposto nos artigos 20º, 212º e 13º da Constituição.
C - A alegada inconstitucionalidade orgânica do parágrafo único do artigo 15º do
Decreto nº 37.021
13. Foi ainda suscitada a questão da inconstitucionalidade orgânica
do parágrafo único do artigo 15º do Decreto nº 37.021, de 21 de Agosto de 1948.
Tal questão é suscitada porque, no entender do recorrente, o
Decreto Regulamentar nº 1/86, de 2 de Janeiro (que integrou o aludido parágrafo
único no artigo 15º do Decreto nº 37.021) regula matéria de competência dos
tribunais que é da exclusiva competência da Assembleia da República, por força
do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição.
A questão reconduz-se, pois, a apurar qual o conceito constitucional
de 'competência dos tribunais' e a determinar se a norma sub judicio versa sobre
matéria de 'competência'.
14. No que respeita ao conceito constitucional de 'competência', a
doutrina constitucional (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 675) tem sustentado que cabe na
competência reservada da Assembleia da República toda a matéria de organização e
competência dos tribunais, só não sendo abrangidas as modificações de
competência judiciária, material ou territorial, com carácter meramente
processual. E também neste sentido se tem manifestado o Tribunal Constitucional
na vasta jurisprudência existente sobre a matéria (cf., entre outros, os
Acórdãos nºs 367/92 e 805/93, no Diário da República, I, de 17 de Dezembro de
1992 e de 4 de Janeiro de 1994, respectivamente, e nºs 404/87 e 132/88, no
Diário da República, II, de 21 de Dezembro de 1987 e de 8 de Setembro de 1988,
respectivamente).
Ultrapassou-se, assim, a interpretação sugerida no parecer nº 4/81
da Comissão Constitucional, segundo a qual estaria 'reservada à Assembleia da
República apenas a fixação dos princípios básicos de competência dos tribunais,
os grandes quadros de competência que integram a organização judiciária'
(Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 14º, 1983, p. 259).
É também inquestionável que matérias de simples carácter processual
de natureza civil não cabem na reserva legislativa parlamentar, na medida em que
a matéria de processo civil (diferentemente da de processo criminal) não está no
âmbito da competência reservada da Assembleia da República. E o Tribunal
Constitucional foi ainda um pouco mais longe, ao entender que 'as modificações
da competência judiciária a que deva atribuir-se simples carácter processual'
não constituem matéria de reserva legislativa parlamentar (cf. os Acórdãos nºs
404/87 e 132/88, citados). Isto significa que pode haver normas que delimitem
por via indirecta matéria de competência, mas que sejam, em primeira linha,
normas de carácter processual - e, nesse caso, já se estará fora do alcance da
reserva parlamentar, porque esta reserva só respeita a normas que fixem os
'poderes' dos tribunais, questão central da organização da Justiça, num Estado
de direito democrático, e não a normas de outra natureza, que apenas regulem as
condições da tramitação processual ou a própria tramitação.
15. É problemático apurar quais as normas que directamente se
referem à matéria de 'competência' - e que, nessa medida, estarão subordinadas à
reserva de lei.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou quanto a tal questão.
Assim, no Acórdão nº 33/88 (Diário da República, I, de 22 de Fevereiro de
1988), acompanhando-se o teor de declaração de voto anexa ao Acórdão nº 230/86
(Diário da República, I, de 12 de Setembro de 1986), entendeu-se que se está a
legislar sobre competência dos tribunais, incluída na reserva legislativa da
Assembleia da República, quando se editam 'normas que, v.g., distribuam a
competência contenciosa entre as diferentes ordens de jurisdição estaduais [ou]
delimitem genericamente o respectivo âmbito material de competência'. E no
Acórdão nº 271/92 (Diário da República, II, de 23 de Novembro de 1992)
entendeu-se que 'para editar normas que visem modificar as regras de
competência judiciária material (ou seja: para modificar as regras atinentes à
distribuição das matérias pelas diversas espécies de tribunais), que o mesmo é
dizer pelos diferentes tribunais dispostos horizontalmente (no mesmo plano), sem
que, por conseguinte, haja entre eles relação de supraordenação e subordinação,
o Governo tem de estar munido de autorização legislativa' e que na aludida
reserva legislativa 'há-de incluir-se, sem dúvida, a definição da competência
dos tribunais (maxime, dos tribunais judiciais) ratione materiae',
exemplificando com a distribuição de matérias 'pelos tribunais de competência
genérica e pelas diferentes espécies de tribunais de competência especializada'.
Na mesma linha, lê-se no citado Acórdão nº 367/92 que 'quando em causa estiver a
repartição de competências entre tribunais, há aí um relevo ou importância
bastante justificadores da existência de um debate parlamentar sobre a matéria,
subordinando a solução às regras entendidas serem de perfilhar pela maioria,
pelo que, neste contexto, a questão não poderá deixar de se inscrever como
estando inserida no âmbito da reserva de lei formal'.
16. Verifica-se, portanto, que o Tribunal Constitucional tem
entendido que se inscreve na reserva parlamentar pelo menos a questão da
competência em razão da matéria, a qual se prende com a distribuição de matérias
pelos diversos tribunais dispostos horizontalmente (cf. Manuel de Andrade,
Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 94, e Antunes Varela, Manual de
Processo Civil, 2ª ed., 1985, p. 207).
Por outro lado, as normas que regem directamente a competência em
razão da hierarquia ou funcional - que consiste na repartição de funções entre
ordens de tribunais dispostos verticalmente, dentro da mesma espécie ou
categoria e dentro da mesma causa (cf. Manuel de Andrade, ob.cit, p. 98, e
Antunes Varela, ob.cit., p. 212) - limitam-se a determinar que cabe aos
tribunais superiores 'julgar recursos' (cf. artigos 71º, alínea a), e 72º,
alínea a), do Código de Processo Civil e 28º, nº 3, alínea a), e 41º, nº 1,
alínea a), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais).
A subsequente determinação dos casos em que tem lugar recurso
depende de normas que, em primeira linha, disciplinam requisitos ou pressupostos
de admissibilidade de recursos e não de normas de competência propriamente
ditas, embora delas resulte, indirectamente, a delimitação dos casos de
intervenção dos tribunais superiores. Ora, essas normas definidoras de condições
de admissibilidade de recursos são normas de indiscutível carácter processual e
só num plano mediato se repercutem na delimitação da competência dos tribunais
superiores - escapando, portanto, ao âmbito da reserva parlamentar.
17. Este é, aliás, o entendimento mais recentemente expresso pelo
Tribunal Constitucional. A propósito da apreciação da eventual
inconstitucionalidade orgânica do artigo 46º, nº 1, do Código das Expropriações,
que proíbe o recurso das decisões da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça,
e sobre a questão de saber se o Governo podia, através de decreto-lei
autorizado, excluir o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, diz-se no
Acórdão nº 330/91 (Diário da República, II, de 15 de Novembro de 1991) que 'não
estando a norma em apreciação a regular específica e autonomamente a matéria de
competência do Supremo Tribunal de Justiça, mas disciplinando apenas os
requisitos ou pressupostos de admissibilidade de recursos, num processo cível
especial, matéria de simples carácter processual, o Governo podia criar a norma
impugnada'.
Utilizando a mesma fundamentação, pode agora concluir-se que a norma
do parágrafo único do artigo 15º do Decreto nº 37.021, na redacção do Decreto
Regulamentar nº 1/86, não versa sobre matéria relativa à 'competência dos
tribunais'. Essa norma reporta‑se a matéria de processo civil, que não se
encontra reservada à Assembleia da República. Assim, tal norma não viola o
disposto na alínea q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição.
III
Decisão
18. Nestes termos, decide-se não atender à questão prévia suscitada
pela recorrida e julgar improcedente o presente recurso, confirmando, em
consequência, a decisão recorrida, na parte respeitante à questão de
inconsticionalidade suscitada.
Lisboa, 30 de Maio de 1995
Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
José Manuel Cardoso da Costa