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Procº nº 489/93 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I- Relatório.
1. A., propôs, em 30 de Outubro de 1984, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, uma acção ordinária contra o B. e sua mulher, C., para obter a devolução do ------º andar do nº -------- da Avª --------------- e ainda uma indemnização de 40.000$00 por mês, desde 19 de Março de 1984 - data do alegado incumprimento, pelos réus, do contrato-promessa que justificou a ocupação do imóvel -, até à data da entrega efectiva deste.
2. Tendo falecido o réu marido (em 30 de Maio de 1985) e falhado (em 10 de Outubro desse ano) a tentativa de conciliação, seguiu-se habilitação de herdeiros, de que resultou a continuação da acção contra a ré e os filhos, menores, desta e do falecido. Uma vez que a recusa dos réus em celebrar a escritura pública de compra e venda se prendia com a alegada impossibilidade de estacionar o seu carro no espaço que lhes foi atribuído pela autora - invocando incumprimento de uma cláusula do contrato-promessa -, na audiência de discussão e julgamento de 25 de Outubro de 1988, foi, pelo mandatário dos réus, requerida inspecção judicial ao local, nos termos do artigo
612º do Código de Processo Civil, ao que se não opôs a autora. Por despacho de
24 de Novembro seguinte, determinou o Mmº Juiz do 12º Juízo do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa:
'(...) oportunamente, depois de efectuada a produção [da prova], o tribunal decidirá sobre a necessidade de proceder, ou não, a inspecção judicial. Porém, desde já fica em aberto a possível ida ao local'.
3. Com as alegações, apresentadas em 16 de Junho de 1989, os réus juntaram um 'parecer técnico' do Professor Auxiliar do Instituto Superior Técnico, D., que a autora considerou ser antes um 'laudo de perito'. Dirimindo a questão, o Mmº Juiz considerou não se tratar de um parecer - por a demonstração, que empreendia, da insuficiência das dimensões do corredor de acesso/lugar de estacionamento para boa parte dos veículos ligeiros estar ao alcance de qualquer pessoa. Referiu o Mmº Juiz, em despacho de 25 de Setembro de
1989, o seguinte:
'A ré qualifica a declaração junta como 'Parecer Técnico' e fá-lo com intuito de poder usufruir da previsão e determinação do art. 525º do Cód. Proc. Civil.
Porém estamos em crer que o faz erradamente, salvo o devido respeito. É que um 'Parecer Técnico' tem que assentar necessariamente em conhecimentos especiais e que escapem à experiência comum das pessoas ou à cultura geral dos juízes, isto é, envolvem conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, seja qual for a sua natureza (científica, técnica, artística ou de mera experiência) desses conhecimentos (V.A. Varela Manual de Proc. Cível, 1ª Ed.,562). Ora, este não é o caso dos autos, dado que o subscritor unicamente vem antes relatar factos cuja percepção o podem ser por qualquer pessoa, não se tornando essencial para a sua compreensão o 'Esquema Anexo' (fls. 182).
Assim, uma vez que a situação não cai na previsão do Art. 525º do C.P.C. e muito menos no Art. 524º nºs 1 e 2 do mesmo diploma legal, ordeno pelo exposto o seu desentranhamento dos autos (inclusivé fls. 179 e 180) e a sua entrega à parte que ofereceu. Custas do incidente pela Ré, fixando o mínimo de imposto de justiça. Notifique'.
Deste despacho recorreram os réus, tendo ao agravo sido atribuído efeito devolutivo.
4. Por Sentença de 16 de Julho de 1990, foi a acção julgada improcedente e os réus absolvidos, com fundamento na caracterização da atitude dos réus como de mera mora, uma vez que a razão invocada para a sua recusa de celebração da escritura pública de compra e venda - a inadequação do espaço atribuído para estacionamento - foi dada como não provada.
A autora apresentou, então, recurso de apelação, que subiu com o agravo que já tinha interposto do despacho do Mmº Juiz que admitiu a ampliação do pedido reconvencional dos réus, com o agravo interposto pelos réus
(referido em 3) e com o recurso subordinado de apelação, também interposto por estes.
5. O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 9 de Abril de 1992, negou provimento ao agravo interposto pela autora, bem como ao agravo e recurso subordinado de apelação dos réus e concedeu total provimento à apelação da autora, condenando os réus a devolver-lhe a fracção do imóvel de que
é proprietária e a pagar-lhe 40.000$00 por cada mês decorrido entre 19 de Março de 1984 e a data dessa devolução.
Fundamentando a negação do provimento ao agravo dos réus, referiu aquele aresto:
'Vem este agravo do douto despacho de fls. 191 que não admitiu a junção do documento de fls. 181 (autenticada a fls. 188), com o fundamento de que o mesmo não reveste o carácter de 'parecer técnico', na precisão do artigo 525º do C. P. Civil.
A Lei não nos dá uma definição de parecer.
Para Alberto dos Reis - Código de P. Civil Anotado, Volume IV, edição Coimbra Editora, 1951, pags. 18 e segs.- pareceres são 'peças escritas que se juntam ao processo para serem tomadas pelo tribunal na consideração que merecem, podendo versar sobre questões de direito ou de facto e se destinam a elucidar o Tribunal sobre a significação e alcance de factos de natureza técnica, cuja interpretação demanda conhecimentos especiais'.
Por conseguinte, o que caracteriza um parecer é a sua especificidade analítica que irá ajudar o julgador - porque essa especifidade, naturalmente, escapa ao seu conhecimento, nomeadamente em termos de cultura geral - a extrair as suas conclusões dos factos provados, decidindo.
Ora, é manifesto que o documento em apreço não passa de um reportório pericial, pretendendo dar resposta a quatro perguntas feitas pelos agravantes sobre a facilidade ou dificuldade de manobra dos veículos em espaços de estacionamento com determinadas características.
Como bem salienta a agravada, são os próprios agravantes a 'confessar' nas suas alegações o seu desiderato de, com este documento, colmatarem as lacunas que, na sua opinião, se verificam em sede probatória, designadamente testemunhal.
Mas não é essa a função dos pareceres a que alude o artigo 525º do C.P. Civil.
Eles não se destinam a ajudar a decisão sobre a matéria de facto, mas a esclarecer o julgador final e, portanto, como este, hão-de partir da factualidade já definitivamente fixada, que, por seu turno, há-de revestir alguma complexidade e a tal especificidade.
O que, com toda a certeza, não é o caso de - com os dados já apurados - se concluir sobre a suficiência ou insuficiência de determinado espaço para estacionamento de veículos num prédio habitacional.
Por conseguinte nenhum agravo cometeu o Mmº Juiz com o despacho em apreço, pelo que é de o manter'.
6. Recorreram os réus de agravo, a que foi atribuído efeito suspensivo, arguindo nulidades e violação da lei processual pelo Acórdão do Tribunal da Relação e invocando a desconformidade constitucional - face aos artigos 20º, 205º, nº 2, e 208º, nº 1, da Constituição - da interpretação que, no artigo 525º do Código de Processo Civil, vê consagrado um poder discricionário do juiz.
O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 3 de Junho de 1993, negou provimento ao agravo. Alicerçando a rejeição da inconstitucionalidade da norma do artigo 525º do Código de Processo Civil, na interpretação dada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de Abril de 1992, salientou aquele aresto do Supremo Tribunal de Justiça:
'As partes gozam da faculdade de juntar aos autos pareceres de advogados, professores ou técnicos mas nem todo o escrito a que se atribui a designação de
'parecer' o é. Embora possa ser dado para corroborar o alegado, o parecer destina-se essencialmente a elucidar o tribunal sobre o significado e alcance de factos de natureza técnica, cuja interpretação demanda conhecimentos especiais.
Neste caso tem por base factos já definitivamente fixados no processo e
que se revistam de uma certa complexidade. Deve o parecer tratá-los, pronunciando-se sobre a sua interpretação e valoração, sobre as suas causas e consequências, fornecendo ao tribunal juízos de valor.
A sua função é, no fundo, esclarecer o espírito do julgador, auxiliá-lo no exame e interpretação dos factos que pela sua natureza técnica demandem conhecimentos especiais.
O escrito que os réus juntaram com a designação de parecer não é mais do que a resposta a umas perguntas que ao seu subscritor foram feitas pelos mesmos réus sobre a facilidade ou dificuldade de manobra de veículos automóveis em espaços de estacionamento de determinadas características. Versa questões de facto já arrumadas e destinou-se a dar respostas diferentes das já dadas.
Interessaria antes das respostas, mas não depois delas dadas e só então foi junto ao processo.
Daí que seja inútil. E sendo inútil não era admissível, como vem julgado.
O artigo 20º da Constituição da República Portuguesa dispõe no seu nº 1 que
'a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos'.
Destina-se o disposto neste artigo a promover que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos.
Não impede, contudo, o juiz de, no processo, recusar o que for impertinente ou desnecessário, nem dispensa as partes do dever de probidade.
E se elas violarem este dever podem, até, ser condenadas como litigantes de má fé (artigos 264º, nº 2 e 456º do Código de Processo Civil).
O juiz tem sempre o poder e o dever de recusar a junção aos autos de tudo o que seja impertinente ou desnecessário e de ordenar que seja retirado do processo tudo o que esteja naquelas condições. Daí que ao manter o despacho que ordenou o desentranhamento dos autos do escrito designado por 'parecer', o acórdão não tenha violado o disposto no nº 1 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa. E não viola também o disposto no nº 1 do artigo 208º já que está devidamente fundamentada a decisão. Indicou-se o que caracterizava um
'parecer' e as razões por que não era consentida a sua junção aos autos. Não viola, igualmente, o acórdão recorrido o disposto no artigo 205º, nº 2, da Constituição. Se é certo que 'na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados não é menos certo que lhe cabe também o poder de disciplina.
E no uso deste poder que é também um dever cabe ao juiz impedir que as partes pratiquem actos que a lei não consente.
Daí que, sem violar o disposto naquela disposição constitucional, o juiz possa não autorizar a prática de determinados actos no processo.
Não pode, por isso, considerar-se ofensiva do nº 2 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa a decisão recorrida na medida em que confirmou a decisão do juiz da primeira instância que mandou desentranhar dos autos o escrito junto com as alegações a que alude o artigo 657º do Código de Processo Civil e designado por 'parecer'.
Por tudo quanto fica exposto, nega-se provimento ao agravo, com custas pelos agravantes'.
7. Inconformados, interpuseram os réus recurso deste aresto para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), com fundamento na inconstitucionalidade das normas dos artigos 525º, 659º, nº 3, e
668º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, na interpretação que das mesmas foi feita pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
Nas alegações produzidas neste Tribunal, os recorrentes apresentaram o seguinte quadro conclusivo.
1. Os RR., ora recorrentes, com as suas alegações de direito requereram a junção aos autos de um Parecer subscrito por entidade idónea e credenciada. Este escrito é um PARECER e não foi junto como documento probatório. A ele será dado o valor que merece. O facto de ao seu subscritor serem formuladas perguntas em nada tira a característica de Parecer. A caracterização do Parecer extrai-se da sua função e não da forma que o escrito possa revestir.
2. O 'documento' atrás referido foi junto atempadamente (artº 525º do C.P.C.).
3. O referido 'documento' destinava-se a auxiliar a interpretação de um documento pela A. junto aos autos, denominado 'planta' ou 'tela final' onde constavam as áreas do estacionamento em litígio e respectivo corredor de acesso. O Tribunal, tendo nas respostas aos quesitos admitido essas medidas e posicionamento teria de se pronunciar se os veículos automóveis poderiam entrar no seu estacionamento sem colidir com os vizinhos. Da resposta aos quesitos não ficara provado que os veículos tivessem acesso e também não ficara provado que não tivessem acesso. Impunha-se tornar tal conclusão do desenho ou planta junto pela A.. A auxiliar essa conclusão se destinava o Parecer como nele se pode ler. A sua junção não era, por conseguinte, impertinente ou simples atitude dilatória, até porque não consegue vislumbrar-se de que modo poderia prejudicar a celeridade processual.
4. Sendo tal documento um 'Parecer', sendo a sua junção atempada e não sendo tal documento impertinente terá de ser admitido e não pode ser rejeitado liminarmente pelo julgador. Os RR. não pretendem fazer ou discutir juízos de valor sobre o seu conteúdo. Apenas querem que tal documento seja junto para organizarem a sua defesa, eventualmente noutras instâncias.
5. Impedindo-se os RR., deste modo, de organizarem como bem entendem a sua defesa está-se infringindo o princípio do CONTRADITÓRIO e da IGUALDADE implícitos no direito de acesso ao direito e aos Tribunais constitucionalmente reconhecido no nº 1 do artº 20º da Constituição da República Portuguesa.
6. Não pode, por conseguinte, interpretar-se o artº 525º do C.P.C. no sentido de que cabe ao julgador admitir ou não admitir Pareceres, sejam eles de direito ou de facto ou de que é ao julgador que cabe a qualificação do documento como Parecer, pertinente ou não pertinente, necessário ou não necessário. Interpretado deste modo, o dispositivo do artº 525º está ferido de inconstitucionalidade.
7. E tal norma, interpretada assim, viola também o nº 2 do artº 205º da C.R.P. já que ficando ao julgador a possibilidade de, discricionariamente, aceitar ou recusar um elemento de defesa da parte, assegurada não fica a protecção dos seus direitos e interesses.
8. Como viola ainda, indirectamente, o disposto no nº 1 do artº 208º da C.R.P. na medida em que considera o juiz livre de aceitar ou rejeitar um PARECER que se destina a esclarecer a fundamentação da Sentença.
Por sua vez, a recorrida rematou as suas alegações do seguinte modo:
1- O escrito de fls. 181 e seguintes embora intitulado como parecer técnico não constitui um parecer, propriamente dito.
2- São os próprios Recorrentes nas suas alegações de agravo a confessarem que com este documento pretendem colmatar as lacunas que na sua opinião se verificam em sede probatória, designadamente testemunhal.
3- Ora, a função dos pareceres não é essa mas antes a de esclarecer o julgador como este há-de partir da factualidade assente e já definitivamente fixada, a qual, por seu turno, há-de revestir alguma complexidade e especificidade, o que não é o caso dos autos.
4- Por isso é que o Mº Juiz da 1ª instância, quando apreciado o teor do documento, rejeitou fundadamente (fls. 191) a sua junção.
5- Não se trata, pois, de negar o acesso ao direito, aos Tribunais ou de subverter o princípio do contraditório ou de igualdade de armas, mas tão só o direito de o Juiz não admitir no processo os documentos espúrios ou não pertinentes.
6- Aliás, como bem referem os Mºs. Juízes Conselheiros no Acórdão recorrido: o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa dispõe no seu nº 1 que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos.
Destina-se o disposto neste artigo a promover que a ninguém seja dificultado ou impedido em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos.
'Não impede, contudo, o Juiz de no processo recusar o que for impertinente ou desnecessário nem dispensar as partes do dever de probidade'.
7- Por outro lado, a decisão do Mº Juiz da 1ª instância está fundamentada
(fls. 191) razão pela qual não foi violado o disposto no artº 208º da C.R.P..
8- Identicamente não se mostra violado o artº 205º da Lei Fundamental pelas razões que já se expuseram ou seja a de o Juiz no exercício do seu poder-dever de dirigir o julgamento aceitar apenas tudo o que não seja inútil ou desnecessário.
8. Como reforço das suas alegações, juntaram os recorrentes um Parecer do Prof. Doutor E. e do Dr. F..
9. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos.
10. A primeira questão que deve ser versada é da delimitação do objecto do presente recurso de constitucionalidade. Uma vez que a questão da constitucionalidade das normas dos artigos 659º, nº 3, e 668º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil apenas foi suscitada no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal e não 'durante o processo', isto é, num momento em que o tribunal a quo pudesse (e devesse) ter tomado posição sobre ela - momento esse que, de acordo com a jurisprudência reiterada e constante deste Tribunal, há-de ser antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a questão de constitucionalidade respeita [cfr., inter alia, o Acórdão nº 90/85, in Diário da República, II Série, nº 157, de 11 de Julho de
1985; o Acórdão nº 94/88, in Diário da República, II Série, nº 193, de 22 de Agosto de 1988; o Acórdão nº 318/90, in Diário da República, II Série, nº 62, de
15 de Março de 1991; e o Acórdão nº 266/94 (não publicado)]-, o objecto do presente recurso engloba tão-só a questão da constitucionalidade da norma do artigo 525º do Código de Processo Civil, na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão aqui sob recurso e pelas instâncias.
Vejamos, então, se aquela norma, com o sentido que lhe atribuiu o acórdão recorrido é, ou não, inconstitucional.
11. Na análise da única questão de constitucionalidade que cabe, assim, a este Tribunal apreciar, vai seguir-se um iter semelhante ao adoptado no Acórdão deste Tribunal nº 444/91, (publicado no Diário da República, II Série, nº 78, de 2 de Abril de 1992), no qual se apreciou a questão da conformidade com a Constituição da norma do artigo 259º do Código de Processo Civil.
Vai, por isso, o Tribunal delimitar os sentidos da norma do artigo 525º do Código de Processo Civil, resultantes dos elementos do processo; confrontar esses sentidos com o artigo 20º, nº 1, da Constituição - o preceito que, verdadeiramente, serve de parâmetro à mencionada norma; e indicar a interpretação correcta, do ponto de vista constitucional, da norma do artigo
525º do Código de Processo Civil.
É a seguinte a redacção do artigo 525º do Código de Processo Civil, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 47 690, de 11 de Maio de 1967:
Os pareceres de advogados, professores ou técnicos podem ser juntos, nos tribunais de 1ª instância, em qualquer estado do processo.
Tendo em conta a possibilidade, admitida pelo tribunal de primeira instância (cfr. supra 2, in fine), de realização de inspecção judicial após a produção da prova e, certamente, também em resposta à tardia junção de prova pela contraparte (que, na penúltima das oito sessões de discussão e julgamento, fez juntar fotos ao processo), e perante a resposta de 'não provado' aos quesitos respeitantes directamente à matéria versada no dito 'Parecer Técnico', os ora recorrentes alegaram, no recurso subordinado interposto perante o Tribunal da Relação de Lisboa, em 2 de Abril de 1991, o seguinte:
'Poderia o Mmº Juiz aceitar ou não aceitar a probidade do subscritor; poderia o Mmº Juiz acatar ou recusar as suas conclusões geométrica e matematicamente fundadas mas, salvo o devido respeito, não podia recusar a junção nos termos e com os fundamentos com que o fez'.
Subjacente a uma tal posição dos recorrentes está uma determinada interpretação da norma do artigo 525º do Código de Processo Civil: a de que cabe ao interessado a decisão sobre a junção, ou não, de pareceres, nos tribunais de 1ª instância, e há-de ser ele o dono do critério da definição do que constitui parecer. A este entendimento da norma se chega, segundo a recorrente, pela configuração do princípio da legalidade processual civil e pelo confronto do poder vinculado previsto no artigo 525º com o poder discricionário previsto no artigo 706º, nº 3, do Código de Processo Civil, para decidir da junção de 'pareceres de advogados, professores ou técnicos' ( nº 2 do mesmo artigo).
Outra interpretação - manifestada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça - é a de que cabe aos tribunais o critério de aplicação do disposto no artigo 525º, como de outras disposições que regulam os poderes de intervenção das partes. Caberia, assim, ao juiz, e não ao interessado, o poder de avaliar e decidir sobre a junção de pareceres ao processo, quer nas instâncias de recurso, quer na primeira instância.
Delimitada do modo que vem de expor-se a interpretação dada à norma do artigo 525º do Código de Processo Civil pelo acórdão recorrido,
é altura de perguntar: aquela norma, interpretada com o sentido de que a junção de pareceres pode ser recusada pelo juiz do processo, é inconstitucional, por violação do artigo 20º, nº 1, da Constituição?
O Tribunal adianta, desde já, que sim. Vejamos porquê.
12. O artigo 20º, nº 1, da Constituição estabelece que 'a todos é assegurado o acesso ao direito aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos'.
Consagra este preceito dois direitos fundamentais distintos, embora estreitamente conexos: o direito de acesso ao direito e o direito de acesso aos tribunais - sendo o primeiro mais amplo e, muitas vezes, pressuposto do segundo, na medida em que o recurso a um tribunal com a finalidade de obter dele uma decisão jurídica sobre uma questão juridicamente relevante (direito de acesso aos tribunais ou direito à protecção jurídica através dos tribunais) pressupõe logicamente um correcto conhecimento dos direitos e deveres por parte dos seus titulares (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 161 ss.).
O direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional, condensado no artigo 20º, nº 1, da Lei Fundamental, implica a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva. Ele desdobra-se, por isso, em três momentos distintos: primeiro, no direito de acesso a «tribunais» para defesa de um direito ou de um interesse legítimo, isto é, um direito de acesso à «Justiça», a órgãos jurisdicionais, ou, o que é mesmo, a órgãos independentes e imparciais (artigo 206º da Constituição) e cujos titulares gozam das prerrogativas da inamobilidade e da irresponsabilidade pelas suas decisões (artigo 218º, nºs. 1 e 2, da Lei Fundamental); segundo, uma vez concretizado o acesso a um tribunal, no direito de obter uma solução num prazo razoável; terceiro, uma vez ditada a sentença, no direito à execução das decisões dos tribunais ou no direito à efectividade das sentenças (cfr., J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, pp. 666-668; J. González Pérez, El Derecho a la Tutela Jurisdiccional, Barcelona, Civitas, 1984, pp. 40 e segs.; A Cano Mata,
«Declaraciones de inadmision de recursos contencioso-administrativos Y derecho de tutela judicial efectiva sin indefension», in Revista de Derecho Publico, ano XIII, vol. II, pp. 293 e segs.).
Na linha do exposto, o Acórdão deste Tribunal nº 86/88
(publicado no Diário da República, 2ª Série, nº 93, de 22 de Agosto de 1988) caracterizou o direito de acesso aos tribunais como sendo, «entre o mais, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder «deduzir as suas razões
(de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras» (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1956, p. 364).
Ora, a solicitação de pareceres, sejam elas jurídicos ou não, é, justamente, uma das formas de que as partes dispõem de se aperceberem de todos os contornos e implicações dos seus direitos e deveres, bem como dos seus interesses legítimos, incluindo-se, portanto, no seu direito de acesso ao direito. Permitir-lhes que os façam chegar aos tribunais, nos precisos termos em que a lei o estabelece, é uma consequência directa da projecção, no direito de acesso aos tribunais, do direito de acesso ao direito contido no artigo 20º, nº
1, da Constituição.
Por outra via, ainda, se logra a demonstração de que, salvo casos excepcionais em que manifestamente não esteja em causa parecer algum
- situações decerto muito raras por nenhuma vantagem poder aportar à parte que assim procede -, deve caber à parte que oferece o parecer o critério relevante,
à face da lei, para essa qualificação. Vem ela da consagração implícita de um princípio da legalidade processual em geral (que assume relevo autónomo, enquanto princípio da legalidade processual penal), o qual, como outros princípios do processo judicial já expressamente admitidos por este Tribunal
(cfr. Acórdãos nºs. 404/87 e 62/91, publicados no Diário da República, II Série, nº.292 ,de 21 de Dezembro de 1987, e I Série-A, nº 91, de 19 de Abril de 1991, respectivamente), assume relevância constitucional, em termos de a sua violação consubstanciar 'naturalmente, uma inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 2º e 13º, 1, da Constituição da República Portuguesa' (como se escreveu no último aresto citado).
Na medida em que resulta da Constituição que os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei, liga-se tal independência a valores de imparcialidade e objectividade que só as normas jurídicas - até pelos mecanismos de controlo da constitucionalidade de que são dotadas - podem assegurar. Ora, o princípio da legalidade processual exige, pelo menos, que os poderes discricionários se não sobreponham aos critérios normativos: por isso, em primeira instância, não pode o juiz recusar a junção de um parecer que a lei admite seja junto em qualquer estado do processo, sem previsão de formulação de um juízo de oportunidade ou relevância, como admite para a junção que ocorra em instância de recurso.
A norma do artigo 525º do Código de Processo Civil, interpretada à luz do artigo 20º, nº 1, da Lei Fundamental deve, pois, ser entendida como conferindo às partes o direito de juntar, nos tribunais de 1ª instância, pareceres de advogados, professores ou técnicos, cabendo-lhes a eles
- e não ao juiz - a definição do critério do que deva ser considerado como parecer. Ora, tendo o acórdão sub judicio interpretado a norma do artigo 525º do Código de Processo Civil como atribuindo ao juiz um poder discricionário para avaliar e decidir sobre o que deve ser considerado um parecer, extraiu dela um sentido claramente inconstitucional.
13. A interpretação constitucionalmente adequada a que se chegou no número anterior pode ser confrontada com uma objecção do seguinte teor: com ela, poderá estar a colocar-se à disposição das partes um instrumento dilatório ou um instrumento de chicana, de que elas poderão lançar mão como meio de obstar ao andamento regular da causa ou de introduzir nela incidentes indesejáveis. Poder-se-á, com efeito, dizer que o reconhecimento daquele direito
- concebido como uma das manifestações do direito de acesso ao direito e do direito de acesso aos tribunais - dificultará a existência de uma 'justiça temporalmente adequada', a qual constitui um segundo momento deste último direito fundamental, que o artigo 20º, nº 1, da Constituição consagra.
Tal objecção, que já foi afastada no Acórdão nº 444/91 deste Tribunal, tem aqui ainda menos razão de ser. É que se aí estava em causa a obtenção de uma prestação do Tribunal (a substituição do conteúdo 'ilegível' da notificação), aqui está apenas em causa a aquiescência do Tribunal para a junção do parecer - e a sua eventual notificação à parte contrária, nos termos do artigo 526º do Código de Processo Civil.
Por outro lado, pode pretender-se que há uma diferença entre pareceres sobre matéria de direito e sobre matéria de facto: estes teriam
de se conformar com as regras sobre a produção da prova. A argumentação produzida no acórdão recorrido e nas instâncias foi, porém, noutro sentido: o de que não estava em causa um parecer. Ora, sob pena, justamente, de se atingir o direito constitucionalmente tutelado do acesso ao direito e aos tribunais, não podem estes, salvo em casos pontuais - e decerto excepcionais - em que seja patente ou manifesto que o documento que se pretende juntar ao processo não constitui parecer algum e não se oferecem quaisquer dúvidas de que a parte apenas pretendeu com aquela junção utilizar um instrumento de chicana, sobrepor a sua valoração à valoração da parte no momento da sua junção ao processo.
14. Importa, por fim, realçar que a decisão sobre a relevância dos pareceres constitui seguramente uma prerrogativa irredutível dos tribunais. Assim sendo, e porque é de admitir que o Tribunal que não quis, in casu, aceitar a junção do Parecer não queira, sendo obrigado a admiti-la, dar-lhe relevo, não será a decisão deste recurso de constitucionalidade indiferente para a resolução da questão de fundo? Se assim fosse, a decisão seria inútil, e, nesse caso, não deveria o Tribunal Constitucional conhecer do presente recurso, na linha do que está estabelecido na sua jurisprudência uniforme e constante (cfr., inter alia, os Acórdãos nºs. 208/86, 250/86, 275/86 e 14/91, publicados no Diário da República, II Série, de 3 de Novembro de 1986,
21 de Novembro de 1986, 12 de Dezembro de 1986 e 28 de Março de 1991, respectivamente). Sucede, porém, que não só a decisão da primeira instância foi desfavorável aos autores (como pretendiam os réus ao juntar o Parecer), como o
único dado seguro é o de que as instâncias partiram do princípio de que não podiam atribuir relevância a um elemento que, de outra forma, poderiam querer fazer relevar. Não pode, por isso, este Tribunal presumir qual o grau de relevância que as instâncias poderiam ter atribuído ao Parecer, no caso de serem obrigadas a admitir a sua junção aos autos.
O antecedente exposto impele o Tribunal a concluir que a norma do artigo 525º do Código de Processo Civil, na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido, é inconstitucional, por violação do artigo 20º, nº
1, da Lei Fundamental.
Alcançada esta conclusão desnecessário se torna confrontar a mencionada norma com outras normas ou princípios constitucionais.
III - Decisão.
15. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 525º do Código de Processo Civil, na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido, ou seja, de que cabe ao juiz a definição do critério do que deva considerar-se parecer e, consequentemente, o poder de avaliar e decidir sobre a junção dos pareceres que as partes pretendem juntar aos autos, ao abrigo de tal disposição, por violação do artigo 20º, nº 1, da Constituição;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão recorrido, que deve ser reformado, de acordo com o aqui decidido sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 10 de Julho de 1996 Fernando Alves Correia Nunes de Almeida Guilherme da Fonseca José de Sousa e Brito
Messias Bento (vencido nos termos da declaração de voto junta).
Votei vencido, por ter entendido que:
(a). não devia conhecer-se do recurso, em virtude de o artigo 525º do Código de Processo Civil não ter sido aplicado com o sentido 'de que cabe ao juiz a definição do critério do que deva considerar-se parecer e, consequentemente, o poder de avaliar e decidir sobre a junção dos pareceres que as partes pretendem juntar aos autos';
(b). a conhecer-se do recurso, não devia concluir-se pela inconstitucionalidade de tal norma.
As razões do meu voto são as seguintes:
1. Os factos:
No tribunal de 1ª instância, os ora recorrentes juntaram aos autos um 'parecer técnico', que o juiz mandou desentranhar, por ter entendido que não era tal, uma vez que o seu subscritor apenas relatava factos que podem ser percepcionados por qualquer pessoa, não requerendo, assim,
'conhecimentos especiais e que escapem à experiência comum das pessoas ou à cultura geral dos juízes, isto é, [que] envolvam conhecimentos especiais que os julgadores não possuam [...]'.
Tendo os recorrentes agravado desse despacho, a Relação negou provimento ao agravo.
Para o efeito, a Relação - depois de ponderar que 'o documento em apreço não passa de um reportório pericial, pretendendo dar resposta a quatro perguntas feitas pelos agravantes sobre a facilidade ou dificuldade de manobra dos veículos em espaços de estacionamento com determinadas características' - acrescentou que os recorrentes, com tal documento, pretenderam 'colmatar as lacunas que [...] se verificam em sede probatória, designadamente pericial'. Mas - disse ainda a Relação - os pareceres
'não se destinam a ajudar a decisão sobre a matéria de facto, mas a esclarecer o julgador final e, portanto, como este, hão-de partir da factualidade já definitivamente fixada, que, por seu turno, há-de revestir alguma complexidade e a tal especificidade' - 'o que, com toda a certeza, não é o caso de - com os dados já apurados - se concluir sobre a suficiência ou insuficiência de determinado espaço para estacionamento de veículos num prédio'.
2. Uma questão prévia: o não conhecimento do recurso
Prescreve o artigo 525º do Código de Processo Civil que os pareceres de advogados, professores ou técnicos podem ser juntos, nos tribunais de 1ª instância, em qualquer estado do processo.
Na 1ª instância, os pareceres podem, pois, ser juntos até ao momento em que no processo é aberta conclusão ao juiz para ser proferida a sentença (cf., neste sentido, JACINTO RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, volume III, Lisboa, 1972, página 97). Nos tribunais superiores - escreve o mesmo autor - 'parece que os pareceres deverão ser apresentados até começar a fase do julgamento, isto é, até se iniciarem os vistos dos juízes'.
Apresentado um parecer, a secretaria juntá-lo-á ao processo, independentemente de despacho. A menos que ele seja manifestamente extemporâneo: neste caso - dispõe o artigo 542º do mesmo Código - 'a secretaria fará os autos conclusos, com a sua informação, e o juiz decidirá sobre a sua junção'.
Trata-se de disciplina semelhante à estabelecida para os requerimentos, respostas, articulados e alegações respeitantes a processos pendentes (cf. artigo 166º, nº 2, do mesmo Código).
Se o parecer não for extemporâneo, uma vez feita a junção, a secretaria notificará a sua apresentação à parte contrária (cf. artigo 526º do dito Código); e o juiz, logo que o processo lhe vá concluso, procederá em conformidade com o previsto no artigo 543º (cf., neste sentido, JACINTO RODRIGUES BASTOS, ob. cit., página 109). Ou seja: se verificar que o parecer é impertinente ou desnecessário, o juiz mandá-lo-á retirar do processo e restituir ao seu apresentante, que condenará nas custas a que deu causa (cf. o citado artigo 543º, nº 1, parte final).
Do que se trata é de o juiz recusar uma junção ilegal, pois isso é a junção de um documento (parecer) impertinente ou desnecessário.
Ora, ao juiz cumpre, justamente, recusar a junção ilegal de papéis ao processo (cf. o citado artigo 166º, nº 2, in fine); e cabe-lhe, bem assim, 'remover os obstáculos que se oponham ao andamento regular da causa,
[...] recusando o que for impertinente ou meramente dilatório [...]' (cf. artigo
266º).
Pretende-se uma justiça pronta. E, por isso, embora o impulso processual pertença, em princípio, às partes (cf. artigo 264º, nº 1, do mesmo Código), confere-se ao juiz a faculdade de remover os obstáculos que se oponham ao regular andamento do processo, desse modo se atenuando o rigor do princípio do dispositivo, que é uma das traves mestras do nosso processo civil
(cf. artigo 3º do Código respectivo).
No dizer de ANTUNES VARELA, essas traves mestras 'são o princípio do dispositivo ou da livre iniciativa, a regra de ouro da igualdade das partes e ainda o ditame da livre apreciação das provas pelo julgador' (cf. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 121º, página 227).
A norma, que o acórdão recorrido aplicou para confirmar a decisão de desentranhamento do parecer, não foi, pois, em meu entender, a do artigo 525º do Código de Processo Civil, que não comporta o sentido que se aponta como tendo sido o que o aresto dele extraiu. O acórdão aplicou, sim, o artigo 543º, nº 1, parte final, do mesmo Código - ou, se se quiser - o seu artigo 266º.
Não tendo o artigo 525º do Código de Processo Civil sido aplicado com o sentido que se lhe imputa e que a posição que fez vencimento tem por inconstitucional, a consequência era não conhecer do recurso.
3. A questão de constitucionalidade:
3.1. Ultrapassada, porém, esta questão, a verdade é que o dito artigo 525º, se acaso tivesse sido interpretado como se pretende tê-lo sido pelo acórdão recorrido, não é inconstitucional.
Pode, eventualmente, pretender-se que o acórdão recorrido adoptou um conceito muito rigoroso de parecer ou da sua pertinência; que, ao considerar impertinente o parecer que o juiz da 1ª instância mandou desentranhar do processo, julgou mal.
Decidir esta questão não é, porém, da competência deste Tribunal.
Mas, se pode pretender-se que o tribunal recorrido julgou mal, o que não pode é entender-se que a Constituição exija do legislador que coloque nas mãos das partes, ao menos como regra, o poder de dizer o que é um parecer para os fins do processo civil, nem o poder de decidir que determinado parecer é pertinente.
Ora, se bem vejo as coisas, é a ideia de uma exigência constitucional nesse sentido que vai implicada no julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 525º do Código de Processo Civil, na interpretação que se considera que dela fez o acórdão recorrido.
Simplesmente, atribuir aquele poder às partes é algo que só se compreenderia numa concepção privatística (contratualista) do processo civil - de um processo concebido como um duelo entre as partes, a que o juiz devesse assistir passivamente, como se nada mais lhe cumprisse fazer do que velar por que as regras fossem observadas e, no final, proclamar o resultado - um resultado que se bastasse com uma verdade puramente formal.
Só que, no nosso sistema jurídico, embora o processo civil tenha estrutura dialéctica ou polémica, pois que assume a natureza de um debate
(discussão) entre as partes, o juiz não é estranho a esse debate. Ao juiz cabe, na verdade, assegurar que o processo se desenvolva com estrita observância dos princípios da igualdade e do contraditório (cf. artigo 3º do Código de Processo Civil).
A este propósito, escreve ANTUNES VARELA: 'todo o diálogo contencioso entre as próprias partes passa obrigatoriamente através do juiz, que nessa actividade desempenha de modo continuado uma função de soberania típica do Estado' (Revista de legislação e Jurisprudência, ano 126º, página 40).
As partes, iguais entre si mesmo quando uma delas é o Estado, ao longo da relação processual, encontram-se face ao juiz numa posição de subordinação.
Ao juiz - para além de cumprir remover os obstáculos que se oponham à realização de uma justiça pronta (cf. artigos 266º, 166º, nº 2,
543º, nº 1, do Código) - compete 'realizar ou ordenar oficiosamente diligências que considere necessárias para o apuramento da verdade quanto aos factos que lhe
é lícito conhecer' (cf. artigo 264º, nº 3): é o princípio da investigação (cf. também os artigos 265º, 519º, 535º e seguintes; 557º, nº 1; 560º; 572º, nºs 2, 3 e 4; 575º; 578º, nºs 1 e 2; 612º; 638º, nº 5; 645º; 650º, nºs 1 e 2, etc.). Embora só possa 'servir-se dos factos articulados pelas partes' (artigo 664º), salvo se se tratar de factos notórios ou de que tenha tomado conhecimento no exercício das suas funções (cf. artigo 514), cumpre ao juiz 'tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las' (cf. artigo 515º) - tudo, obviamente, em busca da verdade material (cf. MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., página 368).
O juiz ocupa, pois, no processo uma posição de comando, tendo - nos dizeres de ALBERTO DOS REIS (Comentário ao Código de Processo Civil, volume 3º, Coimbra, 1946, página 7 e seguintes) - poderes de instrução, de disciplina e de impulsão ou promoção do processo.
3.2. É certo que é ao nível da lei ordinária que tudo é assim.
Simplesmente, o que penso é que, nos quadros de um Estado de Direito, a lei, no aspecto ora considerado, não poderá ser muito diferente do que é.
Num Estado baseado na dignidade da pessoa humana (cf. artigo 1º da Constituição), o direito de acção processual civil há-de, é certo, continuar a ter raiz vincadamente subjectiva, a ser personalista - que o mesmo é dizer que os seus alicerces devem continuar assentes no princípio do dispositivo.
De facto, numa ordem jurídica que deve estar ao serviço do homem e numa área em que o titular do direito pode, em regra, dispor dele, a iniciativa e o impulso processual hão-de continuar a pertencer às partes. E isso, não apenas para o efeito de serem elas a desencadear a intervenção do tribunal, mas também para o de serem elas igualmente a modelar o thema decidendum, com o pedido e a defesa e, bem assim, com os factos que carrearem para o processo.
Mas se o juiz não deve agir sem pedido, nem além do pedido
(ne eat iudex ultra vel extra petitum partium), também não deve ele ficar amarrado ou prisioneiro da conduta das partes na condução do processo.
É que, o processo civil de um Estado de Direito tem de estar direccionado ao triunfo da verdade material, não podendo contentar-se com uma justiça meramente formal. E há-de estar empenhado, bem assim, numa justiça pronta - numa justiça administrada em prazo razoável.
Estas são ainda dimensões do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, nº 1, da Constituição (cf. também artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).
O direito de acesso aos tribunais é, de facto, um direito a uma decisão judicial ditada por um tribunal independente e imparcial, num processo justo e leal, que decorra sem dilações indevidas (cf. o Acórdão nº
380/96, por publicar).
Traços essenciais do agir em justiça são a imparcialidade do juiz - o que reclama que ele seja independente - e a conformidade do respectivo processo ao direito (due process of law).
Um processo leal há-de permitir o máximo de participação dos interessados na realização da 'obra da justiça'. Estes hão-de, porém, adoptar um comportamento processual que não prejudique o fim tido em vista no processo - fazer justiça -, nem seja causa de demoras indevidas.
Ora, para fazer justiça, necessário é que o juiz possa intervir de modo a que o processo se oriente sempre - e sem dilações desnecessárias - na busca da verdade material.
No processo, o critério do juiz há-de ser, pois, o decisivo.
Não pode, por isso, deixar de ser compatível com a Constituição uma norma que confira ao juiz um poder de direcção que se traduza na possibilidade de ele recusar tudo o que for impertinente, porque desnecessário.
3.3. Uma nota final: como se decidiu no Acórdão nº 444/91
(Diário da República, II série, de 2 de Abril de 1992), é razoável cometer à pessoa notificada a decisão sobre se a cópia que lhe é entregue é ou não legível, pois que é ela quem tem de se inteirar do respectivo conteúdo. Nada, porém, justifica que, num processo dominado pela preocupação de fazer justiça, se cometa às partes, que estão empenhadas no litígio, 'a definição do critério do que deva ser considerado como parecer', em vez de se entregar essa tarefa ao juiz, que é um terceiro neutro, porque não interessado no litígio - é dizer, que
é independente e imparcial, tendo como única preocupação fazer justiça.
Bravo Serra (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto do Ex.mo Cons. Messias Bento). José Manuel Cardoso da Costa