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Procº nº 674/92 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. No decurso de um inquérito que corria os seus termos na Comarca de --------, tendo sido detido o arguido A., foi o mesmo apresentado, para primeiro interrogatório judicial de arguido detido, ao juiz da comarca, B.. Findo o interrogatório, o Mmº Juiz proferiu, em 2 de Abril de 1992, despacho determinando a prisão preventiva do arguido, a fim de aguardar nessa situação os ulteriores termos do processo.
Neste despacho, o Mmº Juiz entendeu que a prisão preventiva era a medida de coacção proporcional à gravidade do crime e adequada às exigências cautelares. Com efeito, aquele magistrado judicial considerou suficientemente indiciada a prática de um crime de homicídio, pelo menos punível nos termos do artigo 131º do Código Penal, cuja pena de prisão máxima é superior a três anos. E a previsibilidade da pena que lhe poderia ser aplicada justificava o receio concreto de perigo de fuga.
Em 4 de Maio de 1992, veio o arguido requerer a revogação da prisão preventiva, mas tal pretensão foi indeferida pelo mesmo magistrado judicial.
2. Em 28 de Maio de 1992, o Representante do Ministério Público na comarca de ------- deduziu acusação, em processo comum e com a intervenção do tribunal colectivo, contra C., D. e A., imputando-lhes a co-autoria material e na forma consumada de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelo artigo 132º, nºs. 1 e 2, alínea g), do Código Penal, em concurso real com um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 306º, nºs. 3, alínea a), e 5, do mesmo Código.
O julgamento foi efectuado por tribunal colectivo, composto, entre outros, pelo Juiz de Direito do Tribunal Judicial da Comarca de -------, B., magistrado este que, como se referiu, fora quem decretara e mantivera a prisão preventiva do arguido A..
3. Na primeira sessão da audiência, realizada em 13 de Julho de
1992, o mandatário do arguido requereu a reapreciação da situação de prisão preventiva, o que foi indeferido.
Nessa mesma sessão, o mandatário do arguido, entendendo que o artigo
40º do Código de Processo Penal devia ter uma 'leitura extensiva', requereu a substituição do Mmº Juiz da comarca de ------, com o fundamento de que este magistrado, ao decretar a prisão preventiva do arguido, formulou ideias e conclusões quanto ao seu comportamento e às suas respostas, em termos de ser posta em causa a objectividade de apreciação dos factos que forem produzidos em audiência e abalada seriamente a imparcialidade do julgamento.
O magistrado em causa proferiu de imediato despacho, nos termos do disposto no artigo 41º, nº 2, do Código de Processo Penal, pronunciando-se pela improcedência do requerido. Para tanto, considerou que o impedimento suscitado não se alicerçava em nenhuma das situações previstas no artigo 39º do Código de Processo Penal e também não se subsumia no disposto no artigo 40º do mesmo Código, porquanto o impedimento resultante de participação em processo só ocorre quando o juiz tiver presidido a debate instrutório.
4. Não se conformando com o teor de tal despacho, do mesmo recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Évora, dizendo em síntese, nas suas alegações:
a) Os despachos que determinaram e mantiveram a prisão preventiva do recorrente, proferidos pelo juiz de instrução, durante o inquérito e quando a investigação estava já praticamente concluída, ultrapassam a mera função de controlo jurisdicional e configuram uma verdadeira dimensão acusatória, uma implícita pronúncia sobre a matéria fundamental da acusação e da defesa, tendo concluído, quanto à primeira, que era suficiente para justificar a futura condenação, e, quanto à segunda, que era irrelevante no plano fáctico e conceptual.
b) O meritíssimo juiz de instrução e juiz de julgamento fez errada interpretação da lei processual e constitucional, ao não reconhecer o impedimento contra si deduzido em audiência e ao recusar-se a interpretar extensivamente as normas que prevêem o impedimento por participação em processo.
c) Os artigos 39º, nº 1, alínea c), e 40º do Código de Processo Penal devem ser objecto de interpretação extensiva, de modo a proibir a composição do tribunal de julgamento pelo juiz de instrução que decretou a prisão preventiva, já que formou convicção sobre o objecto do processo, sobre a imputação ao arguido dos factos que constituem o crime, pronunciando-se para tanto sobre toda a prova essencial à decisão da causa.
d) Recusada a interpretação extensiva, deverá ser declarada a inconstitucionalidade daquelas normas, restrita, no mínimo, à parte em que não prevê o impedimento por intervenção em julgamento do juiz de instrução quando este, aplicando uma medida de coacção, se pronuncia sobre todo o objecto do processo e age na convicção de que o arguido será condenado - por violação do disposto no artigo 32º, nºs. 1, 4 e 5, da Constituição da República e da protecção constitucional da defesa que ele consagra, bem como do disposto no artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e dos princípios do acusatório e da imparcialidade, tanto na vertente orgânica, como na vertente subjectiva.
e) Reconhecido o impedimento, deverão ser declarados nulos todos os actos praticados pelo tribunal colectivo em que o juiz impedido se integrou, salvo aqueles que podem ser repetidos ou praticados utilmente e de que não resultam prejuízos para a justiça. De entre estes, destacam-se os despachos que autorizaram a substituição de testemunhas e peritos, os que ordenaram a realização de exames - irrelevantes para o caso - e o que determinou o adiamento da audiência - irremediável.
5. O Tribunal da Relação de Évora confirmou, por Acórdão de 28 de Agosto de 1992, o despacho recorrido. Quanto à questão de inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente, aquela instância ponderou, em síntese, que 'a norma contida no artigo 40º do Código de Processo penal não é inconstitucional, e a sê-lo na perspectiva do recorrente, uma vez que vem fundamentada no facto de no preceito não se incluir o juiz de instrução, tal inconstitucionalidade seria por omissão (artigo 283º da Constituição da República), que não pode ser apreciada em sede de fiscalização concreta' e, no que respeita à norma do artigo 39º, nº
1, alínea c), do mesmo Código, que a afirmação da sua inconstitucionalidade 'é de todo aberrante e ininteligível', já que o recorrente não pode ter querido que o juiz de instrução deva ser incluído na designação e adoptar as vestes de órgão de polícia.
6. É deste aresto que vem interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, indicando o recorrente como objecto a questão da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 39º, nº 1, alínea c), e
40º do Código de Processo Penal de 1987, na medida em que permitem a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e/ou manteve a prisão preventiva do arguido.
Neste Tribunal, o recorrente rematou as suas alegações com o seguinte quadro conclusivo:
a) Os despachos, proferidos pelo juiz de instrução na fase de inquérito, que determinam e mantêm a prisão preventiva do arguido, validando toda a matéria da acusação e desvalorizando a prova carreada pela defesa, ultrapassam a mera função de controlo jurisdicional, configuram uma dimensão acusatória e implicam a convicção e vinculação do juiz à matéria objecto do processo;
b) O juiz que, de tal modo convicto, ordena a prisão preventiva do arguido, não deve participar e intervir na audiência de discussão e julgamento, em obediência aos princípios da imparcialidade, da acusação e das garantias de defesa;
c) Os artigos 39º, nº 1, alínea c), e 40º do Código de Processo Penal são materialmente inconstitucionais, na parte em que não proíbem (e obrigam) a intervenção em julgamento do juiz que decreta tais medidas, por violação do disposto no artigo 32º, nºs. 1, 4, e 5 da Constituição da República e no artigo
6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Por sua vez, o Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal concluiu assim as suas alegações:
'As normas dos artigos 39º, nº 1, alínea c), e 40º do Código de Processo Penal, na medida em que permitem a intervenção no julgamento do juiz que, na fase do inquérito, decretou e/ou manteve a prisão preventiva do arguido, não violam qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente as garantias de defesa do arguido, a estrutura acusatória do processo criminal e a imparcialidade do tribunal'.
7. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir. Este Tribunal vai, no entanto, analisar apenas a questão da constitucionalidade da norma constante do artigo 40º do Código de Processo Penal, na dimensão acima assinalada, isto é, na medida em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e/ou manteve a prisão preventiva, uma vez que, não tendo a norma constante do artigo 39º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal sido aplicada no caso, não pode ela ser incluída no objecto do presente recurso.
II - Fundamentos.
8. Antes de se avançar na análise do mérito do recurso, importa formular duas considerações prévias.
A primeira prende-se como o facto de, ao contrário do sustentado pelo acórdão recorrido, a questão que se coloca neste recurso não ser de inconstitucionalidade por omissão, por falta de medidas legislativas necessárias
- a previsão de impedimento de intervenção no julgamento do juiz que, no inquérito, tenha determinado a prisão preventiva do arguido - para tornar efectivas as normas dos nºs. 1, 4 e 5 do artigo 32º da Constituição. É, antes, uma questão de inconstitucionalidade por acção, pois, na tese do recorrente, a norma questionada, ao permitir a intervenção daquele juiz no julgamento, viola os citados preceitos Constitucionais.
A segunda tem a ver com a determinação das normas e princípios que devem ser considerados como parâmetro de validade jurídico-constitucional da norma impugnada.
Como foi referido, para além dos preceitos constitucionais mencionados, o recorrente faz apelo também ao artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, para fundamentar o seu pedido de julgamento de inconstitucionalidade da norma acima assinalada, preceito esse que garante a qualquer pessoa o direito a que 'a sua causa seja examinada equitativa e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá [...] sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra si'. O Tribunal entende, no entanto, que não se justifica uma consideração autónoma deste preceito, à semelhança do que tem decidido em casos similares (cfr., inter alia, os Acórdãos nºs. 124/90 e
186/92, publicados no Diário da República, II Série, de 8 de Fevereiro de 1991, e de 18 de Setembro de 1992, respectivamente). Com efeito, no primeiro destes arestos, num caso em que, para sustentar a inconstitucionalidade do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, o recorrente apelava, a par de preceitos da Constituição, a princípios jurídico-constitucionais constantes da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e políticos, ponderou-se:
'Nesta impostação do problema, vai, naturalmente, implícita a ideia de que, em matéria de direitos fundamentais (ou de direitos do homem), o controlo da constitucionalidade abrange a apreciação da conformidade das normas internas com princípios jurídico-internacionais recebidos in foro domestico - ou seja: que a competência deste Tribunal para um tal controlo inclui também essa faculdade de apreciação.
O Tribunal não tem, porém, que pronunciar-se sobre a justeza de um tal modo de equacionar a questão.
In casu, com efeito, os princípios jurídico-internacionais invocados pelo recorrente - como adiante melhor se verá - não dizem nada que já se não contenha nas normas ou princípios constitucionais pertinentes. Por isso mesmo, serão tais princípios jurídico-internacionais tomados em consideração 'enquanto elementos coadjuvantes da clarificação do sentido e alcance' das normas ou princípios constitucionais relevantes para a decisão das mencionadas questões, e não 'como padrões autónomos de um juízo de constitucionalidade' (cfr., sobre isto, os Acórdãos deste Tribunal nºs. 440/87, 99/88 e 149/88, publicados no Diário da República, II Série, de, respectivamente, 17 de Fevereiro de 1988, 22 de Agosto de 1988 e 17 de Setembro de 1988)' [igualmente publicados no Boletim do Ministério da Justiça, nº 371, pág. 178, nº 376, pág. 308, e nº 378, pág. 192, respectivamente]'.
Não é, porém, apenas em relação a este aspecto que o parâmetro de aferição da constitucionalidade da norma questionada pode e deve ser restringido. Na verdade, em primeiro lugar, não se compreende a referência feita pelo recorrente ao nº 4 do artigo 32º da Lei Fundamental, que consagra o princípio da jurisdicionalização da instrução criminal. É que, não se questionando a constitucionalidade da norma do artigo 263º, nº 1, do Código de Processo Penal, que atribui ao Ministério Público a direcção do inquérito - norma esta que o Tribunal não julgou inconstitucional no Acórdão nº 23/90, publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Julho de 1990 -, não se vê como possam violar aquele preceito constitucional quer a intervenção do juiz a decretar e a manter prisões preventivas impostas no decurso do inquérito, quer a participação desse juiz no subsequente julgamento. Em segundo lugar, deve referir-se que também não faz sentido analisar autonomamente a pretensa violação das garantias de defesa proclamadas no nº 1 do artigo 32º da Constituição, uma vez que a mesma reconduz-se, afinal, à pretensa violação do princípio do acusatório: desta violação é que, na tese do recorrente, decorre a não imparcialidade do tribunal e desta quebra de imparcialidade é que resultaria diminuição das garantias de defesa.
O parâmetro de aferição da constitucionalidade da norma questionada pelo recorrente resume-se, assim, à questão da violação ou não do artigo 32º, nº
5, da Lei Fundamental.
9. A caracterização do sentido e alcance deste princípio foi feita no já citado Acórdão deste Tribunal nº 124/90. Pode ler-se nesse aresto:
'7.2. Para caracterizar o princípio do acusatório, diz Eduardo Correia (Caso julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Coimbra, 1948) que, segundo esse princípio, também chamado princípio da acusação, cumpre ao acusador fixar o se e o objecto concreto da actividade processual' (pág. 11), estando assim, 'a actividade substancial do juiz (...) limitada e condicionada pela acusação - judex na procedat ex officio' (pág. 23).
Em razão do princípio do acusatório, não pode, pois, haver julgamento sem prévio exercício da acção penal. Para dizer com Cavaleiro de Ferreira (Curso de Processo Penal, 2º volume, Lisboa, 1986, pág. 219): 'o facto e seu agente, consoante são indicados na acusação, limitam o objecto da jurisdição: esta só pode conhecer, em princípio, dos factos e agentes que a acusação indicar'.
Materialmente, pois, é o Estado, enquanto titular que é do ius puniendi, quem acusa e quem julga. Mas, formalmente, um é o órgão que procede ao julgamento (o juiz); outro, o que promove o processo (o Ministério Público).
Funcionando no processo criminal o Ministério Público como 'parte', embora só em sentido formal, realiza-se o princípio acusatório formal que, no dizer de Eduardo Correia, é 'o único que permite conciliar o interesse público da punição com o da imparcialidade do julgador, sem abandonarmos o tipo acusatório' (cfr. Processo Criminal, lições policopiadas ao curso do 5º ano jurídico de 1954/1955, pág. 15).
A acusação é, assim, a condição processual indispensável para que o arguido possa ser submetido a julgamento. E mais: é pela acusação que se define e se fixa o objecto do processo, isto é, o thema decidendum do julgamento. Na verdade, apenas a infracção e o seu autor, tal como são identificados na acusação, podem ser objecto de absolvição ou de condenação.
Sobre este tema, rescreve Castanheira Neves, a págs. 33 e 34 dos Sumários do Processo Criminal:
Ora, o que o princípio da acusação se propõe é justamente a conciliação do interesse público (e portanto da função estadual) da repressão com as exigências, de não menor interesse público, da imparcialidade e objectividade no julgamento das infracções. O que se consegue atribuindo a órgãos públicos fundamentalmente distintos, por um lado, a função de investigação e acusação dos delitos - que compete em regra ao Ministério Público, magistratura com um estatuto administrativo - e, por outro lado, a função de julgamento dessa acusação - que compete ao tribunal criminal como órgão de estatuto e estrutura jurisdicional. Desse modo, e já que, além disso, ao acusado será dada a mais ampla possibilidade de contradição e de defesa da acusação feita, o julgador, se se encontra numa situação super partes, também não está interessado senão na apreciação objectiva do 'caso' criminal que lhe é submetido.
De sua parte, Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I volume, Coimbra,
1981, págs. 136 e 137), depois de acentuar que 'a imparcialidade e objectividade' são, 'conjuntamente com a independência', 'condições indispensáveis de uma autêntica decisão judicial' e que elas 'só estarão asseguradas quando a entidade julgadora não tenha funções de investigação preliminar e acusação das infracções, mas antes possa apenas investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado (em regra o Ministério Público ou um juiz de instrução)', afirma:
É precisamente com este conteúdo que modernamente se afirma o princípio da acusação.
7.3. A Constituição dispõe no artigo 32º, nº 5:
5. O processo criminal tem estrutura acusatória (...).
Ao consagrar uma tal garantia - a garantia do processo criminal de tipo acusatório - o que, pois, a Lei Fundamental pretende assegurar é que a entidade que julga (o juiz) não tenha funções de investigação e acusação: esta última tarefa há-de ser levada a efeito por uma outra entidade (em regra, o Ministério Público); e, no julgamento do feito penal, há-de o juiz mover-se dentro dos limites postos pela acusação. Com isto, como decorre do que atrás se disse, pretende a Constituição que os arguidos, que hajam de ser submetidos a julgamento, acusados da prática de uma infracção criminal, tenham um julgamento independente e imparcial, que é, justamente, o que também se lhes garante no artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro, quando aí se dispõe como segue:
Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial
(...).
Num Estado de direito, a solução jurídica dos conflitos há-de, com efeito, fazer-se sempre com observância de regras de independência e de imparcialidade, pois tal é uma exigência do direito de acesso aos tribunais, que a Constituição consagra no artigo 20º, nº 1 (cfr., neste sentido, o Acórdão nº 86/88 deste Tribunal, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Agosto de 1988). A garantia de um julgamento independente e imparcial é, de resto, também uma dimensão - e dimensão importante - do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição, para o processo criminal, pois este tem que ser sempre a due process of law.
Para que haja um julgamento independente e imparcial, necessário é o que o juiz que a ele proceda possa julgar com independência e imparcialidade.
Ora, a independência do juiz 'é acima de tudo, um dever - um dever
ético-social. A 'independência vocacional', ou seja, a decisão de cada juiz de, ao 'dizer o Direito', o fazer sempre esforçando-se por se manter alheio - e acima - de influências exteriores é, assim, o seu punctum saliens. A independência, nessa perspectiva, é, sobretudo, uma responsabilidade que terá a
'dimensão' ou a 'densidade' da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz' (cfr. Acórdão nº 135/88 deste Tribunal, publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Setembro de 1988).
Mas, acrescentou-se no aresto acabado de citar:
Com sublinhar estes pontos, não pode, porém, esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que 'promova' e facilite aquela 'independência vocacional'.
Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de 'administrar justiça'. Nesse caso, não deve poder intervir no rocesso, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis.
Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais, ao 'administrar a justiça', actuem, de facto, 'em nome do povo' (cfr. artigo 205º, nº 1, da Constituição)'.
10. Por sua vez, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 205,
206, depois de considerarem que o princípio do acusatório, plasmado no nº 5 do artigo 32º da Lei Fundamental, constitui 'uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial' escrevem:
'A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento: no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador'.
E mais adiante:
'Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação; b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento, isto é, o órgão que faz a instrução não faz a audiência de discussão e julgamento e vice-versa'.
11. Apurado o sentido e alcance do princípio do acusatório, vejamos, agora, se ele é violado pela norma questionada pelo recorrente.
11.1. A norma cuja constitucionalidade é contestada neste processo tem o seguinte conteúdo:
'Artigo 40º
(Impedimento por participação em processo)
Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado, ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido'.
A razão de ser deste preceito é precisamente a estrutura acusatória do processo penal constitucionalmente imposta. O impedimento de intervenção do juiz de instrução na fase do julgamento tem como objectivo obstar a que aquele magistrado possa eventualmente vir a ser influenciado pelo conhecimento dos factos do processo no decurso da fase instrutória, com vista a garantir a imparcialidade e independência do tribunal.
Contudo, para que o impedimento exista, o juiz de instrução há-de ter intervindo num acto específico da fase de instrução: o debate instrutório. Não se verifica, assim, qualquer impedimento se o juiz interveio na fase de inquérito, nos termos do disposto nos artigos 268º e 269º, ou mesmo na instrução, desde que não tenha presidido ao respectivo debate, e não haja, por conseguinte, proferido o despacho de pronúncia.
O debate instrutório existe sempre que haja instrução, mas na estrutura do actual Código de Processo Penal esta é facultativa. De qualquer modo, nos processos em que não haja instrução, qualquer acto praticado durante o inquérito que contenda com direitos liberdades e garantias é da competência de um juiz.
Durante o inquérito, cuja direcção cabe ao Ministério Público, o Código de Processo Penal estipulou que certos actos processuais, por contenderem de modo especial com a esfera da liberdade ou da intimidade das pessoas, são da competência exclusiva do juiz de instrução. Alguns outros actos, por representarem menor ingerência naquelas esferas, estão sujeitos a prévia autorização daquele magistrado. No conjunto dos primeiros, cuja enumeração consta do nº 1 do artigo 268º do Código de Processo Penal, destacam-se o
'primeiro interrogatório judicial de arguido detido' e a aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial.
11.2. Na óptica de J. Figueiredo Dias, o impedimento consagrado no artigo 40º do Código de Processo Penal constitui uma implicação material do princípio da acusação, mas 'a solução do impedimento expresso por participação em processo anterior já não se justifica se atentarmos em actos isolados (v.g. aplicação de uma medida de coacção) que o juiz do julgamento tiver praticado na qualidade de juiz de instrução' (cfr. Direito Processual Penal, Lições Coligidas por Maria João Antunes, Secção de Textos da Faculdade de Direito de Coimbra,
1988/89, p. 101,102). Ainda de acordo com o mesmo autor, a legislação processual penal portuguesa, à luz de um conceito objectivo de imparcialidade, não considera como impedimento expresso a circunstância de o juiz ter intervindo em actos processuais isolados na qualidade de juiz de instrução, como, por exemplo, quando, na fase de inquérito, aplica, a requerimento do Ministério Público, a prisão preventiva. Mas, num tal caso, 'os sujeitos processuais interessados poderão, no entanto, apresentar um requerimento de impedimento do juiz - e o próprio juiz poderá formular um pedido de dispensa -, sempre que a intervenção anterior no processo comporte circunstâncias que impliquem desconfianças quanto
à imparcialidade do juiz' (cfr. J. Figueiredo Dias/M. João Antunes, La Notion Européenne de Tribunal Indépendent et Impartial, Une Approche à Partir du Droit Portugais de Procédure Pénale, in Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal Comparé, 1990, p. 739, 740).
A solução constante do artigo 40º do Código de Processo Penal é, no entanto, criticada por G. Marques da Silva (cfr. Do Processo Penal Preliminar, Lisboa, 1990, p. 416, 417), nos seguintes termos:
'Não se entende a limitação do impedimento à presidência do debate instrutório. Na verdade, se o juiz tiver praticado actos de inquérito ou actos de instrução pode também desde logo ter formado a sua convicção, pelo que a confiança na sua imparcialidade é igualmente periclitante. Por igualdade ou maioria de razão, se o juiz de instrução, ainda que não tenha presidido à instrução, tiver, no decurso do processo preliminar, ordenado a aplicação ao arguido de medidas de coacção.
Entendemos que a participação do juiz de instrução no inquérito ou na instrução, além da hipótese de impedimento estabelecida pelo artº. 40º, é fundamento de recusa ou de escusa, nos termos do artº 43º. O grau de intervenção deverá então ser ponderado em ordem a verificar se é ou não
«adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade». É que a intervenção do juiz no processo pode ser de molde tal que não seja razoável considerar qualquer suspeição relativamente à sua imparcialidade, o que sucede, v.g., quando se tiver limitado a proferir despacho de mero expediente'.
J. da Costa Pimenta (cfr. Código de Processo Penal Anotado, 2ª ed., Lisboa, Rei dos Livros, 1991, p. 146) vai mais longe nas críticas ao artigo 40º do Código de Processo Penal, referindo que 'o presente artigo é parcialmente inconstitucional, na medida em que permite que o juiz de instrução que, embora não presidindo ao debate instrutório, haja aplicado medidas de coacção ao arguido, nomeadamente a prisão preventiva, ou lhe tenha indeferido o pedido de habeas corpus, em virtude de detenção ilegal, intervenha em julgamento, em recurso ou em pedido de revisão. Na verdade, com tal proceder, viola-se o princípio da defesa, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição. Em todo o caso, mesmo que se entenda não haver inconstitucionalidade, sempre em tais circunstâncias o juiz pode escusar-se ou ser recusado'.
12.1. Poderá dizer-se, numa determinada visão das coisas, que a norma constante do artigo 40º do Código de Processo Penal, na medida em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou a prisão preventiva, não infringe o princípio do acusatório. De acordo com aquela óptica, são perfeitamente transponíveis para a questão de constitucionalidade que este Tribunal tem agora entre mãos os argumentos explanados no Acórdão deste Tribunal nº. 124/90, a propósito da não violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição pelas normas que, no âmbito do Código de Processo Penal de 1929, permitiam que o tribunal competente para a pronúncia o fosse também para o julgamento (julgamento em tribunal singular) ou que o juiz da pronúncia integrasse o tribunal de julgamento (julgamento em tribunal colectivo ou com intervenção do júri). Como então se salientou, no sistema processual penal instituído pelo Código de Processo Penal de 1929 e legislação complementar, o despacho de pronúncia era uma realidade absolutamente diferenciada da acusação: a acusação é o acto por meio do qual o Ministério Público ou a parte ofendida requer que o acusado responda judicialmente pela infracção ou infracções criminais que nela se lhe imputam; através da pronúncia, sempre alicerçada nas provas até aí colhidas, e sem ultrapassar os quadros da acusação, formula o juiz um mero juízo de suspeita, embora de séria suspeita, reservando para o julgamento, e face a outro universo probatório, a eventual formulação de um juízo de convicção ou de condenação. Nesta perspectiva, o despacho de pronúncia tem uma função claramente selectiva: visa restringir a ida a julgamento aos acusados em relação aos quais se tenha reunido um conjunto de elementos probatórios que persuadam da sua culpabilidade e que convençam que os mesmos possivelmente virão a ser condenados. Considerando-se o despacho de pronúncia na sua função própria, que é uma função estritamente garantística, não ocorria nenhuma infracção do princípio acusatório: sendo a acusação e a pronúncia actos processuais que, pelo seu conteúdo, pela sua função e pela sua autoria claramente se diferenciam um do outro, e sendo certo que, segundo a estrutura acusatória do processo criminal, a acusação e o julgamento terão de provir de órgãos diferenciados, sendo ainda ilegítima, a este nível, qualquer confusão entre os titulares de tais órgãos, não menos certo é que o juiz que pronuncia e se limita a repetir, no todo ou em parte, a dialéctica da acusação, não participa, nem minimamente, do acto acusatório.
No mesmo aresto salientou-se ainda que a pronúncia se limita a reproduzir os factos constantes da acusação, pelo que desempenha uma pura função de garantia, já que com ela o que se visa é impedir que o arguido seja submetido a julgamento sem que haja motivo sério para tanto. Assim, o despacho de pronúncia não representa uma qualquer antecipação de um juízo de condenação do arguido, tanto mais que a única prova susceptível de conduzir à condenação é a prova que for produzida na audiência de discussão e julgamento, e não aquela que o juiz da pronúncia considerou suficiente para que fosse submetido a julgamento. Por isso, o facto de o juiz que profere o despacho de pronúncia poder, depois, intervir no julgamento não viola o princípio do acusatório: de um lado, continua a existir distinção entre a entidade que faz a instrução e deduz a acusação e aquela que procede ao julgamento; e, de outro lado, o juiz que profere o despacho de pronúncia não deixa, mesmo aos olhos do arguido e do público, de ser um juiz independente e imparcial para julgar o feito penal com os contornos que a acusação lhe definiu.
12.2. De harmonia com o entendimento que vem sendo referido, a norma acima identificada não infringe o princípio do acusatório, desde logo porque a decisão do juiz sobre a prisão preventiva - fundada na existência de 'fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos' (cfr. o artigo 202º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal) - assenta, como sublinha o Exmº Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, num juízo indiciário e, por natureza, precário, periodicamente revisível, nos termos do artigo 213º daquele Código, atenta a subsistência em cada momento processual dos pressupostos daquela. Um tal juízo indiciário 'de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos' não implica qualquer comprometimento do juiz que decrete ou mantenha a prisão no sentido da futura condenação do arguido, pois a sua condenação ou absolvição dependerá exclusivamente da prova que for produzida e valorada na audiência de julgamento.
Não representando a intervenção pontual do juiz, na fase do inquérito, de decretamento ou manutenção da prisão preventiva do arguido - intervenção essa imposta por preocupações de garantia dos direitos do arguido - a assunção da direcção da instrução ou da autoria da acusação, continua a existir distinção entre a entidade que faz a instrução e deduz a acusação e aquela que procede ao julgamento. Além disso, sendo diferentes os universos e as exigências das provas que possibilitam a imposição da prisão preventiva e que fundamentam a condenação, o juiz que, na fase do inquérito, decide acerca da prisão preventiva do arguido não deixa de ser um juiz independente e imparcial para julgar o feito penal.
12.3. Ainda na mesma perspectiva, a solução de estender o impedimento do artigo 40º do Código de Processo Penal a todos os actos isolados susceptíveis de serem praticados pelo juiz de instrução na fase preliminar do processo penal apresentar-se-ia, na generalidade dos casos, totalmente inadequada e desnecessária, em virtude de muitos deles não colocarem minimamente em causa as garantias de independência e de imparcialidade do tribunal, ínsitos no princípio da acusação, consagrado no artigo 32º, nº 5, da Lei Fundamental. Uma tal solução acarretaria ainda enormes dificuldades no domínio da composição dos tribunais de julgamento (singulares e colectivos), pois ficariam impedidos de fazerem parte dos mesmos os juízes que tivessem intervindo em actos processuais nas fases do inquérito e da instrução.
A situação em que o juiz é chamado a pronunciar-se sobre a prisão preventiva do arguido não reclamaria um tratamento diverso do que vem de assinalar-se. De facto, por um lado, o legislador, ao reservar a um juiz - em regra, o de instrução criminal - a imposição ou manutenção das medidas restritivas da liberdade dos arguidos no decurso do inquérito, fá-lo com o objectivo de garantir os direitos do arguido. Por outro lado, o juiz, ao decretar ou manter a prisão preventiva, não está a assumir a direcção da instrução ou a chamar a si a paternidade da acusação, mas tão-só a acautelar a presença do arguido no decurso do processo e a execução da decisão final, nos termos do artigo 204º do Código de Processo Penal, que estabelece os requisitos gerais de aplicação das medidas de coacção.
12.4. A tese que vem sendo exposta não nega que as medidas de coacção estão escalonadas em função da gravidade da pena aplicável e que a prisão preventiva é a mais grave delas, só podendo ser decretada quando forem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção e se 'houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos' [artigo 202º, alínea a), do Código de Processo Penal]. Quer isto dizer que, verificado o pressuposto previsto nesta disposição do Código de Processo Penal, a prisão preventiva só será aplicável se for idónea para satisfazer as finalidades cautelares do caso concreto e proporcional 'à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada ao arguido em razão da prática do crime ou crimes indiciados no processo' (cfr. G. Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Verbo, 1993, p. 218) e, além disso, se se mostrarem excluídas, por inadequadas ou insuficientes, as restantes medidas de coacção (princípio da subsidiaridade da prisão preventiva).
Ora, ao apreciar a subsistência de 'fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos' e a adequação e proporcionalidade da prisão preventiva, o juiz necessita, para esse efeito, de valorar, para formar a sua convicção, os elementos já existentes no processo.
Uma tal apreciação ou valoração dos elementos indispensáveis ao decretamento ou à manutenção da prisão preventiva tem, no entanto, como já se assinalou, uma natureza indiciária e precária, dependendo, além disso, a decisão final do julgamento não dessa apreciação ou valoração, mas sim da avaliação que vier a ser feita da prova produzida no julgamento. A intervenção do juiz naquele acto processual na fase de inquérito, atentas a sua natureza e características, não será, assim, de molde a comprometer a independência e a imparcialidade do mesmo juiz na fase do julgamento.
13. De acordo com outra perspectiva, a norma constante do artigo 40º do Código de Processo Penal, na medida em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou a prisão preventiva do arguido, será inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição, não sendo válidos os argumentos que vêm de ser referidos.
14. Seja como for e independentemente da solução a dar à questão da constitucionalidade da norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, no segmento em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, apenas decretou a prisão preventiva do arguido, convém salientar que, no caso dos autos, o juiz que participou no julgamento não só decretou como ainda manteve posteriormente a prisão preventiva do arguido, quando apreciou um requerimento do arguido em que solicitava a sua revogação.
Quer isto dizer que a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, se pronunciou sobre a prisão preventiva do arguido, foi aplicada, in casu, numa dupla dimensão: naquela em que o juiz decretou, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, a prisão preventiva e naquela em que, em data posterior, já bem próxima da data da acusação, confirmou a prisão preventiva. Ora, aplicada nesta dupla dimensão, a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal infringe claramente o princípio da imparcialidade objectiva do juiz, ínsito no princípio do acusatório, constante do nº 5 do artigo 32º da Constituição. Na verdade, quando o juiz reaprecia a subsistência da prisão preventiva que antes decretou, num momento em que o inquérito está a chegar ao seu termo e em que já existem no processo quase todos os elementos que é possível carrear sobre a autoria do crime imputado ao arguido e sobre a sua gravidade, pode dizer-se que fica com uma convicção de tal modo arreigada quanto a estes aspectos do processo que, objectivamente - e sem prejuízo da independência interior que ele for capaz de preservar -, fica inexoravelmente comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do julgamento.
Conclui-se, assim, que a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido,
é inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição.
15. A conclusão no sentido da inconstitucionalidade a que acaba de chegar-se situa-se na linha da Jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a propósito da imparcialidade do tribunal, garantida pelo nº 1 do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Analisando essa jurisprudência, salienta Ireneu Barreto (cfr. Notas para um Processo Equitativo, Análise do Artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à Luz da Jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, in Documentação e Direito Comparado nºs. 49/50, p. 114,115):
'A imparcialidade do juiz pode ser vista de dois modos, numa aproximação subjectiva ou objectiva.
Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário.
Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done.
Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos'.
Dois casos apreciados pela Comissão e pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem merecem ser citados: o caso De Cubber e o caso Hauschildt.
No primeiro, aquele tribunal considerou violador do nº 1 do artigo
6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem o exercício sucessivo das funções de juiz de instrução e de juiz do julgamento por um mesmo magistrado numa mesma causa, fundamentalmente porque tal magistrado, diferentemente dos seus colegas, adquire um conhecimento de forma particularmente profunda do processo, graças aos diversos meios de investigação que havia utilizado durante a investigação, e, por isso, pode ter já formado uma opinião prévia a pesar eventualmente na balança no momento da decisão (cfr. Tribunal Europeo de Derechos Humanos, Jurisprudencia 1984-1987, Madrid, p. 256 ss.).
No segundo, o mesmo Tribunal, depois de considerar que, num sistema como o dinamarquês, a tomada de decisões por um juiz de primeira instância ou por um juiz de um tribunal de recurso antes do julgamento, designadamente sobre a detenção provisória, não pode justificar por si apreensões quanto à sua imparcialidade, salientou que 'certas circunstâncias podem, no entanto, num caso determinado, autorizar uma conclusão diferente'. No caso concreto, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entendeu que não poderia deixar de atribuir uma importância especial a um facto: em nove dos despachos que prorrogaram a detenção provisória de M. Hauschildt, o juiz Larsen apoiou-se explicitamente no artigo 762º, § 2º, da Lei Dinamarquesa sobre a Administração da Justiça. Ao prolongarem aquela detenção antes do início da discussão e julgamento no tribunal de recurso, os magistrados que participaram na tomada da decisão final basearam-se eles mesmos por duas vezes no mesmo preceito. Ora, para aplicar o artigo 762º, § 2º, um juiz deve, entre o mais, certificar-se da existência de
'suspeitas particularmente fortes' de que o interessado cometeu as infracções de que é acusado. E, segundo o Tribunal, de acordo com as explicações oficiais, isso significa que é preciso ter a convicção de uma culpabilidade 'muito clara'. Em face de tudo isto, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, após concluir que 'a diferença entre a questão a decidir para recorrer ao dito artigo e o problema a resolver no termo do processo se apresenta então ínfima', pelo que
'nas circunstâncias da causa a imparcialidade da jurisdição competente podia parecer sujeita a suspeita, podendo considerar-se como objectivamente justificados os receios de M. Hauschildt a esse respeito', decidiu que havia violação do artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cfr. Revue Universelle des Droits de l'Homme, vol. I, 1989, p.174 ss.).
Também na presente situação se poderá dizer, tal como o fez o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Hauschildt acabado de referir, que se verifica uma circunstância particular que justifica uma solução de inconstitucionalidade: a circunstância de ter o juiz que participou no julgamento não apenas decretado, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido, a prisão preventiva deste, mas ainda confirmado, em data posterior e já bem próxima da data da acusação, a prisão preventiva do mesmo arguido - tudo em termos de poder criar no arguido e nos cidadãos a suspeita de que aquele juiz, ao decidir, possa não o fazer com imparcialidade.
III - Decisão.
16. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma constante do artigo 40º do Código de Processo Penal, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão recorrido, que deve ser reformado em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 10 de Julho de 1996 Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Messias Bento Bravo Serra Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa