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Processo nº 179/94 ACÓRDÃO Nº 714/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- S... intentou, na comarca de Tomar, aos 30 de Junho de 1989, acção declarativa de condenação com processo sumário contra C... - L... e mulher, S..., pedindo a condenação solidária dos réus a pagarem-lhe a quantia de 655.109$00, acrescida de juros à taxa de 15% sobre 200 contos, a partir de 29 desse mês e ano, até integral pagamento.
Fundamentou o pedido no facto de ter depositados
200 contos em conta a prazo de que é titular na agência de Tomar da ré C..., os quais foram levantados à sua revelia pelo réu L..., à sombra de uma suposta autorização sua para movimentação da aludida conta. Na realidade, a autora 'mal sabe fazer o nome' pelo que, para ser válido e eficaz, o rogo teria de ser confirmado perante o notário, no próprio acto de reconhecimento da assinatura e depois de lido o documento ao rogante, de acordo com o artigo 166º do Código do Notariado. No entanto, a C... permitiu que o réu procedesse ao levantamento da importância depositada - em 3 e 4 de Abril e em 13 de Maio de 1985 - com o que este fez enriquecer o património comum conjugal.
Contestaram os réus, separadamente, e, após vicissitudes várias que, designadamente, importaram a anulação da decisão da matéria de facto em 1ª instância, por acórdão da Relação de Coimbra de 29 de Outubro de 1991 (publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XVI, t. IV, págs. 122 e segs.), esse Tribunal, em novo acórdão, de 26 de Janeiro de 1994, confirmou a sentença que julgara a acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu os réus do pedido.
2.- É deste segundo acórdão da Relação que a autora, inconformada, recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Alegou, para o efeito, a inconstitucionalidade da norma do artigo 407º do Código Comercial, interpretado no sentido de a expressão nele contida '[respectivos] estatutos' abranger os usos [bancários] de um simples funcionário bancário poder substituir o notário no reconhecimento a rogo, por considerar ofendido 'tanto o princípio de que a República Portuguesa
é um Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição, como o princípio da igualdade dos cidadãos consignado no artigo 13º, com o esclarecimento do artigo 12º, nº 2, desse diploma fundamental'.
Nas respectivas alegações, apresentadas ainda no tribunal a quo, concluíu a autora:
'a) A interpretação do artigo 407º do Código Comercial, no sentido de permitir, como válido, o reconhecimento da assinatura de um cidadão analfabeto, por um qualquer funcionário de um Banco, é inconstitucional.
b) Uma vez que tal interpretação viola os princípios constitucionais consignados nos artigos 1º e 2º da Constituição, atento o disposto no artigo 9º, alínea b), do mesmo diploma.
c) Pois sendo Portugal um Estado de direito e encontrando-se consignado tanto no Código Civil como no do Notariado a obrigatoriedade do rogo a analfabetos ser feito ou confirmado por Notário, a interpretação do artigo
407º do Código Comercial que retire esta protecção legal aos cidadãos terá que ser havida como inconstitucional'.
A C... foi a única demandada a alegar.
No seu articulado começou por entender que, dado o disposto no artigo 79º da Lei nº 28/82 e uma vez que as alegações de recurso da autora foram apresentadas na Relação, deverá julgar-se deserto o recurso, por falta de alegações.
Para o caso de assim se não entender, contrariou a tese da autora concluindo por considerar não ser inconstitucional a norma do artigo 407º citado, nem ter a decisão recorrida violado qualquer princípio consagrado na CR, nomeadamente os dos seus artigos 1º e 2º.
Respondeu, ainda, a autora à questão prévia, no sentido do seu desatendimento pois, notificada para alegar, não deixou de vir aos autos no prazo legal, 'mantendo integralmente as alegações já apresentadas no Tribunal da Relação de Coimbra'.
Correram-se os vistos legais, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
II
1.1.- A questão prévia
Pretende a C... que se julgue deserto o recurso por falta de apresentação de alegações da autora neste Tribunal, considerando o disposto no artigo 79º da Lei nº 28/82, nos termos do qual as alegações de recurso são sempre produzidas no Tribunal Constitucional.
Com efeito, a autora alegou mas cedo o fez, na Relação de Coimbra.
Ora, diz-nos o nº 2 do artigo 690º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei nº 28/82, que, na falta de alegações, o recurso é logo julgado deserto.
Não obstante, no caso vertente, a autora, recebido o recurso e notificada para alegar neste Tribunal veio, tempestivamente, apresentar requerimento em que expressamente remete para as alegações anteriormente juntas que 'mantém, integralmente', na sua expressão, o que voltou a confirmar quando ouvida em momento posterior, nos termos do nº 3 do artigo
704º do Código de Processo Civil.
Não fica, assim, sujeita às consequências radicais de falta de alegações. O que se pode dizer é que agiu prematuramente, não se vislumbrando razões que obstem ao seu aproveitamento, como, de resto, o aconselha o princípio processual do máximo aproveitamento dos actos processuais sem prejuízo das garantias indispensáveis, o qual, observado, em nada contraria a razão de ser do disposto no artigo 79º, ditado por razões pragmáticas de uniformização do regime (leiam-se, a este respeito, os trabalhos preparatórios da Lei nº 28/82, publicados no volume Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, Lisboa, Assembleia da República, 1984, maxime págs. 490 e segs.).
Improcede, por conseguinte, a questão prévia suscitada.
1.2.- A delimitação do objecto do recurso
No seu requerimento de interposição de recurso, a autora suscitou a constitucionalidade da norma contida no artigo 407º do Código Comercial na medida em que a expressão 'estatutos' nele contida abrange 'os usos, com o sentido de que um simples funcionário bancário poderia substituir o Notário no reconhecimento a rogo, por tal ofender o princípio de que a República Portuguesa é um Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição, como o princípio da igualdade dos cidadãos consignados no artigo 13º, com o esclarecimento do artigo 12º, nº 2, desse diploma fundamental'.
No entanto, nas conclusões das alegações e nas alegações propriamente ditas, a recorrente pôs já a tónica nos artigos 1º e 2º da CR, 'atento o disposto no artigo 9º, alínea b), desse mesmo diploma'.
De qualquer modo, não obstante uma certa imprecisão no enquadramento jurídico-constitucional do recurso, está em causa a interpretação dada ao citado artigo 407º na medida em que a expressão
'respectivos estatutos' da norma do Código Comercial abarca, compreende, os usos bancários quanto à movimentação de contas bancárias (depósitos bancários) de analfabetos por parte de terceiros, autorizados mediante assinatura a rogo.
Define-se, pois, nestes parâmetros, o objecto do recurso, no mais sendo o Tribunal livre de se fundamentar em suposta violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada (cfr. o artigo 79º-C, in fine, da Lei nº 28/82).
2.- A questão de fundo
2.1.- O acórdão recorrido apoiou-se em determinado núcleo fáctico, que teve como provado, a descrever no que ora interessa.
A autora depositou em três ocasiões diferentes um total de 200 contos na conta a prazo de que é titular, aberta na agência da C... em Tomar; depósito 001, de 50 contos, constituído em 21 de Março de 1979; depósito 100, de igual montante, de 5 de Maio de 1981; depósito 101, de 100 contos, formado em 3 de Abril de 1984.
Para abrir essa conta - nº ... - a respectiva ficha (documento de fls. 20) foi assinada, a rogo da autora, 'por não saber escrever', por terceiro, J..., apondo a interessada na mesma a impressão digital do seu indicador direito.
O réu L... levantou a totalidade desse dinheiro em Abril e Maio de 1985, ao abrigo de autorização, constante de nova ficha, de 3 de Abril de 1984 (documento de fls. 21), na qual a autora o autoriza a efectuar levantamentos, concedendo-lhe todos os poderes de que dispõe como depositante.
Também neste caso a autora não assina, 'por não saber assinar', tendo, no entanto, aposto na referida ficha as impressões digitais dos seus indicadores, esquerdo e direito.
E manifestou o desejo de pôr o dinheiro que tinha depositado na C... em nome dos réus, acompanhando-os de uma das vezes a fim de se efectuar a transferência para a conta bancária destes.
Constituía uso da C..., observado até 31 de Dezembro de 1987, admitir, nos documentos de autorização para movimentação por terceiros de contas bancárias em que figurasse como titular quem não soubesse escrever, a substituição da respectiva assinatura pela aposição da impressão digital do seu indicador direito, sendo que tal uso abrangia também a aposição conjunta da impressão digital do indicador esquerdo.
A essa prática se referem a circular 435/4, sobre assinaturas a rogo (documento de fls. 22) e as instruções de serviço (IS) nºs.
32/85 e 31/87 (documentos de fls. 23 e 24).
Tendo presente este conjunto de factos e a aceitação, pelas partes, de que a autora não sabe escrever, a Relação passou a abordar a questão jurídica da legalidade dos levantamentos, o que fez convocando, para o efeito, o disposto no artigo 407º do Código Comercial.
2.2.- Diz-nos o artigo 407º:
'Os depósitos feitos em bancos ou sociedades reger-se-ão pelos respectivos estatutos em tudo quanto não se achar prevenido neste capítulo e demais disposições aplicáveis'.
O artigo, inserido no Título XIII do Livro Segundo, respeitante ao depósito (como contrato especial do comércio), tem proporcionado dúvidas de interpretação, designadamente no que toca ao seu alcance, e, mais concretamente ainda, na significação do inciso relativo aos estatutos.
Cunha Gonçalves atribuí-lhe o sentido de regulamentos ou usos bancários, uma vez que 'os bancos explorados por um só banqueiro não podem ter estatutos; e o título constitutivo das sociedades bancárias, vulgarmente designado por estatutos não regula [...] tal assento'
(Cfr. Comentário ao Código Comercial Português, vol. II, pág. 382).
Este sentido amplo de estatuto não é aceite por aqueles que compatibilizam o preceito com um alcance mais restrito, em que por estatuto se entende 'o conjunto de normas especialmente aplicáveis a uma determinada pessoa', consagrando normas de relativo pormenor sobre as operações desempenhadas pelas instituições bancárias (cfr., v.g., Costa Freitas, 'O Depósito Bancário: Natureza Jurídica e Regime', in - Boletim da Ordem dos Advogados, nº 24 - Março de 1984 - pág. 7). Nesta leitura, predominante, o preceito determina tão só que se observem as regras contidas nos estatutos, naquilo que não estiver regulado ou prevenido quer no próprio Título de depósito (na realidade, o Título XIII não se acha subdividido em capítulos), quer noutros preceitos legais aplicáveis (assim, José Gabriel Pinto Coelho,
'Operações de Banco', in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 81, pág.
147).
De qualquer modo, ter-se-á pretendido exprimir, pela mediação legal, uma prática bancária - um 'uso da praça' - de simplificação formal.
Escreveu, a propósito, um autor do princípio do século, serem os bancos instituições de natureza especial que, pela influência que exercem no desenvolvimento comercial, carecem de 'regras especiais'. Sendo sua prática constante o depósito mercantil, seria inconveniente a obrigatoriedade da sujeição ao formalismo da lei civil; 'e, por isso, é que o Código dispõe que os depósitos feitos em bancos se regulam pelos respectivos estatutos' (cfr. Adriano Anthero, Comentário ao Código Comercial Português, vol. II, Porto, 1915, pág. 95).
É frequente, no âmbito do direito bancário, as respectivas instituições afeiçoarem a sua actividade segundo modelos simplificadores. Esses usos - os 'usos da praça' - não o são necessariamente sob uma perspectiva jurídica, a pressupor aceitação livre e acordo mútuo, mas assumem-se como práticas, a influir no conteúdo, nas consequências das operações bancárias e no comportamento do banqueiro (cfr., Diogo Leite de Campos, 'Anatocismo-Regras e Usos Particulares do Comércio', in Revista da Ordem dos Advogados, ano 48, I, Abril de 1988, pág. 51; Vasco Soares da Veiga, Direito Bancário, Lisboa, 1994, pág. 27.
A actuação da C... deverá ser analisada a esta luz:
sendo o Regulamento então vigente, aprovado pelo Decreto nº 694/70, de 31 de Dezembro, omisso quanto à movimentação de contas bancárias por titulares analfabetos, as instruções de serviço internas acolheram o 'uso bancário' que se contenta com uma declaração feita em documento particular com a assinatura a rogo do titular e a oposição da respectiva impressão digital, sem reconhecimento notarial.
É esta uma realidade que o acórdão recorrido reconhece, nomeadamente quando, a certa altura da fundamentação, descreve a prática da ré C... na dispensa do reconhecimento notarial, assimilando-a a uso da banca.
A decisão da matéria de facto foi anulada pelo acórdão de 26 de Outubro de 1991, já citado, exactamente para se esclarecer este ponto e, em consequência, veio a ser dado como provado 'que constituíu uso da C... até 31 /12/1987 que, no documento de autorização para movimentação por terceiros de contas bancárias em que seja titular quem não saiba escrever, se substitua a assinatura do titular pela oposição da sua impressão digital do indicador direito, com o esclarecimento de que tal uso abrangia a impressão digital em conjunto também do indicador esquerdo'.
Perante esta aclaração, o Tribunal não teve dúvidas em interpretar o inciso estatutos do artigo 407º do Código Comercial no sentido em que o fez, de acordo, aliás, não só com interpretação semelhante que o acórdão de 1991 já adiantara como com a jurisprudência corrente (v.g., acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Junho de 1980 e 8 de Maio de 1984, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, nº 298, págs. 354 e segs., e
337, págs. 377 e segs., respectivamente, da Relação de Évora, de 9 de Novembro de 1989, na Colectânea de Jurisprudência, ano XIV, pág. 258).
3.- Pretende a recorrente que a interpretação dada ao artigo 407º pelo acórdão recorrido, na medida em que releva o uso bancário segundo o qual um simples funcionário substitui o notário no reconhecimento a rogo, viola os princípios do Estado de direito democrático e da igualdade, respectivamente consagrados nos artigos 2º e 13º da Constituição da República
(CR).
Nas alegações de recurso vai, aliás, mais longe: ter-se-á lesado não só o princípio do Estado de direito, ao 'afastar-se sem mais' o preceituado sobre a matéria nos Códigos Civil e do Notariado, como se violou o próprio artigo 1º, 'onde se formaliza o princípio de que Portugal está empenhado na construção de uma sociedade justa' (sublinhado de origem). E, ao desrespeitar 'a garantia que para o (sic) recorrente, como analfabeto, resulta do estatuído nos artºs. 373º, nºs. 3 e 4, Código Civil e 166º do Código do Notariado, estaria o Estado a demitir-se duma das suas tarefas fundamentais, conforme ao disposto no artigo 9º, alínea b), da Constituição da República Portuguesa'.
Ora, se bem se compreende a tese da recorrente, a interpretação dada ao descrito segmento do artigo 407º do Código Comercial, ao contentar-se com a disciplina praxística dos regulamentos bancários em matéria de assinaturas alógrafas, aceitaria uma debilidade garantística jurídico-constitucionalmente censurável.
Mais exigente se revelaria, na verdade, o regime estabelecido para o rogo, quer no Código Civil - artigo 373º - quer no do Notariado - artigos 166º e 167º (do texto então em vigor).
Não se crê, no entanto, que a norma desse preceito, ao mandar observar as regras contidas nos estatutos naquilo que não estiver regulado ou prevenido no próprio título dos depósito ou em disposições legais aplicáveis, implique, na medida em que credencia uma prática bancária, ofensa à Constituição, seja ao seu artigo 1º, ao formalizar-se o empenhamento na construção de uma sociedade justa, baseada na dignidade da pessoa humana, seja ao artigo 2º, onde se consagra o princípio do Estado de direito democrático, seja, enfim, relativamente ao artigo 13º, que acolhe constitucionalmente o princípio da igualdade.
A Relação teve por írritas as considerações a este respeito sustentadas pela recorrente.
E, bem assim, entendeu não estarem postas em causa, no caso sub judicio as garantias de fidedignidade que devem envolver o rogo, considerando as cautelas que, na observância dos estatutos da C..., rodearam a sua prestação. De resto, como observou Vaz Serra, prescrevem-se, neste caso, formalidades que 'adaptando-se a sua especial índole, satisfaçam as mesmas necessidades de segurança que o artigo 127º do Código do Notariado [de então] pretende satisfazer no caso da procuração (cfr., Revista citada, ano 106, pág.
159).
Com efeito, não basta a proclamação retórica de princípios constitucionais mesmo que respeitem a uma 'tábua de valores' que, pela sua nuclearidade, inspiram e fundamentam todo o ordenamento jurídico nacional, tornando-se necessária a demonstração do seu desrespeito ou da sua subversão pelo legislador.
Ora, a esta luz, não se tem por constitucionalmente enfraquecida, no ponto de vista garantístico, a regulamentação em causa quanto
às assinaturas alógrafas que o artigo 407º, implicita, senão explicitamente, aplicado na decisão recorrida, prevê. Tão pouco se detecta violação do princípio da igualdade, entendido este como o vem sendo pela jurisprudência deste Tribunal, o qual, só por si, não veda ao legislador estabelecer circunstâncias ou factores que expliquem ou justifiquem a estatuição diversificada de uma desigualdade de regime jurídico num caso concreto, como se ponderou no acórdão nº 352/92 (in Diário da República, II Série, de 1 de Março de 1993).
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido.
Lisboa, 22 de Maio de 1996
Ass) Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Dinis Luis Nunes de Almeida