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Proc.nº 653/95
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional :
I A CAUSA
1. Na Comarca de Coimbra (3º Juizo Criminal, 1ª Secção) foram os arguidos A e B, ambos agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP), julgados em processo comum afecto ao Tribunal singular, sendo condenados pela prática de um crime de ofensas corporais simples previsto e punido pelo artigo
142º, nº 1 do Código Penal (CP), na pena, cuja execução foi suspensa por um período de 18 meses, de 7 meses de prisão, cada um.
Suportou factualmente tal condenação o ter-se entendido provada matéria que poderemos sintetizar dizendo que os arguidos, no exercício das suas funções policiais, agrediram, conjuntamente com outros agentes, voluntária e corporalmente, com socos e pontapés, C (também julgado e condenado no mesmo processo), quando este se encontrava detido e algemado, no interior de instalações policiais.
1.1. Desta decisão recorreram os arguidos invocando, entre outros fundamentos, que o artigo 9º, nº 2, alínea b), da Lei nº 15/94, de
11 de Maio (norma em função da qual lhes não foi aplicado o perdão constante do artigo 8º do mesmo diploma) viola o princípio da igualdade plasmado no artigo
13º da Constituição.
Rejeitou o Tribunal da Relação de Coimbra tal entendimento por considerar, no essencial, que :
'o artigo 9º da Lei nº 15/94 nada tem a ver com o artigo 13º da Constituição, porque ali se estabelecem os requisitos e pressupostos da concessão de um pedido de clemência, enquanto que aqui se preceitua a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, que não sai maculada por o poder estadual entender, legitimamente, que em certos casos, o direito de graça deve sofrer uma limitação.'
Este ponto de vista levou, em conjunto com a consideração de serem improcedentes os restantes fundamentos do recurso, à integral confirmação da sentença da 1ª Instância.
1.2. É nesta sequência que aparece o presente recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, em que se pede a este Tribunal a fiscalização concreta da conformidade constitucional do referido artigo 9º, nº 2, alínea b), da Lei nº 15/94.
Formulam neste recurso, os arguidos A e B, culminando as respectivas alegações, as seguintes conclusões :
1ª Aos recorrentes deveria ter sido aplicado o perdão prescrito na alínea d) do nº 1 do artigo 8º da Lei 15/94 de 11 de Maio. Na verdade :
2ª O artigo 9º, nº 2, alínea b) deste normativo, ao excluir a aplicação de tal benefício aos agentes da autoridade nos termos em que o faz, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei previsto no artº 13º da Constituição da República. De facto :
3ª A aceitar-se a sua validade legal e constitucional estar-se-á a criar profunda desigualdade em função da actividade profissional, olvidando-se existirem outras profissões de interesse público, não excluidas dos benefícios da amnistia, em que os direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos podem ser gravemente ofendidos. Aliás:
4ª Paradigmático de tal situação é o caso de um Magistrado Judicial, acusado de prisão ilegal no exercício de funções (...), que viu o procedimento criminal contra si instaurado ser declarado extinto precisamente por efeitos da ... lei da amnistia de 11 de Maio (cfr.Ac.Relação de Évora de 14/3/95, in C.J. Ano XX, Tomo II, pág. 274 e seguintes). Acresce que :
5ª Se o ilícito dos autos se tivesse passado com militares ou com a polícia militar, seria declarada perdoada a pena, por tais profissões não estarem abrangidas pela norma em crise.
6ª Igualmente se os recorrentes fossem 'polícias' da GNR, que ainda patrulha muitas zonas do país, mais concretamente as rurais, e atendendo ao estatuto
'militar' desta instituição, aliás consignado na lei, veriam ser perdoada a pena que lhes foi aplicada por efeitos da lei de clemência anteriormente referida.
7ª O conteúdo jurídico-constitucional do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da nossa Constituição abrange, entre outros elementos a 'proibição do arbítrio'; a proibição de discriminações' e a 'obrigação de diferenciação'
(...)
8ª Tais elementos obrigam o legislador a tratar o igual como igual e o diferente como diferente, sendo certo que dentro do diferente deverá, sempre, existir igualdade na diferença. Ora :
9ª A vontade do legislador ao consagrar a norma em análise, foi de excluir do perdão de penas previsto na lei 15/94 os crimes cometidos por uma categoria de cidadãos cujas profissões os obrigam a especiais deveres e cuidados. Porém :
10º Olvidou-se de as tratar em igualdade de circunstâncias, não incluindo no referido normativo, como se viu, profissões de interesse público cujo exercício pode, de igual forma, contender com os direitos, liberdades e garantias do cidadão.
11ª Encontram-se nesta situação, e só para mencionar algumas, as de Magistrado Judicial; Magistrado do Ministério Público, Advogado, Funcionário Judicial, Soldados da GNR; Militares ...
12ª Se a desigualdade geral, nos termos expostos, é admissível, já a descriminação profissional relatada é manifestamente inaceitável por inconstitucional.
13ª O legislador ao proibir a aplicação da Lei 15/94 apenas a algumas das pessoas que exercem determinadas profissões que podem contender com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, não estendendo tal proibição a outras pessoas cujo exercício profissional pode contender, nos mesmos termos, com tais direitos, liberdades e garantias, criou uma norma discriminatória em flagrante violação dos artigos 13º e 18º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa.
O Ministério Público, por sua vez conclui, nas suas contra-alegações
: A norma da alínea b) do nº 2 do artigo 9º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, enquanto estabelece que não beneficiam do perdão decretado por essa mesma Lei, os membros das forças policiais e de segurança, relativamente à prática, no exercício das suas funções, de delitos que constituam violação de direitos, liberdades ou garantias dos cidadãos, independentemente da pena, não viola qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente, o nº 3 do artigo 18º ou o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
Com dispensa de vistos (sendo certo ter o Tribunal critérios definidos sobre a questão suscitada neste processo: v.Acórdãos nºs 42/95; 152/95 e 519/95), cumpre decidir.
II FUNDAMENTAÇÃO
2. A pena de 7 meses de prisão, em que os recorrentes foram condenados, estaria, na hipótese de se tornar efectiva, integralmente perdoada, nos termos do artigo 8º, nº 1, alínea d), da Lei nº 15/94, não fora a circunstância de estes serem membros de uma força policial e terem praticado, no exercício de funções, ilícito criminal que constituíu violação do direito à integridade física do ofendido, preenchendo-se, assim, a exclusão do perdão de pena constante do questionado artigo 9º, nº 2, alínea b) da citada Lei de Amnistia.
Recentemente, entre outros através do Acórdão nº 152/95, publicado no Diário da República - II Série de 20 de Junho de 1995, teve este Tribunal e esta Secção ensejo de se pronunciar, unanimamente, pela conformidade constitucional, designadamente face ao princípio da igualdade, de outra das exclusões do perdão de penas constante da Lei nº 15/94 (a do nº 3, alínea d) do mesmo artigo 9º, relativa aos 'condenados pela prática de crimes contra as pessoas a pena de prisão superior a 10 anos, que já tenha sido reduzida por perdão anterior').
Não obstante a argumentação aí desenvolvida ser em largos trechos transponível para a situação aqui em causa, procederemos a uma ponderação especifica da exclusão do perdão que afecta os membros das forças policiais e de segurança, à luz dos princípios (intimamente ligados) da igualdade e proporcionalidade, decorrentes dos artigos 13º e 18º, nº 2 da Constituição, habilitados que estamos a fazê-lo pela invocação, a tempo e por forma relevante, da inconstitucionalidade da norma contendo essa exclusão.
2.1. No que ao perdão se refere, a Lei nº 15/94, é a primeira Lei da Amnistia a conter uma exclusão relativa a autoridades policiais. As duas amnistias que a precederam continham apenas essa exclusão relativamente
à amnistia propriamente dita (v.artigos 7º e 15º a contrario da Lei nº 23/91 de
4 de Julho e artigos 6º e 14º também a contrario da Lei nº 16/86 de 11 de Junho), aquela que, usando a expressão de Beleza dos Santos, é frequentemente referida como amnistia própria, respeitante ao próprio crime e não à sua consequência jurídica, como é o caso do perdão genérico, também referido como amnistia imprópria [v.Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II. As consequências jurídicas do crime, Lisboa 1993, pgs. 688/691; no texto actual do CP (introduzido pelo DL nº 48/95, de 15 de Março) distingue-se expressamente a amnistia do perdão genérico (artigos 127º e 128º, nºs 2 e 3), contrariamente ao que sucedia na versão anterior (artigo 126º, nº 1) : v. a discussão deste aspecto nos trabalhos da Comissão de Revisão, in Código Penal. Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Lisboa 1993, págs. 176 e 179/183].
A intencionalidade destas exclusões, reforçadas com a extensão ao perdão pelo diploma de 1994, prende-se seguramente com o fenómeno do abuso de autoridade e especificamente com a questão da chamada 'violência policial'. O grande impacto público adquirido por este fenómeno ao tempo da edição destas leis, foi reforçado em 1993 com a inclusão de Portugal no relatório anual da Amnistia Internacional de 1993 (v.Amnistia Internacional, Informe 1993, edição completa em espanhol, Madrid 1993, págs 258/259 e Amnistia Internacional, Relatório Anual 1993, Excertos, edição em português, Lisboa 1993, págs 44/45), descrevendo-se aí (cobrindo o período de Janeiro a Dezembro de 1992) alegações generalizadas e diversas situações concretas de violência e maus tratos por parte de elementos de forças policiais (PSP, GNR e PJ) no exercício de funções, particularmente sobre pessoas em situação de detenção e no interior de instalações policiais. Como sublinha o Ministério Público, situações como a descrita neste processo têm mesmo sido objecto de denuncia pública por parte do Provedor de Justiça e originado a prestação de esclarecimentos por Portugal
(como sucedeu em Maio de 1993) ao Comité das Nações Unidas contra a tortura (v. Helena Lopes, Sinfonia em «Toma-Lá» Maior, jornal 'O Independente' de 16/7/93 e José Augusto Seabra, Tortura e Impunidade ..., jornal 'Expresso'de 10/12/93).
A teleologia da norma aqui questionada tem, assim, que ver com um problema real, relativamente ao qual o Estado, como Estado de direito democrático, sente uma justificada necessidade de intervenção, promovendo objectivos de inegável relevância constitucional como sejam a subordinação dos agentes policiais à Constituição e à lei (artigo 266º da Constituição) e a necessidade de que as medidas de polícia e a actuação policial em geral se pautem por um escrupoloso respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (artigo 272º da Constituição). No caso, esse objectivo é promovido pelo acentuar da necessidade da pena nas situações, como esta, envolvendo um grupo específico de pessoas (membros das forças policiais e de segurança ou funcionários e guardas dos serviços prisionais) numa situação específica (no exercício das suas funções) face a comportamentos criminais específicos (aqueles que constituam violação de direitos, liberdades ou garantias pessoais dos cidadãos).
2.2. Importa aqui abordar, pois isso será importante no ulterior processo argumentativo, um aspecto particular focado pelos recorrentes, ao aludirem nas suas alegações, com correspondência nas conclusões 5ª e 6ª, a uma alegada exclusão de outros elementos exercendo funções policiais do domínio de aplicação da norma questionada, caso dos elementos da GNR e da chamada
'polícia militar'. Tal interpretação, porém, não tem qualquer sentido resultando de uma leitura distorcida do nº 2, alínea b) do artigo 9º.
A Guarda Nacional Republicana é uma 'força de segurança' que no
âmbito da sua 'missão geral' desempenha funções de natureza policial, que é considerada, expressamente, como 'orgão de polícia criminal' e 'autoridade de polícia', dependendo quanto à 'execução do serviço decorrente da sua missão geral' do Ministro da Administração Interna (v.artigos 1º, 2º, 4º, 5º 6º, 7º e
9º nº 1 do DL nº 231/93, de 26 de Junho), apenas dependendo do Ministro da Defesa Nacional 'no que respeita à uniformização e normalização da doutrina militar, do armamento e do equipamento' e só 'em caso de guerra ou em situação de crise' é colocada na 'dependência operacional' do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (artigo 9º, nº1, alínea b) e nº 2 da DL nº 231/93).
Daí que a aplicação do trecho normativo aqui constitucionalmente questionado aos elementos da GNR, venha sendo afirmada, na hipótese do cometimento por estes no exercício de funções de crimes dolosos que constituam violação de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, pela jurisprudência do Supremo Tribunal Militar (v. por exemplo, o Acórdão de 8/6/94, na Colecção de Acórdãos, 1º Vol. págs. 177 a 179).
Da mesma forma, relativamente a um militar exercendo funções de natureza policial (será o caso dos elementos da Polícia do Exército, Naval ou Aérea), o cometimento no exercício dessas funções policiais de crimes que preencham o condicionalismo do trecho final da alínea b) do artigo 9º, nº 2 (por exemplo um crime, essencialmente militar, de abuso de autoridade, previsto e punido pelo artigo 88º do Código de Justiça Militar) não deixará de conduzir a uma exclusão, ao abrigo da norma aqui em causa, do perdão decorrente do artigo
8º da Lei nº 15/94.
A disposição que os recorrentes impugnam, constroi-se em torno de um conceito de função - a função policial e de segurança (que os guardas prisionais também exercem num universo específico) - e não por referência a um estatuto pessoal. Cai, assim, pela base a argumentação dos recorrentes de que colectivos profissionais em situação igual são tratados de forma desigual; obviamente que não estão em situação igual, tomando por referência a função relevante para a exclusão em causa e a intencionalidade atrás referida dessa exclusão, outros colectivos profissionais indicados pelos recorrentes (Magistrados Judiciais e do Ministério Público, Advogados e Funcionários Judiciais).
2.3. Assentes estes pressupostos estamos habilitados a posicionar a norma cuja inconstitucionalidade se invoca face às normas constitucionais alegadamente violadas.
Fixada a extensão e a 'causa' da norma contendo a exclusão, importa agora frisar que a legitimação constitucional desta, designadamente face ao princípio da igualdade, tem como parâmetro aferidor a totalidade dos fins do Estado, legítimos num Estado de direito, não se restringindo aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado, valendo aqui também razões de conveniência pública e a razão de Estado (José de Sousa e Brito, Sobre a Amnistia, in Revista Jurídica, 6/1986, págs.43/44). Porém - como se acentuou neste mesmo estudo - , 'o princípio de igualdade, tratando-se aqui da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia como pelo perdão, são alargados - como são restringidos pela aplicação das sanções - impede desigualdades de tratamento' o que significa, 'relativamente à configuração concreta de cada norma', que a 'delimitação dos factos amnistiados' (no caso excluídos do perdão) 'tem que ser feita segundo critérios susceptíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias, mas razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de direito' (ibidem).
Da caracterização atrás feita da norma de exclusão, resulta que se não está perante situações escolhidas (excluídas) de forma arbitrária, nomeadamente quanto ao universo pessoal abrangido, e que o fim visado se mostra razoável tendo por referência os fins aceitáveis num Estado de direito: como não podem deixar de o ser fins inequivocamente promocionais dos dispositivos constitucionais atinentes ao exercício da função policial.
O princípio da igualdade e da proporcionalidade mostram-se assim, respeitados, não só porque a norma se constrói em torno de uma categoria onde encontramos um denominador comum, como também porque a diferenciação que introduz, além de explicável na base de um critério de ponderação de interesses, se faz relativamente a situações que, não tendo na base esse denominador comum, constituem situações diferentes.
Não se verifica, pois, contrariamente ao que defendem os recorrentes
- e esta é a conclusão do Tribunal Constitucional - violação dos princípios constitucionais da igualidade e proporcionalidade resultantes dos artigos 13º e
18º nº 2.
III DECISÃO
3. Pelo exposto, negando-se provimento ao recurso, confirma-se, no que ao julgamento de constitucionalidade respeita, a decisão recorrida.
Lisboa, 7 de Fevereiro de 1996 José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Bravo Serra Luis Nunes de Almeida