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Proc. nº 827/93
1º Secção
Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I A questão
1 - No Tribunal Judicial da comarca de Mangualde, em processo
sumário, foi julgado J... sob a acusação de no dia 17 de Outubro de 1993, cerca
das 02.20 horas, conduzir numa via pública, em Mangualde, um velocípede com
motor, e, tendo sido submetido ao exame de pesquisa de álcool do ar expirado,
apresentou uma taxa de álcool no sangue de 2,65 gramas por litro.
Considerando como provada a matéria de facto constante do
requerimento acusatório, a respectiva sentença condenou o arguido como autor
material do crime previsto e punido pelo artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº
124/90, de 1 de Abril, recusando porém a aplicação da norma constante do artigo
4º, nº 1 e 2, alínea a) do mesmo diploma, com fundamento na sua
inconstitucionalidade.
Para sustentar esta desaplicação normativa, o senhor juiz
desenvolveu, no essencial, a fundamentação seguinte:
'A Constituição portuguesa e o Código Penal prevêem o princípio da legalidade
das sanções criminais bem como o princípio da inadmissibilidade de as penas
envolverem como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis,
profissionais ou políticos (artºs 27º nº 2 e 30º nº 4 da C.R.P. e artºs 1º e 65º
do C.P.).
A norma ora em apreço prevê uma sanção acessória de inibição do direito de
conduzir que acresce, na terminologia da lei, às penas previstas nos artigos 2º
e 3º do DL 124/90 de 14/4. O legislador designa-a ainda por sanção acessória no
artigo 12º do mesmo diploma. No entanto, também a denomina no próprio nº 4 do
artigo 4º bem como no preâmbulo do mesmo diploma por pena.
O legislador não ignorava a polémica doutrinal sobre a natureza da inibição
do direito de conduzir e parece ter-se decidido pela configuração da sanção como
uma pena.
............................................................. .
Tratando-se, pois, de uma pena acessória com semelhantes características há
que saber da sua admissibilidade face à limitação constitucional do artigo 30º
nº 4 da CRP.
............................................................. .
De tudo se extrai que a pena acessória automática da inibição do direito de
conduzir se confronta com o impedimento constitucional. É que a `assumida
confusão entre as penas acessórias e os efeitos não automáticos da pena
principal', característica do regime de penas acessórias do direito penal
português (vd. Figueiredo Dias, Direito Penal - As consequências jurídicas do
crime, pág. 176) e a consequente relevância da limitação constitucional face a
qualquer efeito automático da pena sofre aqui um ataque claro por parte de uma
previsão legal de uma pena que limita o exercício de um direito civil, acoplada
à aplicação de uma outra principal, ou seja, de uma pena que funciona
acessoriamente e de modo automático.
Pode alegar-se que a previsão de uma moldura penal afasta a crítica, pois
permite que, ainda que de funcionamento automático, intervenha na aplicação da
pena acessória, a ponderação da culpa.
Ao invés disso, o recurso ao princípio da culpa torna ainda mais criticável
o artigo em análise, mostrando outro flanco à censura constitucional.
Com efeito, sendo idêntico o período de inibição previsto para o crime
cometido sob a forma dolosa ou sob a forma negligente, há aí violação do
princípio da culpa. O artigo 4º nº 2 al. a) prevê um mesmo período de inibição
para todo o artigo 2º do mesmo diploma, o que não permite distrinçar as
diferentes culpas, dolosa e negligente, na forma de cometimento do crime.
Mas mais: ao prever-se o período de inibição mínima de seis meses, a
moldura da inibição é superior à própria moldura da pena principal pela prática
do crime na forma negligente, ou seja, a mesma culpa levaria a uma punição na
pena principal desfasada da punição na pena acessória. Só o máximo da pena
principal pelo cometimento do crime na forma negligente permitiria a aplicação
da inibição em período semelhante.
Nada justifica esta disparidade, nem aquela indistinção entre a culpa dolosa
e a negligente, tudo impondo a conclusão de que o preceito em análise viola pois
o princípio da culpa (artigos 1º, 13º nº 1 e 25º nº 1 da CRP) e o princípio da
proporcionalidade das sanções criminais (artigo 18º nº 2 e 88º nº 1, por
identidade de razão, ambos da CRP).'
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2 - Desta decisão, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nºs 1,
alínea a) e 3 da Constituição e 70º, nº 1, alínea a) e 72º, nº 3, da Lei nº
28/82, trouxe o Ministério Público recurso obrigatório constitucionalidade a
este Tribunal.
Nas alegações entretanto oferecidas pelo senhor Procurador-Geral
Adjunto, traçou-se o seguinte quadro conclusivo:
'1º - Não pode considerar-se como efeito automático da condenação por certo
tipo legal de crime a imposição de uma sanção acessória, mediante decisão do
juiz, que se encontra habilitado a graduar a medida concreta daquela, em função
da ponderação das circunstâncias do caso.
2º - O regime estatuído no artigo 4º nºs 1 e 2, alínea a), não ofende o
disposto no artigo 30º, nº 4, da Constituição, nem envolve qualquer infracção
aos princípios constitucionais da culpa e da proporcionalidade das sanções
criminais.
3º - Termos em que deve proceder o presente recurso, determinando-se a
reforma da decisão recorrida, em conformidade com o juízo de constitucionalidade
das normas desaplicadas.'
O recorrido não produziu contralegação.
Passados os vistos de lei, cumpre apreciar e decidir.
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II A fundamentação
1 - Editado pelo Governo a coberto da delegação legislativa
constante da Lei nº 31/89, de 23 de Agosto, o Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de
Abril, veio criar um novo ilícito de carácter penal, passando a considerar-se
como crime a condução de veículos com ou sem motor em via pública ou equiparada,
por quem apresentar uma taxa de alcóol no sangue igual ou superior a 1,20 gramas
por litro.
Regendo sobre este tipo legal de crime e sobre as sanções que lhe
correspondem, os artigos 2º e 4º daquele último diploma, na parte que aqui
importa reter, dispõem assim:
Artigo 2º
(Crime)
1 - Quem conduzir veículos, com ou sem motor, em via pública ou equiparada,
apresentando uma TAS igual ou superior a 1,20 g/l será punido com pena de prisão
até um ano ou multa até 200 dias, se pena mais grave não for aplicável.
2 - Se o facto for imputável a título de negligência, a pena será de prisão
até seis meses ou multa até 100 dias.
Artigo 4º
(Inibição da faculdade de conduzir)
1 - Às penas previstas nos artigos 2º e 3º acresce a sanção acessória de
inibição da faculdade de conduzir.
2 - A inibição terá a seguinte duração:
a) Seis meses a cinco anos nos casos previstos no artigo 2º.
................................................
....................................................
Na decisão recorrida recusou-se a aplicação da norma do artigo 4º,
nº 2, alínea a), com fundamento na sua inconstitucionalidade, traduzida na
violação do artigo 30º, nº 4, bem como na violação do 'princípio da culpa
(artigos 1º, 13º, nº 1 e 25º nº 1, da Constituição) e do princípio da
proporcionalidade das sanções criminais (artigos 18º, nº 2 e 88º, nº 1, por
identidade de razão, ambos da Constituição'.
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2 - Em conformidade com o disposto no artº 30º, nº 4, da
Constituição, 'nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer
direitos civis, profissionais ou políticos'.
A proibição dos efeitos necessários das penas assim
constitucionalmente imposta traduz-se em que à condenação em certas penas não
se possa acrescentar de forma automática, independentemente de decisão
judicial, por efeito directo da lei (ope legis), uma outra pena que acarrete a
perda de direitos civis, profissionais ou políticos.
A teleologia intrínseca desta norma consiste em retirar às penas
efeitos estigmatizantes, impossibilitadores da readaptação social do
delinquente e impedir que, de forma mecânica, sem atender aos princípios da
culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, se decrete a morte civil,
profissional ou política do cidadão (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 198).
Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência
deste Tribunal em termos de se acentuar que a perda de direitos civis,
profissionais ou políticos, como efeito necessário da pena, 'não pode
produzir-se ope legis ou, por outras palavras, não pode provir directamente da
lei' (cfr. por todos o acórdão nº 224/90, Diário da República, I série, de 8 de
Agosto de 1990).
Será que, à luz das considerações antecedentes, a norma desaplicada
na decisão sob recurso pode haver-se como violadora daquele preceito
constitucional?
Ao crime previsto no artigo 2º do Decreto-Lei nº 124/90,
correspondem as penas de prisão e multa previstas no artigo 2º, às quais acresce
a 'sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir' por força do que se
dispõe no artigo 4º, nºs 1 e 2.
Simplesmente, sendo certo que a faculdade de conduzir veículos
automóveis constitui um direito civil, não pode afirmar-se neste quadro
normativo, a existência de uma pena acessória provindo directamente da lei
através de um funcionamento mecânico e automático.
Com efeito, e ao contrário da situação contemplada no acórdão nº
224/90 - o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, por violação do artigo 30º, nº 4, da Constituição, das normas
do artigo 46º, nº 2, alíneas a), b), c), e) e f), do Código da Estrada, aprovado
pelo Decreto-Lei nº 39672, de 20 de Maio de 1954, nos termos das quais a
condenação por crimes de certa natureza ou em penas de determinada espécie, e
ainda a declaração como delinquente habitual ou por tendência, implicava
necessária e automaticamente a proibição de conduzir veículos automóveis
enquanto não tivesse lugar a reabilitação prevista na lei - a inibição da
faculdade de conduzir considerada no Decreto-Lei nº 124/90, importa sempre uma
aplicação jurisdicional que, depois de avaliar as circunstâncias do caso
concreto há-de graduar a duração da medida de inibição entre os limites de seis
meses a cinco anos ali estabelecidos.
A inibição que vier a ser decretada não se apresenta como algo de
automaticamente proveniente da lei que o juiz se limita a declarar para efeito
do seu cumprimento e execução.
Ao contrário, a imposição desta sanção acessória pressupõe no plano
da sua própria definição a intervenção mediadora do juiz que, atendendo às
circunstâncias do caso com base num juízo de avaliação da culpa do agente
(artigo 72º do Código Penal) vai fixar os limites da sua duração.
Por outro lado, e decisivamente, a pena acessória de inibição da
faculdade de conduzir não se apresenta na situação em apreço como algo de
estranho e dissociável da conduta geradora da responsabilidade criminal.
Na verdade, entre o facto ilícito causador desta responsabilidade -
a condução de veículos sob influência de uma determinada taxa de álcool no
sangue - e a inibição da faculdade de conduzir, verifica-se uma manifesta
conexidade, em termos de se poder afirmar que 'é por ter violado de forma
intensa os seus deveres enquanto condutor que o agente é privado temporariamente
da faculdade legal de conduzir'.
Compreende-se assim que em infracções desta natureza o legislador
preveja a aplicação da pena acessória de inibição da faculdade de conduzir, como
se de uma pena principal se tratasse, resultando a sua aplicação da prova da
prática do facto ilícito e da culpa, sem necessidade de se fazer demonstração de
factos adicionais (cfr. neste sentido o acórdão do Tribunal Constitucional nº
143/95, de 15 de Março, ainda inédito).
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3 - À desaplicação da norma do artigo 4º, nº 2, alínea a) do
Decreto-Lei nº 124/90, fundou-se também na violação dos princípios da culpa e da
proporcionalidade das sanções criminais.
Mas, tem-se por seguro que o regime sancionatório ali estabelecido
não ofende qualquer destes princípios.
A circunstância de a medida abstracta da sanção acessória de
inibição de conduzir - seis meses a cinco anos - ser a mesma quer se trate de
comportamentos dolosos ou culposos, não impedirá o julgador de, atendendo às
circunstâncias do caso e ao grau da culpa do agente, fixar diferentemente a
respectiva pena consoante se mostre confrontado com uma conduta dolosa ou
simplesmente negligente.
Não sendo constitucionalmente imperativo que as medidas das penas
principais e das penas acessórias aplicáveis a certo comportamento hajam
necessariamente de coincidir na sua expressão numérica, é irrelevante que os
limites mínimo e máximo abstractamente previstos para a sanção acessória de
inibição da faculdade de conduzir sejam desconformes ou mesmo superiores (no
caso da negligência) aos limites estabelecidos para a pena de prisão (prisão até
um ano ou até seis meses, consoante o facto seja imputável a título de dolo ou
de negligência).
Por outro lado, a especial gravidade social do comportamento aqui
previsto - condução sob a influência do alcóol com taxa de alcóol no sangue
superior a 1,20 g/l - torna inteiramente adequada a sanção acessória com os
limites estabelecidos no artigo 4º, nº 2, alínea a), justificados não só pela
natureza da conduta, como também pela perigosidade dela decorrente.
No já referenciado acórdão nº 143/95, sustentou-se idêntico
entendimento, aduzindo-se, além de outras, as considerações seguintes:
'Efectivamente, nada autoriza a pensar que o número de dias da moldura
abstracta da inibição tenha de ser idêntico ao número de dias da prisão ou ao da
multa. Aliás, nem mesmo entre a prisão e a multa pode ser feita uma equivalência
deste tipo: apesar de a lei estabelecer critérios para a substituição da prisão
por multa (artigo 43º do Código Penal) e para a determinação da prisão
alternativa (artigo 46º, nº 3, do Código Penal), nunca pode haver uma igualdade
entre as molduras abstractas respectivas, desde logo porque a lei começa por
fixar em geral o mínimo da multa em 10 dias e o mínimo da prisão em 30 dias
(artigos 40º, nº 1, e 46º, nº 1, do Código Penal) e estatui em especial limites
mínimos e máximos muito diversificados'.
Assim, e pelo exposto, há-de afirmar-se que a norma desaplicada na
decisão recorrida não sofre de qualquer das inconstitucionalidade que ali lhe
foram assacadas.
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III - A decisão
Nestes termos, não julgando inconstitucional a norma do artigo 4º,
nº 2, alínea a) do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, decide-se conceder
provimento ao recurso e determinar a reforma da sentença impugnada em
conformidade com a presente decisão.
Lisboa, 16 de Maio de 1995
Ass) Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
Vitor Nunes de Almeida
Maria Fernanda Palma
Armindo Ribeiro Mendes
José Manuel Cardoso da Costa