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Proc.Nº 477/91
Sec. 1ª
Rel. Cons.
Vítor Nunes de
Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - A A. interpôs recurso contencioso de anulação do
despacho do Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do
Estado, comunicado por ofício datado de 3 de Novembro de 1989 e corrigido por
ofício de 15 do mesmo mês, pelo qual lhe foi comunicada a deliberação daquele
Instituto de pôr fim, mediante denúncia, ao contrato de arrendamento de que a
recorrente é titular, relativo a uma loja num edifício propriedade do
recorrente, invocando não ser aplicável ao caso o Decreto-Lei nº 507-A/79, de 24
de Dezembro, e que, se o fosse, a norma que permite a denúncia do arrendamento
seria inconstitucional por violar o artigo 62º da Constituição.
Após convite à recorrente para corrigir a petição de
recurso, o Instituto recorrido veio responder alegando que a denúncia do
contrato de arrendamento com a recorrente se deveu à necessidade da instalação
dos seus serviços no prédio que fora adquirido pelo ex-Fundo de Fomento da
Habitação, ao qual veio a suceder o Instituto recorrido, e se fundamentou no
Decreto-Lei nº 507-A/79, de 24 de Dezembro, propondo-se o Instituto indemnizar
a recorrente nos termos legais previstos naquele diploma.
Tanto a recorrente como o recorrido mantiveram nas
respectivas alegações as posições dos articulados.
2. - Por decisão de 3 de Outubro de 1990, do Tribunal
Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL), o recurso foi rejeitado por se ter
entendido que o Decreto-Lei nº 507-A/79 não violava o artigo 62º da
Constituição, nem a deliberação do Instituto recorrido enfermava de violação de
lei.
Não se conformando com tal decisão, a sociedade A.
interpôs recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal Administrativo (STA),
reiterando o entendimento que vem defendendo de que o Decreto-Lei nº 507‑A/79
não é aplicável ao caso, por não conter uma norma como a que existia na anterior
legislação (artigo 7º do Decreto-Lei nº 23 465, de 18 de Janeiro de 1934),
restringindo a legislação actual o direito de denúncia dos arrendamentos feitos
pelo próprio Estado, dos bens que a este pertencem.
E, depois de defender que o artigo 62º da Constituição
abrange não apenas a propriedade das coisas, mas também outros direitos de valor
patrimonial, e que não são só os bens imóveis que estão sujeitos a expropriação,
mas também os direitos a eles relativos, a recorrente considera que '(...) ao
celebrar com a entidade particular o contrato de arrendamento da parte do
edifício em questão, adquiriu por esse facto o direito à não denunciabilidade
livre desse contrato. Valor patrimonial de grande mérito, e que ela própria
reforçou e empolou, criando no local um estabelecimento de grande valia.'
E, logo a seguir, refere a recorrente que 'a admitir-se
que o Estado, só porque adquiriu posteriormente a propriedade do mesmo prédio,
através de um acto a que a arrendatária foi estranha, ficou com a possibilidade
de denunciar o contrato, mediante a irrisória indemnização estabelecida no
artigo 10º do diploma em vigor, seria aceite a espoliação como meio legítimo de
adquirir, espécie de confisco, que a nossa lei proíbe e repele. Isto tanto mais
que, não tendo a recorrente intervindo no acto de aquisição por parte do Estado,
nem tendo praticado qualquer acto digno de reparo, não merece ou não deve
merecer qualquer sanção'.
Não tendo o Instituto recorrido apresentado
contra‑alegações, veio a questão a ser resolvida pelo STA, através do acórdão de
27 de Junho de 1991, que negou provimento ao recurso interposto. O acórdão, com
base na interpretação dos artigos 8º e 9º, nº 1, do Decreto-Lei º 507‑A/79
desatende a questão da inaplicabilidade ao caso daquele diploma legal.
Enfrenta depois o acórdão a questão da violação do
artigo 62º da Constituição, analisando as duas vertentes da questão: por um
lado, admitindo que o âmbito de protecção da norma constitucional abrange o
direito de propriedade sobre coisas materiais e imateriais (desde que estas
tenham um conteúdo patrimonial), todavia o 'direito à não denunciabilidade livre
do contrato de arrendamento' não só não é um 'núcleo patrimonial sobre que
recaia um direito de propriedade, como é apenas uma situação meramente
objectiva, por outras palavras, uma simples expectativa dependente da
paralisação legal da faculdade de denúncia do locador'; por outro lado, mesmo
que assim se não entendesse, nunca poderia falar-se de «verdadeira extorsão»,
como o faz a recorrente, ao considerar ser 'irrisória a indemnização
estabelecida no artigo 10º do diploma em vigor', pois só o seria, se a própria
renda também fosse irrisória, caso em que não poderia então 'dizer-se que não
seja justa visto reflectir equilíbrio de recíprocas prestações', assim afastando
a hipótese de violação do artigo 62º da Constituição.
Finalmente, o acórdão do STA pondera que, 'tendo alguma
vez integrado a esfera jurídica da recorrente o que esta designa de «direito à
não denunciabilidade livre» do contrato de arrendamento, ela já não era titular
desse «direito» à data do acto recorrido, 31-10-89, por isso não podendo
invocá-lo então ou agora'.
Com efeito, na altura da aquisição do imóvel pelo
Estado, a recorrente já era titular do contrato de arrendamento agora
denunciado, estando nessa época em vigor o Decreto-Lei nº 23 465, que
estabelecia a livre denunciabilidade dos contratos de arrendamento dos imóveis
do Estado e que continha um preceito legal que determinava expressamente a
aplicação de tal regime aos contratos de arrendamento em vigor, de prédios do
Estado, mesmo que tivessem sido celebrados pelos anteriores senhorios (artigo
7º), pelo que, conforme se escreve no acórdão, 'transferida a propriedade do
prédio, no qual a recorrente tinha arrendada uma loja, na vigência desse
diploma, passou a ficar sujeita à denúncia do contrato pelo Estado adquirente,
quando lhe conviesse, conforme o artigo 1º do mesmo diploma, caindo o que
entende ser o seu «direito à não denunciabilidade livre».'
Para concluir pelo total improvimento do recurso, o
acórdão do STA, afasta, por último, a alegada violação, pela decisão recorrida,
dos artigos 1095º e 1096º do Código Civil.
É desta decisão que vem interposto pela sociedade A., o
presente recurso de constitucionalidade.
3. - A recorrente disse pretender que se aprecie a
conformidade constitucional do artigo 9º do Decreto-Lei nº 507-A/79, de 24 de
Dezembro, 'na medida em que se entenda, como se julgou, que o referido diploma
permite a livre denúncia do arrendamento, mesmo quando o Estado haja adquirido o
prédio já arrendado', interpretação esta que violaria o artigo 62º, nº 2 da
Constituição.
Tanto a sociedade recorrente como o Instituto recorrido
apresentaram alegações, tendo a primeira formulado as seguintes conclusões:
'1º Julgou-se no acórdão sob recurso, embora erradamente, que o D.L. nº 507-A/79
permite ao Estado ou aos seus organismos autónomos denunciar os contratos de
arrendamento urbano em benefício do interesse público, mesmo quando esses
arrendamentos hajam sido feitos por particulares antes da sua aquisição pelo
ente público;
2º E tal decisão, porque transitada em julgado, faz lei entre as partes; Ora,
3º Segundo esse entendimento o diploma em que funda é inconstitucional, uma
vez que ofende o disposto nos arts. 13º e 62º da Constituição que nos rege; Na
verdade,
4º Ao celebrar o arrendamento com um particular a arrendatária adquiriu o
direito à indenunciabilidade do contrato, salvo nos casos previstos na lei comum
aplicável a esses contratos;
5º Esse direito à indenunciabilidade constitui um valor patrimonial
apreciável, protegido pela Constituição, como sustenta a doutrina mais
autorizada;
6º Permitir que o estado ou o IGAPHE adquira por menos de 100 contos aquilo
que ele próprio estimou, nas negociações que precederam a denúncia, em 50 000
000$00, constitui injustiça gritante, ofensiva dos interesses da recorrente, e é
isso justamente que a Constituição houve por bem preservar no artigo 62º,
garantindo o direito patrimonial legitimamente adquirido e só permitindo a
aquisição mediante expropriação, com pagamento da justa indemnização;
7º E essa garantia desapareceria se fosse possível ao Estado (ou às
autarquias) desapossar a arrendatária mediante a exígua indemnização fixada na
lei que se quis aplicar;
8º E a arrendatária seria, assim, obrigada a contribuir desigualmente para o
bem público, contra a regra estabelecida do artigo 13º da Constituição;
9º A decisão é, assim, inconstitucional, por violar o disposto no art. 13º e
62º da Constituição.'
Pelo seu lado, o IGAPHE recorrido formulou as conclusões
que a seguir se transcrevem:
'1º- O artº 1083º do CC (actuais artºs 5º e 6º do RAU) excepciona os
arrendamentos de imóveis do Estado do regime geral da locação civil, ficando de
fora todas as disposições relativas à denúncia dos contratos de arrendamento;
daí que,
2º- o regime jurídico da denúncia dos arrendamentos dos imóveis integrados no
domínio privado do Estado se encontra hoje disciplinado pelo DL 507-A/79, de 24
de Dezembro;
3º- Nos termos deste diploma (art.º 8º) o Estado só pode denunciar os
arrendamentos relativos aos seus prédios quando estes ou os respectivos locais
se destinem à instalação dos seus serviços ou a outros fins de utilidade
pública;
4º- Sobrepondo-se o interesse público ao interesse privado no caso vertente,
tal é suficiente para justificar a denúncia do arrendamento, atento o regime
especial habilitador dessa actuação (artº 9º) constituindo aquela um dever
privilégio do Estado fundado em motivos de natureza pública;
5º- No artº 8º do DL de 79 não se destrinça se os contratos de arrendamento aí
consagrados são celebrados apenas entre particulares, ou se, ao invés, entre o
Estado e o particular; pelo que se deve entender que nesse preceito se abrangem
ambas as situações;
6º- No artº 9º, nº 1 do mesmo diploma legal estabelece-se que, no caso de o
prédio ter sido adquirido já arrendado, é o serviço adquirente que notificará o
locatário da denúncia do arrendamento, situando-se, concretamente, no âmbito da
administração indirecta do Estado;
7º- Em face da aquisição realizada e encontrando-se parte do imóvel arrendado
à ora recorrente, o ex-FFH assumiu a posição de locador, tendo sucedido nos
mesmos direitos e obrigações do anterior senhorio-artº 1057º CC-, e,
posteriormente, por transferência patrimonial ope legis -artº 30, 1 do DL
88/87-, passou o ora recorrido a ser o titular do direito de propriedade sobre o
imóvel e, concomitantemente, a ocupar a posição de locador;
8º- Ocorrendo tal transmissão ipso iure e sendo inexigível o consentimento do
locatário para a transmissão daquele direito, podia a recorrente, logo que teve
conhecimento da alienação do imóvel em causa, ter exercido o seu direito de
preferência na aquisição - artº 1117º do CC;
9º- Os artigos 1º a 7º do DL 23 465 encontram-se tacitamente revogados pelo DL
507-A/79, sendo que o espírito da lei foi no sentido de manter a prerrogativa do
Estado, determinando critérios para afastar a discricionaridade deste quanto à
denúncia;
10º- A grande inovação inserida no diploma de 79 fundou-se, assim, no abandono
do princípio segundo o qual o Estado podia, à luz do diploma de 34, denunciar os
arrendamentos dos seus imóveis, quando isso lhe conviesse (artº 1º), situação
que não se verifica actualmente, dado condicionar-se tal direito de denúncia aos
caos extremos previstos e acautelados no artº 8º do DL 507-A/79;
11º- Correspondendo o artº 9º, nº 1 do diploma de 79 integralmente à «mens
legis», atenta a unidade do sistema jurídico e presumindo-se que o legislador
soube expressar o seu pensamento em adequados termos (artº 9º CC), daí resulta
que a recorrente terá sempre direito à indemnização estabelecida no artº 10º do
DL de 79, com referência ao critério fixado no artº 1099º,1 do CC (actual artº
72º do RAU) e não à indemnização segundo os termos do C. Expropriações;
12º- Parece, no fundo, que o objecto da «suspeita» de inconstitucionalidade
suscitada pela recorrente é, não o regime jurídico da denúncia do arrendamento
estabelecido no diploma de 79, mas antes o critério fixado no artº 1099º do CC
para a atribuição do montante da indemnização resultante da denúncia;
13º- O direito do locatário tem uma natureza obrigacional e não real, como
advém, concretamente, dos artigos 1022º, 1031º e 1037º do CC, e de acordo com a
orientação doutrinária e jurisprudencial dominantes, no sentido de que o
arrendatário tem somente um direito pessoal contra o senhorio, tendente a deste
exigir a entrega do objecto e a garantia do seu gozo;
14º- O direito de propriedade estabelecido no artº 62º da CRP protege quer a
propriedade das entidades privadas, quer a das entidades públicas, aí se
consagrando o direito à propriedade privada (numa acepção técnica), não se vendo
qualquer protecção do direito do locatário ao arrendamento, por este não ser um
direito real de propriedade, não se confundindo este com aquele;
15º- Nos artºs 8º e seguintes do diploma de 79 o que está em causa é um
aspecto particular do contrato de arrendamento - o seu regime de denúncia - não
se colocando em crise o direito à propriedade privada, sendo certo que o
contrato de arrendamento é apenas uma fonte de obrigações recíprocas e de
direitos que não têm natureza real mas meramente obrigacional;
16º- O Código Civil excepciona desde a sua entrada em vigor e na esteira da
legislação anterior os denominados arrendamentos de prédios do Estado, pelo que
estariam e estão tais arrendamentos sujeitos a um regime especial;
17º- Nos termos gerais, ninguém pode ser privado do seu direito de
propriedade, senão nos casos fixados na lei. Apesar de a recorrente ser titular
de um direito de natureza obrigacional, a expropriação de tal direito só
ocorrerá quando a lei o disser expressamente, não ocorrendo por via disso,
violação do artigo 62º da CRP, uma vez que este normativo não garante o 'direito
patrimonial legitimamente adquirido pelo locatário', dado não ser este o titular
do direito de propriedade;
18º- Por isso, o legislador do diploma de 79, tendo-se inspirado em sãos
princípios de respeito pela propriedade privada, tenha salvaguardado a posição
de privilégio do Estado permitindo-lhe a faculdade de denúncia dos arrendamentos
dos seus imóveis;
19º- É neste sentido que o artº 62º da CRP deve ser entendido, porquanto o que
se trata aí é de que o direito de propriedade privada (numa asserção técnica)
merece protecção e que à sua privação, pela sobreposição do interesse público,
deve corresponder uma indemnização;
20º- E, se a indemnização a atribuir nos termos gerais segundo as regras de
cálculo estabelecidas (artº 10º) pode ser 'irrisória', a realidade é que o será
se o for também a renda paga, não se podendo afirmar que não seja justa, visto
que reflecte um equilíbrio de prestações recíprocas;
21º- A recorrente, à data do acto recorrido, já não era titular do 'direito à
não denunciabilidade livre', pois que à data vigorava o DL 23 465 e este era
explícito no seu artº 1º, no sentido de que o Estado podia despedir os
arrendatários dos seus imóveis, desde que tal lhe conviesse, tendo o recorrente,
desde aí, passado a estar sujeita à denúncia do arrendamento pelo Estado
adquirente, ainda que se considerasse a circunstância de o contrato ter sido
celebrado pelo anterior locador;
22º- A igualdade perante a lei não exige que todos sejam tratados, em
quaisquer circunstâncias, de modo idêntico, mas sim que recebam tratamento
semelhante os que se encontrem em condições semelhantes, sendo assim admitidas
discriminações, sem que daí advenha qualquer violação material do princípio
consagrado no artº 13º da CRP;
23º- Não ocorrendo qualquer violação dos artigos 13º e 62º da CRP, não é,
consequentemente, o DL 507-A/79, de 24 de Dezembro (artº 9º) inconstitucional
materialmente;
24º- Ainda que, por mera hipótese, o que se não concede, tal diploma legal
viesse a ser declarado inconstitucional, sempre se manteria em vigor o DL 23
465, de 18/01/34, designadamente os seus artigos 1º e 7º;
25º- Em conclusão, as decisões proferidas pelas anteriores instâncias fizeram
correcta apreciação dos factos e a interpretação e aplicação da lei, não
merecendo, por isso, qualquer censura.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e
decidir.
III - FUNDAMENTOS:
4. - Importa, antes de mais, definir com precisão o
âmbito do recurso.
Com efeito, embora a recorrente, no seu requerimento de
interposição do recurso, pareça referir-se à inconstitucionalidade de todo o
Decreto-Lei nº 507-A/79, de 24 de Dezembro, o certo é que, nesse mesmo
requerimento, identifica apenas a norma do artigo 9º daquele diploma, cuja
interpretação tal como foi feita na decisão recorrida considera
inconstitucional.
Assim, a única norma que vem questionada é tão somente a
daquele artigo 9º, entendido no sentido de que tal preceito permite a livre
denúncia do contrato de arrendamento, mesmo quando o Estado haja adquirido o
prédio quando ele já se achava arrendado.
Porém, com este sentido, não pode deixar de ser também
considerado o artigo 8º, na medida em que para ele remete o artigo 9º, nº 1, ou
seja, quanto ao direito de o Estado denunciar os contratos de arrendamento dos
seus prédios para instalação dos respectivos serviços ou outros fins de
utilidade pública.
O âmbito do recurso de constitucionalidade é definido
pelo requerimento de interposição e o seu âmbito assim demarcado, se pode ser
restringido nas alegações, não pode todavia ser ampliado.
Não pode ser outra a conclusão a extrair da forma como o
Tribunal Constitucional vem entendendo o cumprimento da exigência constante do
artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, alterada pela Lei nº 85/89, de
7 de Setembro (Lei do tribunal Constitucional - LTC), considerando elemento
imprescindível para o conhecimento do recurso, a indicação, no requerimento de
interposição, da norma ou normas cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se
pretende fazer apreciar pelo Tribunal (cf., neste sentido e por último, o
Acórdão nº 34/95, de 1 de Fevereiro de 1995, ainda inédito).
A recorrente, no requerimento de interposição do
recurso, refere como violado pela interpretação feita na decisão recorrida
apenas o artigo 62º da Constituição. Porém, nas alegações apresentadas neste
Tribunal, considera que a interpretação questionada viola também o artigo 13º
da Constituição.
O Tribunal, nos termos do artigo 79º-C, da Lei do
Tribunal Constitucional, 'só pode julgar inconstitucional ou ilegal a norma que
a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou haja recusado
aplicação, mas pode fazê-lo com fundamento na violação de normas ou princípios
constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada', pelo
que se terá de apreciar a conformidade da norma questionada face a ambas as
normas referidas da Lei Fundamental.
Em questão está, pois, unicamente, a norma do artigo 9º,
nº 1, com referência ao artigo 8º, na parte que permite a denúncia dos contratos
de arrendamento do Estado, mesmo que este os tenha adquirido já arrendados,
quando os prédios se destinem à instalação dos seus serviços ou a outros fins de
utilidade pública.
5. - A sociedade recorrente, ao interpor o recurso de
anulação da deliberação do IGAPHE, partiu do entendimento de que o Decreto-Lei
nº 507-A/79, de 24 de Dezembro, não permite que o Estado, tendo adquirido um
determinado prédio já na situação de arrendado e sendo o contrato de
arrendamento celebrado com uma entidade privada, denuncie tal contrato de
arrendamento, uma vez que os direitos do inquilino estavam perfeitamente
definidos e consolidados. De tal forma que uma interpretação diferente, no
sentido de ser livremente denunciável um tal contrato de arrendamento pelo
Estado, ainda quando estivesse demonstrada a necessidade do arrendado para
instalação dos serviços da entidade adquirente ou para outros fins de utilidade
pública, seria inconstitucional, por violadora do artigo 62º da Constituição, do
direito à propriedade privada, aqui entendida num sentido amplo e abrangendo
mesmo os contratos de arrendamento sujeitos ao princípio da «não
denunciabilidade livre» por parte do senhorio.
Para apreciação desta posição da recorrente, importa,
antes de mais, analisar o regime jurídico regulador dos arrendamentos do Estado.
6. - De acordo com o referido no preâmbulo do
Decreto-Lei nº 23 465, de 18 de Janeiro de 1934, o Estado, quando dá de
arrendamento qualquer prédio (rústico ou urbano), realiza um fim de interesse
público e não pode, portanto, estar sujeito às mesmas normas que regulam as
relações entre senhorio e arrendatário no direito privado, quando estas
contrariam as necessidades da administração.
Na realidade, o Estado, quando se propõe arrendar bens
imobiliários do respectivo domínio privado, pretende obter, mas tão só
transitoriamente, isto é, enquanto lhes não puder dar um destino adequado
(afectando-os aos serviços, integrando-os no domínio público ou destinando-os a
outra finalidade de utilidade pública), um rendimento legítimo. É que, é
contrário à sua função económica a posse de bens com a estrita finalidade de os
arrendar como qualquer proprietário privado.
No regime de arrendamento de prédios do domínio privado
do Estado anterior ao Código Civil de 66, a diferença essencial residia na
possibilidade de livre denúncia do contrato de arrendamento por parte do Estado.
Com efeito, o artigo 1º do Decreto-Lei nº 23 465,
dispunha que 'o Estado pode despedir os arrendatários dos seus prédios, rústicos
e urbanos ou mistos, antes de o arrendamento acabar, quando isso lhe convier',
podendo assim denunciar o contrato para o fim do prazo ou mesmo antes desse
momento, se isso for conveniente para os interesses do Estado.
Não se estava, porém, perante um poder totalmente
discricionário, como poderia entender-se pela simples leitura do preceito, pois
tal rescisão ou denúncia livre só existiria no caso de o arrendamento se mostrar
contrário aos interesses (públicos) que o Estado deve prosseguir, designadamente
quando este necessitasse do arrendado.
O Decreto-Lei nº 23 465 continha ainda um outro preceito
com interesse para a questão em apreço - o artigo 7º - no qual era expressamente
reconhecido ao Estado o direito de denunciar os contratos de arrendamento dos
prédios do seu domínio privado, mesmo que tais contratos tivessem sido
celebrados pelos anteriores senhorios.
6.1. - Com o Código Civil (CC) de 66, do regime geral do
arrendamento passou a fazer parte o princípio de que o senhorio não goza, por
regra, do direito de denúncia (artigo 1095º).
No que especificamente concerne aos arrendamentos de
prédios (urbanos ou rústicos não rurais) do Estado, aquele diploma dispõe no
artigo 1083º:
'1. Os arrendamentos de prédios urbanos e os arrendamentos de prédios rústicos
não compreendidos no artigo 1064º ficam sujeitos às disposições desta secção, e
também às normas das secções I a VI no que não esteja em oposição com a desta.
2. Exceptuam-se:
a) Os arrendamentos de prédios do Estado;
................................................'.
3. Aos arrendamentos referidos nas alíneas a),b) e c) do número anterior são
aplicáveis as disposições das secções I a VI e as contidas nos artigos 1084º a
1092º, 1101º a 1103º e 1107º a 1111º;(...)'
Nos termos deste preceito, os arrendamentos de prédios
pertencentes ao domínio privado do Estado são exceptuados do regime geral do nº
1, apenas lhes sendo aplicáveis as normas expressamente referidas no nº 3, de
cujo regime ficam também claramente afastadas as normas do Código Civil
respeitantes à resolução e denúncia do contrato de arrendamento - artigos 1093º
e 1095º a 1100º.
Com efeito, a tais arrendamentos são aplicáveis os
artigos 1022º a 1063º (secções I a VI), 1084º a 1092º, 1101º a 1103º e 1107º a
1111º do Código Civil. Significa isto que, aplicando-se aos arrendamentos de
prédios do Estado uma grande parte do regime regra dos arrendamentos, todavia,
não se sujeitou o Estado às restrições impostas pelo legislador aos restantes
senhorios no que respeita à resolução e denúncia dos contratos.
Esta matéria foi tratada, por forma autónoma, no
Decreto-Lei nº 507-A/79, designadamente nos seus artigos 8º a 10º, que se passam
a analisar.
6.2. - De acordo com o preâmbulo deste diploma, que visa
proceder à revisão e concentração, num diploma único, da legislação sobre o
arrendamento de bens imóveis do domínio privado do Estado, a ideia orientadora
do regime legal estabelecido é a de que 'em matéria de arrendamento de bens do
Estado, as soluções da lei civil só devem ser derrogadas nos casos extremos em
que haja manifesta incompatibilidade com as exigências de realização oportuna do
interesse público'.
Tais casos, ainda de acordo com o referido preâmbulo,
são 'apenas os resultantes da necessidade de utilização dos prédios arrendados
para instalação de serviços públicos ou de outros fins de utilidade pública'.
Assim, estabelece-se no artigo 8º do diploma que ' o
Estado só pode denunciar os contratos de arrendamento relativos aos seus prédios
antes do termo do prazo ou da renovação quando esses prédios ou os
correspondentes locais se destinam à instalação dos seus serviços ou a outros
fins de utilidade pública'.
Pelo seu lado, o artigo 9º prevê no seu nº 1 que 'nos
casos previstos no artigo anterior, o arrendatário será notificado da denúncia
do arrendamento pela Direcção-Geral do Património - ou, quando o prédio tenha
sido adquirido já arrendado, pelo serviço que realizou a aquisição - com
antecedência não inferior a seis meses, antes do termo do prazo do contrato ou
da sua renovação, através de carta registada e sem dependência de acção
judicial'.
Na data em que o contrato dos autos foi denunciado, era
esta a legislação que estava em vigor. E, tendo o regime geral do contrato de
arrendamento do Código Civil sido revogado pelo Regime do Arrendamento Urbano
(R.A.U.), aprovada pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, a
regulamentação dos arrendamentos de prédios pertencentes ao domínio privado do
Estado sofreu algumas alterações, mantendo-se, todavia, as normas que regulam o
regime de resolução e denúncia daqueles contratos.
Com efeito, o artigo 5º do RAU estabelece no seu nº 1
(tal como o artigo 1083ºdo CC) que 'o arrendamento urbano rege-se pelo disposto
no presente diploma e, no que não esteja em oposição com este, pelo regime geral
da locação civil '(ou seja, pelas normas dos artigos 1022º a 1063º do CC, tal
como resultava do artigo 1083º, agora revogado). E o nº 2 do preceito exceptua
deste regime o arrendamento de prédios do Estado, a que manda aplicar, pelo
artigo 6º do RAU, 'o regime geral da locação civil, bem como o disposto nos
artigos 2º a 4º, 19º a 21º, 44º a 46º, 74º a 76º e 83º a 85º, 88º e 89º do
presente diploma, com as devidas adaptações', mantendo-se na íntegra as normas
do Decreto-Lei nº 507-A/79 sobre a denúncia do respectivo contrato, sendo
irrelevantes para o caso as alterações subsequentes ao regime constante do
Código Civil.
Na verdade, a questão de constitucionalidade que vem
suscitada pela recorrente reporta-se, como acima ficou referido, à norma
conjugada dos artigos 8º e 9º, nº 1 do Decreto-Lei nº 507-A/79, com a
interpretação da decisão recorrida.
7. - Com efeito, como se referiu antes, vem questionada
nos presentes autos a conformidade constitucional de uma norma extraída da
conjugação daqueles preceitos, que permite a denúncia de contratos de
arrendamento relativos a prédios pertencentes ao Estado, para fins de instalação
dos respectivos serviços ou para outros fins de utilidade pública, mesmo que o
Estado os haja adquirido já arrendados. E tal conformidade constitucional - nos
termos do recurso - deverá aferir-se face aos artigos 62º e 13º da Constituição
da República Portuguesa.
O artigo 62º estabelece, no seu nº 1, que ' a todos é
garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por
morte, nos termos da Constituição', enquanto o nº 2 determina que ' a requisição
e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e
mediante o pagamento de justa indemnização'.
Pelo seu lado, o artigo 13º consagra, no seu nº 1, o
princípio da igualdade ('todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são
iguais perante a lei') e, no seu nº 2, faz-se a elencação, meramente
enunciativa, de factores que não podem fundar qualquer situação de privilégio ou
de discriminação ('ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado,
privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência,
sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou
ideológicas, instrução, situação económica ou condição social').
7.1. - Importa analisar, em primeiro lugar, a questão da
inconstitucionalidade da norma resultante dos artigo 8º e 9º, nº 1, do diploma
em apreço, na perspectiva da violação do artigo 62º, nº 1, da Constituição, uma
vez que sempre foi esta a norma que a recorrente, nas diversas instâncias,
considerou como sendo o parâmetro constitucional adequado ao caso concreto em
apreço.
Segundo a recorrente, a norma que resulta da conjugação
do artigo 8º com o nº 1 do artigo 9º do Decreto‑Lei nº 507-A/79, nos termos da
qual o Estado podia denunciar os contratos de arrendamento relativos aos prédios
do seu domínio privado, mesmo no caso de o contrato de arrendamento ter sido
celebrado pelo anterior proprietário privado do imóvel, contende com o
preceituado no artigo 62º da Constituição, na medida em que a garantia
constitucional do direito de propriedade, entendida em sentido amplo, deve
abranger também o valor patrimonial derivado do direito à indenunciabilidade de
um contrato de arrendamento como o celebrado pela recorrente e a que se reportam
os autos.
No entender da recorrente, 'o D.L. nº 507-A/79 (por
lapso, referiu-se o DL nº 507/79), na medida em que não terá querido abranger
na possibilidade de livre denúncia, em nome do interesse público, os
arrendamentos celebrados pelo anterior proprietário, quando este fosse um
particular, mais não terá feito do que respeitar o comando constitucional que
garante a cada um a sua propriedade privada, propriedade em sentido amplo, como
se referiu atrás. E essa intenção encontra-se bem explícita no relatório que
precede o diploma, onde se diz que 'as soluções da lei civil só devem ser
derrogadas em casos extremos'.'
A interpretação divergente, feita pela decisão do STA da
norma em causa, está na base da alegação de inconstitucionalidade que a
recorrente suscita.
De qualquer modo, o artigo 62º, nº 1, da Constituição só
poderá servir de parâmetro de aferição da constitucionalidade se puder
demonstrar-se que a situação jurídica do direito do locatário, quanto ao
respectivo regime de resolução e denúncia do contrato de arrendamento por parte
do senhorio, se insere no âmbito de protecção da garantia constitucional do
direito de propriedade, constante daquela norma.
7.2. - Mas será, de facto, assim?
Vejamos.
A controvérsia relativa à natureza jurídica do direito
do arrendatário surgida em França em meados do século passado (cfr. Henrique
Mesquita, 'Obrigações Reais e Ónus Reais', Coimbra, 1990, pg.130, e Pinto
Furtado, 'Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculísticos', Coimbra, 1984, pg.
62 e ss) não deixou de se verificar também entre nós, dividindo-se a doutrina
portuguesa nas suas posições em favor da tese «realista» (Paulo Cunha, Luís
Pinto Coelho, Dias Marques, Oliveira Ascensão e Meneses Cordeiro) e da tese
«personalista» do direito do arrendatário (Inocêncio Galvão Teles, Pinto
Loureiro, Gomes da Silva, Pires de Lima, Henrique Mesquita, Adriano Vaz Serra,
Antunes Varela, João de Matos, Cunha e Sá, Rodrigues Bastos, Pereira Coelho e M.
Januário Gomes - divisão de posicionamento citada em Pinto Furtado,
ob.cit.,pg.65).
No que à jurisprudência se refere, o posicionamento
praticamente uniforme tem sido no sentido de entender o direito do arrendatário
como tendo natureza obrigacional.
É certo que, perante as diversas e sucessivas alterações
que, entre nós, têm vindo a ser introduzidas no regime da locação de imóveis, no
sentido de atribuir maior estabilidade à posição do arrendatário, a tese da
natureza real do direito do arrendatário tem vindo a adquirir maior relevo na
doutrina, sem que, todavia, possa deixar de considerar-se maioritária a
concepção personalista, para que apontam também as recentes alterações legais da
legislação vinculística (Decreto-Lei nº 278/93, de 10 de Agosto).
Não pode deixar de se referir a existência de uma
posição mista, que reconhece existirem no direito do locatário elementos que
integram a concepção «realista» e elementos que integram a concepção
«personalista», o que conferiria a tal direito uma natureza híbrida (cf. Cunha
Gonçalves, 'Tratado de Direito Civil', 1935, IX, pg.61, e Almeida Ribeiro, ROA,
8º, 1948, nºs 1 e 2).
Porém, para além das posições doutrinárias, importa
analisar os fundamentos alinhados por cada uma delas, por forma a concluir pela
que nos parece ainda hoje preferível, a concepção personalista, mas não deixando
de reconhecer a existência de 'elementos de realidade' no direito de que é
titular o arrendatário.
Nos termos do artigo 1022º do Código Civil, 'locação é o
contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo
temporário de uma coisa, mediante retribuição'. Pelo seu lado, o Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano (RAU),
difere textualmente da noção civilística de locação na medida em que, em vez de
uma das partes «se obrigar a proporcionar à outra» o gozo temporário de uma
coisa, lhe «concede» tal gozo, sendo agora a «coisa» um «prédio urbano». Segundo
Menezes Cordeiro (in 'Novo Regime do Arrendamento Urbano', Almedina, 1990, pg.
52), a alteração da redacção, substituindo a obrigação de proporcionar o gozo
pela de conceder esse gozo pretendeu evitar tomar qualquer posição na querela
doutrinária que se expôs, utilizando uma expressão 'inócua'.
Ora, o direito real é caracterizado, em termos da
doutrina clássica, pela existência de uma relação jurídica de soberania entre
uma pessoa e uma coisa, correspondendo, em geral, à afirmação de um direito
absoluto sobre a coisa que geraria uma obrigação passiva universal de não
interferência.
Assim, a questão a que importa responder é a seguinte:
as soluções jurídicas consagradas na lei do arrendamento urbano permitem afirmar
que o arrendatário dispõe sobre o arrendado de um poder de soberania que lhe
permite gozar o imóvel, por forma directa e autónoma, sem qualquer interferência
ou obstrução de terceiros, independentemente das vicissitudes do respectivo
contrato de locação ou, ao invés, apontam para a existência entre o senhorio e o
locatário de uma mera relação obrigacional?
Nos termos da posição defendida por Henrique de Mesquita
(ob.cit., pg. 135 e ss), ultrapassado o entendimento que fazia impender sobre o
senhorio uma obrigação positiva de carácter permanente em favor do locatário,
passou a reconhecer-se a existência a cargo do senhorio de uma mera obrigação
negativa similar da que ocorre no direito de usufruto, de superfície ou de
servidão, importando apenas apurar se a lei trata tal relação como um verdadeiro
e próprio «direito de soberania» ('Obrigações reais e Ónus reais', pg.136/137).
Os argumentos a favor da natureza «real» do direito do
arrendatário centram-se essencialmente no chamado direito de sequela e no
direito de preferência. Mas, como expressamente refere Pereira Coelho
('Arrendamento - Direito substantivo e processual ', in 'Lições ao curso do 5º
ano de Ciências Jurídicas no ano lectivo de 1988/1989, pg. 19), 'os argumentos
não parecem decisivos. Quanto à sequela, a verdade é que o Código não reconhece
um princípio de oponibilidade «erga omnes» do direito do arrendatário: este só
pode opor o seu direito ao senhorio ou a quem dele tenha adquirido, nos termos
do artº 1057º, 'o direito com base no qual foi celebrado o contrato'. Assim, se
o arrendatário pode fazer valer o seu direito em face do comprador do prédio
arrendado ou do herdeiro ou legatário do senhorio, não é senão porque o
comprador, o herdeiro, o legatário sucederam na posição jurídica de senhorio e,
portanto, nos respectivos direitos e obrigações: se o senhorio era obrigado a
renovar o contrato e não podia denunciá-lo (artº 1095º), também a eles não
pertencerá esse direito'.
E, quanto à preferência, segundo Pereira Coelho, 'o
argumento é igualmente carecido de valor. É certo que, se A dá de arrendamento
um prédio a B e, depois, a C, o conflito entre B e C se resolve por um princípio
de preferência, a favor do direito primeiramente constituído ou, tratando-se de
arrendamento sujeito a registo, primeiramente registado. Mas, para justificar a
solução não é preciso conferir natureza real ao direito do arrendatário, pois o
artº 407º resolve a incompatibilidade entre direitos pessoais de gozo através de
semelhante princípio de preferência.'
Assim, o Prof. Pereira Coelho considera que 'se são
fortes as notas de «realidade» do direito do arrendatário, não parece haver
argumentos decisivos contra a sua natureza essencialmente pessoal.'
Quanto ao direito de sequela também o Prof. Henrique
Mesquita considera que a regra consagrada no artigo 1057º do Código Civil não é
um 'argumento decisivo' a favor da tese da natureza real do direito do
arrendatário, pois 'não opera contra todo e qualquer adquirente do direito real
que serviu de base à celebração do contrato locativo', além de que é ele
'explicável através de figuras próprias do direito das obrigações' (ob. cit.,
pg. 146). Mas, segundo este autor, um outro aspecto existe no regime da locação
'para o qual só no esquema da realidade se logra enquadramento adequado'.
Trata-se da norma que permite que o locatário, após ter entrado no gozo da
coisa, possa, só por si, agindo com autonomia, fazer valer o seu direito não só
em face dos subadquirentes do arrendado mas também 'defendê-lo directamente
adversus omnes, isto é, contra qualquer terceiro que impeça, perturbe ou ameace
o respectivo exercício' (artigo 1037º, nº 1, do Código Civil), o que permite
concluir que, à face da lei actual, o locatário se encontra investido numa
verdadeira posição de soberania
É essencialmente assente nesta oponibilidade «erga
omnes» decorrente do nº 1 do artigo 1037º do Código Civil que o Prof. Dr.
Oliveira Ascensão defende a natureza real do direito do locatário.
Porém, ao lado deste preceito outros existem segundo o
mesmo autor, que são apenas explicáveis em sede obrigacional. Assim e, desde
logo, a norma que contém a definição legal do contrato de «locação»(artigo 1022º
do C. Civil), da qual decorre (ainda que com menos convicção face à noção
constante do RAU - artigo 1º do Decreto-Lei nº 321‑B/90, de 15 de Outubro) que
tal contrato não é um negócio real; a norma que impõe a obrigação de abstenção
ao locador (artigo 1037º, nº 1); as normas das quais decorre uma permanente
ligação da posição jurídica do locatário ao contrato de locação, de tal forma
que nunca adquire a autonomia que caracteriza os direitos reais (artigos 1057º a
1059º;1047º a 1050º e 1093º; 1054º a 1056º;1095º a 1100º;1051º e 1052º); as
normas que estabelecem a necessidade de o locatário obter a autorização do
senhorio para a prática de determinados actos (artigo 1038º, alínea f) e artigo
1059º, nº 2).
Assim, o Prof. Henrique Mesquita conclui pelo
reconhecimento de um 'regime dualista ou misto do direito do locatário', pois se
as normas relativas à protecção do gozo da coisa locada conferem ao locatário
uma posição jurídica idêntica à que decorre de um direito real, de tal afirmação
não decorre directamente a conclusão sobre a natureza real de tal direito.
Com efeito, o regime da locação com a sua disciplina
legal actual não permite que ao direito do arrendatário, globalmente
considerado, possa ser reconhecida a natureza de direito real, embora não possa
deixar de se ponderar que exigências de carácter social têm levado a uma
aproximação daquele direito aos direitos reais, sendo de considerar que a
locação mantém uma natureza 'predominantemente obrigacional'.
Não é também no sentido da realidade do contrato de
locação que apontam algumas das alterações legislativas introduzidas no regime
jurídico do arrendamento urbano pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro
(RAU) e, mais recentemente, pelo Decreto-Lei nº 278/93, de 10 de Agosto.
Assim, com o RAU estabeleceu-se a liberdade de estipular
limites certos à duração efectiva dos arrendamentos futuros, sendo o prazo
fixado de 5 anos, salvo se referente a sociedades de gestão e investimento
imobiliário ou fundos de investimento imobiliário, em condições a definir e em
que o prazo é de 3 anos, prazo este renovável automaticamente por períodos
mínimos de três anos, se outro não estiver especialmente previsto, desde que não
sejam denunciados por qualquer das partes, sendo a denúncia do senhorio feita
mediante notificação judicial avulsa com um ano de antecedência sobre o fim do
prazo ou da sua renovação e a do inquilino feita ou para o termo do prazo ou
antes desse termo, desde que efectuada mediante comunicação escrita com uma
antecedência mínima de 90 dias.
Não sendo uma inovação (a Lei nº 46/85, de 20 de
Setembro, já previa os contratos de arrendamento com duração certa, mas sendo
aplicáveis apenas a prédios nunca arrendados e exigindo uma acção judicial para
a sua denúncia, não teve relevo bastante), a sua maior maleabilidade não aponta
no sentido do reforço da posição jurídica do arrendatário, o que acontece
igualmente com as alterações introduzidas no regime de transmissão por morte da
posição do arrendatário habitacional, designadamente, a imposição legal de que
aos contratos celebrados por força do exercício do direito a um novo
arrendamento se tenha de aplicar o regime de duração limitada.
Por último, as recentes alterações do RAU introduzidas
pelo Decreto-Lei nº 278/93, vieram também enfraquecer a posição jurídica do
arrendatário habitacional, afastando assim o respectivo direito dos direitos de
natureza real.
Com efeito, se o RAU tinha já limitado os casos de
transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, as alterações referidas
introduziram uma alternativa à transmissão para descendentes com mais de 26 anos
e menos de 65, para ascendentes com menos de 65 e para afins na linha recta nas
mesmas condições, permitindo que o senhorio opte pela denúncia do contrato,
pagando uma indemnização correspondente a 10 anos de renda. Esta alteração
significa que em determinados casos em que o senhorio tinha de aceitar a
continuação do arrendamento embora com diverso regime de renda, agora pode
pôr-lhe termo mediante o pagamento de uma indemnização, embora avultada. É certo
que a alteração em causa tutela os interesses dos beneficiários da transmissão
na medida em que lhes permite propor ao senhorio a continuação do contrato
mediante o pagamento de uma renda que considerem justa, cujo valor servirá de
base ao cálculo da indemnização caso tal proposta não venha a ser aceite.
Apesar desta tutela relativa, parece claro que se
verifica um enfraquecimento da posição jurídica do arrendatário que a afasta
ainda mais da que é própria dos titulares de direitos reais.
Neste mesmo sentido parece apontar a outra alteração do
Decreto-Lei nº 278/93, relativa 'ao reconhecimento do direito de o senhorio
aumentar a renda, até ao que seria o seu valor máximo no regime de renda
condicionada, quando o inquilino disponha de outra habitação que possa
satisfazer as suas necessidades habitacionais imediatas, quer esta seja de sua
propriedade ou não' (preâmbulo do diploma). O enfraquecimento da posição do
arrendatário resulta aqui do facto de a lei impor a denúncia na sequência de um
aumento de renda cujo fundamento nada tem a ver com o contrato de arrendamento.
A fundamentação vertida no preâmbulo do diploma refere expressamente que 'a
protecção do arrendatário que de certa forma justifica a não actualização das
rendas, não merece tutela quando este dispõe de outra residência na mesma
comarca ou na mesma área metropolitana em que resida'.
Assim, conclui-se, face ao regime legal instituído, que
a matriz jurídica do direito do locatário continua a ser concebida como
essencialmente obrigacional, embora em alguns aspectos normativos se constate
uma aproximação do regime próprio dos direitos de natureza real.
Alcançada esta conclusão, importa regressar ao caso em
apreço.
8. - Seja, porém, qual for em definitivo a natureza
jurídica do direito ao arrendamento (real ou obrigacional), uma coisa é certa:
um tal direito é, em certa medida, protegido pelo artigo 62º da Constituição, ou
seja, pela garantia constitucional do direito de propriedade.
Vejamos em que medida.
O artigo 62º, nº 1, da Constituição garante o direito à
propriedade privada e à sua transmissão, 'nos termos da Constituição', isto é,
dentro dos limites e termos definidos noutros pontos da Lei Fundamental,
competindo ao legislador definir o conteúdo e limites do direito de propriedade
privada (artigo 168º, nº 1, alíneas b) e j) da Constituição).
Elemento essencial do direito de propriedade é o direito
de não se ser privado dela, que a Constituição não garante em termos absolutos,
prevendo-se no nº 2 do artigo 62º apenas o direito de não ser arbitrariamente
privado da propriedade e o direito à percepção de uma indemnização no caso de
requisição ou de expropriação por utilidade pública, devendo a indemnização ser
«justa»,isto é, respeitar os princípios materiais da Constituição (igualdade e
proporcionalidade), não podendo consistir em valores irrisórios ou
manifestamente desadequados à perda do bem concreto requisitado ou expropriado.
Com efeito, entender que o artigo 62º garante o direito
de cada um a não ser privado do que lhe pertence, leva ínsito o entendimento de
que, ao menos por via de regra, qualquer modo de restringir a plena
disponibilidade da coisa pelo seu proprietário constitui uma forma de
expropriação, pressupondo, por isso e em princípio, o pagamento de uma
indemnização.
Ora, nos termos do que se dispõe no nº 1 do artigo 1º do
Código das Expropriações (Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro), 'os bens
imóveis e os direitos a eles relativos podem ser expropriados por causa de
utilidade pública (...)'. Em disposição idêntica do actual Código (Decreto-Lei
nº 438/91, de 9 de Novembro), que revogou o anterior, reafirmam‑se como
expropriáveis 'os bens imóveis e os direitos a eles inerentes'.
Assim e não deixando embora de referir que alguma
doutrina, na sequência de posições do Bundesgerichthof e da doutrina alemã, vem
afirmando a existência de um «conceito alargado de expropriação» que abranja não
só a propriedade no seu sentido mais amplo mas também todo e qualquer direito
individual de valor patrimonial (cfr., neste sentido, Alves Correia, 'As
Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública', Coimbra, 1982,
pg. 44), todavia, para o legislador nacional, expropriáveis são apenas os bens
imóveis e os direitos a eles inerentes.
Isso, porém, não significa que no artigo 62º, nº 1, da
CRP se contenha também qualquer garantia de renovação automática e obrigatória
dos contratos de arrendamento, como pretende a recorrente, sendo que,
relembre‑se, não é objecto do presente recurso o regime de cálculo da
indemnização.
Esta última (a da renovação obrigatória do contrato de
arrendamento) é uma matéria que tem a ver com a liberdade negocial ou
contratual: em regra, como decorrência da autonomia dos privados, os contratos
são livremente denunciáveis para o fim do respectivo prazo. O princípio da
renovação obrigatória do contrato de arrendamento, subtraindo-o à regra da
liberdade contratual e sacrificando o direito de denúncia que, em princípio,
assistiria ao senhorio legitima-se constitucionalmente, por sua vez, à luz da
função social da propriedade, por ser necessária à satisfação das necessidades
do locatário. Como se observou no Acórdão nº 311 /93 (publicado no 'Diário da
República', IIª Série, de 22 de Julho de 1993), o senhorio é chamado a ser
solidário com o locatário.
Portanto, não se pode dizer que a consagração do direito
de denúncia do arrendamento viole a garantia do direito de propriedade, pois que
não é nessa garantia que a proibição de princípio de tal denúncia pelo senhorio
se funda. Ao invés, essa impossibilidade de denúncia é que restringe o direito
de propriedade - no caso, do senhorio.
Menos se pode falar na violação de um direito
patrimonial do inquilino à indenunciabilidade - direito que seria ainda coberto
pela garantia da propriedade do artigo 62º da Constituição - uma vez que, no
caso, a privação desse direito em virtude de utilidade pública, está sujeita a
indemnização, o que releva para efeitos de aplicação do nº 2 do artigo 62º,
directamente ou por analogia.
O que tudo significa que a norma em causa, resultante da
conjugação do artigo 8º com o nº 1 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 507-A/79, nos
termos da qual o Estado pode denunciar os contratos de arrendamento relativos
aos prédios do seu domínio privado, so o seu destino for a instalação dos
serviços ou outros fins de utilidade pública,não viola o artigo 62º, nº 1 da
Constituição, pelo que não pode proceder a arguição de inconstitucionalidade
levantada pela recorrente.
E isto, mesmo no caso de o contrato de arrendamento ter
sido celebrado pelo anterior proprietário do imóvel; quanto a este último ponto,
porque se não pode dizer que exista no caso qualquer retroactividade ou
retrospectividade que tivesse atingido, de forma intolerável ou demasiado
acentuada os direitos ou expectativas do locatário. De facto, na data em que o
contrato foi celebrado existia já no ordenamento jurídico um regime relativo aos
arrendamentos de prédios do Estado (regime esse que até era mais gravoso para os
arrendatários, já que, de acordo com ele, os respectivos contratos eram
livremente denunciáveis: cf. artigo 1º do Decreto-Lei nº 23 465) - o qual ele,
recorrente, deveria saber-lhe aplicável, se a propriedade do prédio mudasse de
mãos a favor daquele (Estado).
9. - Também o princípio da igualdade não é violado pelo
normativo que vem questionado e extraído dos preceitos do artigo 9º, nº 1,
conjugado com o artigo 8º do diploma em causa.
Com efeito, o âmbito de protecção do princípio da
igualdade constante da norma do artigo 13º da Constituição acima transcrito,
enquanto parâmetro do controlo pelo juiz das opções do legislador, abrange
diferentes dimensões: a proibição do arbítrio, que torna inadmissível não só a
diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, apreciada esta
de acordo com critérios objectivos de relevo constitucional, mas também o
tratamento idêntico de situações manifestamente desiguais; e a proibição de
discriminação, que não permite quaisquer diferenciações entre cidadãos baseadas
em categorias meramente subjectivas.
A igualdade consiste, assim, em tratar por igual o que é
essencialmente igual e tratar diferentemente o que essencialmente for diferente.
A igualdade não proíbe, pois, o estabelecimento de distinções; o que com ela se
proíbe são as distinções arbitrárias ou sem fundamento material bastante. Tais
distinções são materialmente infundadas, sempre que assentem em motivos que não
oferecem um carácter objectivo e razoável, ou seja, quando a norma em causa não
apresenta qualquer fundamento material razoável.
Na perspectiva da violação do princípio da igualdade
perante os encargos públicos, o significado deste princípio é o de que, em
geral, as limitações aos direitos individuais impostas por força da realização
do interesse geral devem ser repartidas entre os cidadãos por forma igual, de
tal modo que, se se verificar que um particular suportou um especial encargo,
deverá o mesmo ser compensado, sob pena de violação do princípio da igualdade.
Ora, no caso em apreço, a norma conjugada dos nº 1 do
artigo 9º e do artigo 8º não impõe encargos diferentes para situações idênticas,
tratando todos os locatários de estabelecimentos comerciais de prédios do Estado
por forma igualitária.
Por outro lado, numa diferente perspectiva das coisas,
não se pode invocar, para considerar violado o princípio da igualdade, a ideia
de que o legislador estabeleceu um regime diverso para os arrendatários
comerciais de prédios do Estado e para os locatários (também comerciais) de
prédios de particulares - o que concretizaria tal violação, quanto ao regime
legal da respectiva denunciabilidade dos contratos.
Com efeito, a admitir-se que tal regime de
denunciabilidade do contrato de arrendamento é diverso nas duas situações, não
resulta daí que esteja violado o princípio da igualdade : antes se entende que
se está perante situações que não são essencialmente idênticas. Não pode, na
verdade esquecer-se que, no caso de arrendamentos de prédios do Estado, a
denúncia tem de ter por fundamento destinarem-se os prédios à instalação dos
seus serviços ou a outros fins de utilidade pública e que o fim essencial e
eminentemente público da instalação dos serviços do Estado pode justificar a
existência da diversidade de regimes. Seja como for, há outras causas de
denúncia dos arrendamentos no nosso direito vinculístico e é mesmo admitida a
expropriação do próprio direito de arrendamento.
O regime de denúncia estabelecido pelo artigo 8º do
Decreto-Lei nº 507-A/79 não estabelece, relativamente ao regime geral, qualquer
distinção materialmente infundada ou discriminatória, antes tem em atenção uma
razão objectiva e razoável que constitui fundamento material bastante para a
possível diversidade de regimes.
Não ocorre, pois, qualquer violação do princípio da
igualdade, no caso em apreço.
Em face do que fica exposto, improcedem as conclusões da
recorrente, pelo que o recurso não merece provimento.
III - DECISÃO:
Nestes termos, decide-se negar provimento ao presente
recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Lisboa, 1995.05.30
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma (dispensei o visto)
José Manuel Cardoso da Costa