Imprimir acórdão
Proc. nº 395/89
1ª Secção
Rel. Cons.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - No Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa, o Ministério Público
deduziu acusação contra A .... e J..., imputando ao primeiro o cometimento de
sete crimes de emissão de cheque sem provisão, e ao segundo, um crime do mesmo
tipo, em co-autoria com aquele [Decreto-Lei nº 13004, de 12 de Janeiro de 1927,
artigos 23º e 24º, nºs. 1 e 2, alíneas a) e c), com a redacção do Decreto-Lei nº
400/82, de 23 de Setembro].
O senhor juiz, em despacho de 10 de Julho de 1987, recebeu a
acusação e designou dia para julgamento. Depois, o primeiro arguido deduziu a
excepção de incompetência territorial do Tribunal da Comarca de Lisboa para
conhecer das infracções que lhe eram imputadas. Defendeu, assim, que a norma do
artigo 9º do Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro, determina que o tribunal
competente para conhecer do crime de emissão de cheque
sem provisão é o da comarca em que se situa o estabelecimento de crédito sacado
e não a daquele em que o cheque foi apresentado para cobrança ou depósito. E
afirmou, então, que o tribunal competente era, no caso, o da comarca de Coimbra.
A excepção foi julgada improcedente, em despacho do senhor juiz, de
16 de Março de 1988. Então, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da
Relação de Lisboa, reiterando a tese que antes defendera e que o Ministério
Público na 1ª instância rebatia, em contra-alegações [a sustentar que era a
norma do artigo 45º do Código de Processo Penal - e não a do artigo 9º do
Decreto-Lei nº 14/84 - que devia ser aplicada ao caso, e que ainda que assim não
fosse, esta segunda norma não devia ser interpretada no modo como o fazia o
recorrente].
Na Relação, o processo foi com vista ao Ministério Público, que
afirmou:
'Aderimos, inteiramente, às alegações do M.P. junto da 1ª instância,
sem necessidade de reproduzir reforço de argumentação no sentido da correcta
aplicação do direito operada pelo douto despacho recorrido.
Assim, não deverá ser dado provimento ao recurso, declarando-se
competente o 2º juizo criminal (2ª secção) da Comarca de Lisboa'.
Em acórdão de 1 de Março de 1989, a Relação de Lisboa negou
provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida. Considerou, aí, que a
norma sobre competência aplicável ao caso era a do artigo 45º do Código de
Processo Penal, em razão de os crimes se haverem consumado antes do início de
vigência do Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro, e que, mesmo a ser convocada
a norma do artigo 9º deste decreto-lei, seria ainda competente o Tribunal
Criminal da Comarca de Lisboa. É que - disse a Relação - o Assento de 16-11-88
fixou, quanto a essa norma, o sentido de que para conhecer do crime de emissão
de cheque sem provisão, é competente o tribunal da comarca 'onde se situa o
estabelecimento de crédito em que o cheque foi apresentado para cobrança ou
depósito, ainda que não seja aquele onde se situa a conta sacada'. Depois,
concluiu, afirmando a competência do Tribunal da Comarca de Lisboa e referindo-a
à norma do artigo 45º do Código de Processo Penal.
O arguido A ... recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de
Justiça. Em alegações, suscitou a questão de constitucionalidade do artigo 664º
do Código de Processo Penal de 1929, com base em que o Ministério Público na
Relação tivera visto e emitira parecer no processo, e também a questão de
constitucionalidade do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Novembro
de 1988. Esta questão confrontou-a com o artigo 115º da Constituição [se bem
que fora das conclusões] e o assento referiu-o às normas que o fundam, do artigo
2º do Código Civil e do artigo 668º § único do Código de Processo Penal de 1929.
O Ministério Público na Relação de Lisboa contra-alegou, afirmando
que não era inconstitucional a norma do artigo 664º do Código de Processo Penal,
na interpretação que lhe foi dada no processo, e que não era também
inconstitucional o Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Novembro de
1988.
Esta tese viria a ser reiterada no visto do Ministério Público no
Supremo tribunal de Justiça, sobre um quadro argumentativo que lhe não traz
inovações substanciais.
O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 10 de Novembro de 1989,
negou provimento ao recurso. Sobre a norma do artigo 664º do Código de Processo
Penal de 1929, afirmou essencialmente:
'(...) O que pode ser ou não inconstitucional é a interpretação e o
uso que dela se façam. Se se lhe der uma interpretação no sentido de permitir
que o M.P., sem posterior audição da parte contrária, ofereça parecer com novos
argumentos de que o arguido não tenha conhecimento e que possam prejudicar a
defesa, a disposição será inconstitucional. Se porém a disposição for
interpretada e usada no sentido de dar ao M.P. conhecimento da transmissão dos
autos, e mesmo de aderir à posição assumida pelo M.P. no Tribunal inferior, a
que o arguido já respondeu, ou até a suscitar questões inócuas para a defesa,
não enfermará ela de inconstitucionalidade'.
(...)
'Dentro deste entendimento do artigo 664º do Código de 1929, e
examinando o parecer do Ministério Público no seu visto no Tribunal da Relação,
constata-se que, na realidade, se limitou à adesão às alegações do M.P. na
primeira instância, nada tendo dito que represente acrescentamento
significativo.
O mesmo se poderá dizer a propósito do parecer do M.P. já neste
Supremo Tribunal onde, embora mais desenvolvidamente, se tecem considerações
que não excedem o âmbito das do M.P. no tribunal inferior e sobre as quais o
recorrente já tomou posição. Por isso mesmo, o relator não seguiu a prática que
tem seguido em outros processos, de determinar a entrega de cópia do parecer ao
recorrente, para que possa responder no prazo que lhe é assinado'.
E sobre o instituto dos assentos, o Supremo Tribunal de Justiça
afirmou que 'circunscrevendo-se a sua força obrigatória a uma força obrigatória
intra-muros do poder judicial e, portanto, retirando aos assentos eficácia
externa ou força obrigatória geral' eles seriam conformes à Constituição, e
também que:
'(...) No caso sub judicibus o assento de 16 de Novembro de 1988 foi
acatado por um tribunal judicial, perante o qual tinha força obrigatória, força
esta que não contraria qualquer preceito da lei fundamental.
Indagar se o assento tinha ou não força obrigatória perante
quaisquer outros orgãos ou entidades que não os tribunais judiciais seria
questão impertinente neste processo ; tal questão portanto não pode aqui ser
tratada, já que, inconstitucional ou não a força dos assentos externa aos
próprios tribunais judiciais, isso em nada alteraria a solução do caso sub
judicibus. Aqui, neste processo, importa tão-só apreciar como se apreciou - e
decidir - como se decide, que não viola qualquer preceito
constitucional, designadamente os que o recorrente invocou, a força obrigatória
dos assentos do Supremo Tribunal de Justiça perante os tribunais judiciais.
Subsequentemente, também quanto a esta questão o recurso improcede
(...) já que não pode ser denegada a aplicação do assento'.
É deste acórdão que o arguido vem interpor recurso para o Tribunal
Constitucional. O objecto delimita-o nas normas do artigo 664º do Código de
Processo Penal de 1929 e do artigo 2º do Código Civil. E conclui, assim, em
alegações:
'1º - O PARECER emitido pelo M.P., junto dos Tribunais Superiores,
a 'propósito' do visto a que alude o art. 664º C.P. Penal 29 é materialmente
inconstitucionalmente, seja qual for, da prespectiva quantitativa, a amplitude
que assuma, por colocar as 'partes' em posições desiguais, com violação do
disposto no artigo 32º, nº 1 e 5 da Constituição da República.
2º - A estrutura acusatória que a Constituição impõe ao processo
penal, faz com que este se aproxime de um processo de parte. O que de resto tem
sido reconhecido. Ainda, recentemente, FIGUEIREDO DIAS referiu que um Relatório
elaborado por um pautado elenco de Professores de processo penal, reconhecem que
o C.P.Penal 1987, confirmando a directriz constitucional, é de, entre os
Códigos modernos, o que mais concessões faz ao modelo processual-penal
anglo-saxónico.
3º- se o M.P. fosse um órgão de actuação necessariamente pautada por
critérios de objectividade, não se justificaria a actividade jurisdicional.
4º - Atenta a estrutura acusatória do processo penal português, a
posição do M.P. terá de ser sempre, ao menos, no rigor dos princípios, de parte
interessada. Consequentemente
5º - não é por acaso que o M.P. é o titular da acção penal e o
representante da pretensão punitiva do Estado. Logo,
6º - aquando do visto a que se reporta o art. 664º C.P. Penal 29, se
o M.P. não se limitar a escrever, no processo 'visto' - tirante os casos de
promoção da reformatio in pejus nos quais o contraditório está devidamente
assegurado na lei
- o Parecer vai colocar o M.P. em situação de supra-ordenação, no tocante à
intervenções processuais, relativamente ao Réu. Aliás,
7º - é um princípio geral do processo penal aquele segundo o qual o
Réu, através do seu Advogado, é sempre o último a alegar.
Ora, se os recursos, tal como se encontram consagrados na lei, coenvolverem
verdadeiros julgamentos - o que não sucede, no entender do recorrente - deveria
ser sempre o réu a ter a última palavra.
8º - Sem prescindir; o Assento invocado nos autos, interpretado e
aplicado pela forma que foi é inconstitucional, por violador do princípio da
separação de poderes.
9º - Acresce que o art. 2º C. Civil viola o disposto no art. 115º da
Constituição. Logo
10º - deve ser declarado inconstitucional o 'instituto' dos
Assentos, ordenando-se que se decida qual o Tribunal competente, sem apelo à
força 'normativa' do Assento invocado como ratio decidendi'.
De seu lado, o Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal conclui,
em alegações, no sentido da não inconstitucionalidade da norma do artigo 664º do
Código de Processo Penal de 1929, e no sentido da inconstitucionalidade da norma
do artigo 2º do Código Civil e do assento de 16 de Novembro de 1988, que dela se
deriva.
II - As normas e a fundamentação
1 - A norma do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, que
determina que 'os recursos, antes de irem aos juízes que têm que os julgar vão
com vista ao Ministério Público, se a não tiver tido antes', foi já, em várias
vezes, analisada pelo Tribunal Constitucional.
A 1ª Secção, no acórdão nº 150/87, D.R., II Série, de 18-09-87,
julgou aquela norma contrária ao artigo 32º, nºs. 1 e 5, da Constituição. A 2ª
Secção, nos acórdãos nºs. 398/89, 495/89, 496/89, 350/91 e 356/91, D.R., II
Série, de 14-09-89, 28-01-91, 1-02-90, 3-12-91, 8-01-92, considerou, antes, que
a mesma norma era susceptível de uma interpretação conforme à Constituição e,
assim, não a julgou inconstitucional. Perante o diferente sentido com que a
questão foi decidida nas duas secções, o Tribunal, com intervenção do Plenário,
e nos termos do artigo 79º-D da Lei nº 28/82, proferiu o acórdão nº 150/93,
D.R., II Série, de 29-09-93. E aqui, com votos de vencido [entre os quais se
inclui o da ora relatora] concluiu 'pela não inconstitucionalidade da norma do
artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, interpretada no sentido de que,
se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar em
termos de poder agravar a posição dos réus, deve ser dada a estes a
possibilidade de responderem'.
Acolhe-se, por isso, a orientação constante do mesmo acórdão que,
neste processo, implica o não provimento do recurso. A decisão de que se
recorre, do Supremo Tribunal de Justiça, deixa claro o próprio entendimento de
que o réu deve ser notificado sempre que o Ministério Público, quando o processo
lhe vai com vista, emita parecer que possa 'prejudicar a sua defesa' e considera
que os vistos do Ministério Público, na Relação e no Supremo, não trazem, no
caso, argumentos novos a alargar o âmbito das alegações do Ministério Público
que antecedem.
Na verdade, confrontando o processo, verifica-se que o Supremo
Tribunal de Justiça não considerou que os vistos do Ministério Público, quer na
Relação quer ali no Supremo, tivessem agravado a situação do réu e não há motivo
para dissentir desse entendimento. Assim, na linha do acórdão nº 150/93, cit.,
deve concluir-se, aqui, no sentido da não inconstitucionalidade da norma do
artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929.
2 - A norma do artigo 2º do Código Civil, em que se funda o assento
do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Novembro de 1988, foi também arguida de
inconstitucional durante o processo e o recorrente, depois, incluiu-a no quadro
de delimitação do objecto do recurso.
Da controversa aplicação ao caso da norma interpretada pelo assento
e, pois, da controversa aplicação do artigo 2º do Código Civil [lembremos a tese
do Ministério Público na 1ª instância e o acórdão da Relação que a reitera] pode
dizer-se que está ultrapassada pela afirmação expressa do Supremo Tribunal de
Justiça: '(...) o assento que vem referido, e que foi aplicado para determinar a
competência para conhecer do processo em que o ora recorrente é arguido (...)'.
Da questão de constitucionalidade do artigo 2º do Código Civil, que
determina que 'nos casos declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio
de assentos, doutrina com força obrigatória geral', deve, pois, aqui,
conhecer-se.
O Tribunal Constitucional analisou já, com intervenção do plenário
e nos termos do artigo 79º-A, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aquela norma
do artigo 2º do Código Civil. No acórdão nº 810/93, D.R, II Série, de 2-3-94,
com voto de vencido da ora relatora, julgou-a inconstitucional, ' na parte em
que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória
geral, por violação do artigo 115º, nº 5, da Constituição'.
Acolhe-se, pois, aqui, a orientação constante do acórdão nº 810/93,
a qual, no processo concreto em apreço - incluindo uma decisão do Supremo
Tribunal de Justiça que aceita a própria vinculação aos assentos - implica,
quanto ao artigo 2º do Código Civil, o provimento do recurso.
É verdade que a decisão recorrida, do Supremo Tribunal de Justiça,
reconhece que o problema da constitucionalidade dos assentos está na sua força
obrigatória geral. Porém, não imprime à mesma locução o sentido que lhe foi
fixado naquele acórdão do Tribunal Constitucional: delimita-o na ordem dos
tribunais judiciais e não deixa expressa ou implícita uma qualquer ideia de
revisibilidade possível dos assentos pelo Supremo Tribunal de Justiça.
III - A decisão
Nestes termos, decide-se:
a) - Não julgar inconstitucional a norma do artigo 664º do Código de
Processo Penal de 1929, 'interpretada no sentido de que, se o Ministério
Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar em termos de poder
agravar a posição dos réus, deve ser dada a estes a possibilidade de
responderem';
b) - Julgar inconstitucional a norma do artigo 2º do Código Civil,
na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força
obrigatória geral, por violação do artigo 115º, nº 5, da Constituição.
E assim:
Conceder provimento ao recurso, apenas quanto à questão de
constitucionalidade decidida em b), em ordem à reforma da decisão recorrida de
harmonia com o presente julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 27 de Junho de 1995
Ass) Maria da Assunção Esteves
Antero Alves Monteiro Dinis
Vitor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
José Manuel Cardoso da Costa