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Proc. nº 355/94
1ª Secção
Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No Tribunal Cível da comarca de Lisboa, A., propôs acção
declarativa de condenação com processo comum na forma ordinária contra o Estado
Português, em ordem a obter o pagamento da quantia que constitua justa
indemnização pela nacionalização e expropriação dos prédios enumerados na
petição inicial, como também dos danos emergentes do retardamento daquele
pagamento, alegando que a competência para a apreciação e julgamento da causa
pertencia aos tribunais judiciais, enquanto órgãos de jurisdição comum.
Por despacho de 14 de Janeiro de 1993, foi a petição inicial
indeferida liminarmente, havendo o ora recorrente levado agravo ao Tribunal da
Relação de Lisboa, que, por acórdão de 9 de Dezembro de 1993, lhe negou
provimento confirmando o despacho recorrido.
Sempre inconformado, recorreu então o Autor para o Supremo Tribunal
de Justiça, que, por acórdão de 31 de Maio de 1994, recusou provimento ao
recurso e confirmou a decisão recorrida.
Este aresto, depois de recordar que, tanto o acórdão recorrido como
o despacho que o antecedera, começaram por indeferir liminarmente a petição
inicial só tomando conhecimento da questão da (in)competência material em
momento posterior, considerou que o direito adjectivo impõe uma ordem não
arbitrária para se conhecer dos eventuais vícios da petição inicial (artigos
288º, nº 1 e 510º, nº 1, alínea a), ambos do Código de Processo Civil], e de
harmonia com tais preceitos, dever-se-á apreciar primeiramente a excepção da
incompetência absoluta do tribunal, para de seguida, se caso disso for, ser
avaliada a questão da nulidade de todo o processo.
E nesta conformidade, veio tão só conhecer-se da matéria de
competência, concluindo-se no sentido da incompetência em razão da matéria do
tribunal de comarca.
E para tanto, aduziu-se a seguinte fundamentação:
'Mas, daí não se segue a competência dos Tribunais Comuns com efeito a
responsabilidade extra contratual do Estado, está prevista no art. 501º do
C.Civil. Porém, a gestão pública está regulada no Dec-Lei nº 48.051, de
21/11/67. de harmonia com o art. 51º do Dec-Lei nº 129/84, de 29/04, e seu nº
1, al h) dispõe:
`1 - Compete aos Tribunais Administrativos de Círculo conhecer: ... h) - Das
acções sobre a responsabilidade Civil do Estado, dos demais entes públicos e dos
titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão
pública, incluindo acções de regresso'.
Ora, a demora no pagamento das indemnizações por nacionalização e
expropriação, não deve ser considerada como omissão ilícita de função
político-administrativo.
Por outro lado, não se afigura existir qualquer omissão da lei a fixar a
`justa indemnização'. Evidentemente a indemnização a fixar no caso da
expropriação por utilidade pública e nacionalização não coincidem forçosamente.
É, que neste último caso, haverá de atender-se a razões sócio-políticas, que
não relevam no primeiro (cfr. Jorge Miranda, Direito Económico, pags 295 e
segs.).
Mas se houvesse omissão de lei para o efeito, que não há, haveria uma
inconstitucionalidade por omissão, com responsabilidade para o Estado.
A competência do Tribunal Administrativo parece-nos segura. Certo o art. 4º
do Dec-Lei nº 129/84, de 27/4, preceituam:
'1 - Estão excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e as
acções que tenham por objecto:
a) Actos praticados no exercício da função política e de responsabilidade
pelos danos decorrentes desse exercício;
b) Normas legislativas e responsabilidade pelos danos decorrentes do
exercício da função legislativa.'.
Apesar disso continuamos a sustentar que falta competência aos Tribunais
Comuns.
Com efeito, tem-se entendido que os arts. 15º e 16º da Lei nº 80/77, que
confiam à Administração a fixação do valor da indemnização devida pela
nacionalização e expropriação dos prédios rústicos situados na zona de
intervenção da reforma agrária, não são materialmente inconstitucionais, uma vez
que na fixação de tais valores das indemnizações ainda se está no domínio da
função administrativa (cfr. acórdão nº 39/88 do Tribunal Constitucional, de 9 de
Fevereiro de 1988, in B.M.J. nº 374-115; e acórdão do Supremo Tribunal
Administrativo, de 26 de Junho de 1990, in B.M.J. nº 393-560).
De acentuar ainda que o recente Dec-Lei nº 199/88, de 31 de Maio, nº 5 do seu
art. 8º, veio atribuir expressamente à Administração competência para fixar o
valor da indemnização definitiva devida pela nacionalização e expropriação de
prédios ao abrigo da legislação sobre a reforma agrária.
Assim, destes diplomas legais (Lei nº 80/77 e Dec-Lei nº 199/88) se infere
que as indemnizações devidas aos ex-titulares de direitos sobre bens
nacionalizados, expropriados ou requisitados, são fixados por via administrativa
(podendo haver recurso para o Supremo Tribunal Administrativo dos actos que as
fixarem), pelo que, não sendo a via de acção a apropriada, se verifica a
incompetência em razão da matéria do tribunal de comarca.
Finalmente, dir-se-á que se tem decidido que a fixação do valor da
indemnização por nacionalização, expropriação e requisição, é da competência do
Tribunal Administrativo de Círculo (cfr. v.g., entre outros, Acórdão do Supremo
Tribunal Administrativo, de 5.12.91 e 16.06.92, in Acórdãos Doutrinais do STA,
Ano XXXI, nº 371, pags. 1163 e 1179).'
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2 - O Autor e ora recorrente, sob invocação do artigo 70º, nº 1,
alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, trouxe, daquele acórdão, recurso
de constitucionalidade a este Tribunal, com fundamento na violação 'das normas
constitucionais sobre a competência dos Tribunais Comuns e consequente negação
de imediata aplicabilidade do direito fundamental de justa indemnização do ora
Recorrente (v. o disposto nos artigos 205º, nº 1, 213º, nº 1 e 62º, nº 2, 83º,
97º, nº 1 e 17º e seguintes da Constituição da República Portuguesa), ao
aplicar ao caso sub judice o disposto nas alíneas f) e h) do Decreto-Lei nº
129/84, de 27/04, na alínea h) do nº 1 do artigo 51º do Decreto-Lei nº 129/84,
de 29/04, e ainda, o disposto nos artigos 15º e 16º da Lei nº 80/77 e nº 5 do
artigo 8º do Decreto-Lei nº 199/88, de 31/05'.
Em complemento, na petição de recurso, aduziu-se que o recorrente
'suscitou as referidas questões de inconstitucionalidade em ambas as Alegações
de Recurso de Apelação junto das instâncias dos Tribunais Superiores'.
Nas alegações entretanto produzidas o recorrente deixou alinhadas as
conclusões seguintes:
'A - A violação dos artigos 205º e 213º da CRP resulta do facto de os
Tribunais recorridos fazerem aplicação indevida do artigo 51º nº 1 al h) do
ETAF, dado o disposto no artigo 4º nº 1 alíneas a) e b) do mesmo diploma, e por
consequência negarem aos Tribunais Cíveis (comuns) a competência residual que
Constitucionalmente lhes é atribuída.
B - Além disso, com tal decisão se frusta a legítima expectativa que todos
os cidadãos têm nos Tribunais como órgãos de repressão da ilegalidade e de
protecção dos seus direitos, e que resulta daquele primeiro artigo referido.
C - A violação dos artigos 62º nº 2, 83º e 97º nº 1 da CRP traduz-se na
circunstância de com as decisões recorridas se obstar, através de uma errónea
construção processual, à realização pelo Autor/Recorrente dos direitos
constitucionais que aqueles preceitos lhe concedem.
D - Por essa via como que se reforça o comportamento do Réu, reconhecendo-se
ao Autor/Recorrente um Direito, mas impedindo-se indevidamente, a efectivação do
mesmo.
E - O que, articulando-se com o regime de aplicabilidade directa desse
Direito, se traduzirá também numa violação dos artigos 17º e 18º da CRP.
F - A Inconstitucionalidade da aplicação do artigo 8º e seguintes do
Decreto-Lei nº 199/88 de 31 de Maio, traduz-se no facto de se impôr ao
Autor/Recorrente um comportamento que agrava a sua posição, já de si
desfavorecida com o acto de expropriação/nacionalização, e que, além do mais,
inverte a letra e espírito da Constituição ao expressamente impôr um
comportamento imperativo ao Estado.
G - A violação dos artigos 17º, 18º nº 1 e 22º da CRP resulta da
desconsideração do carácter imediato da aplicabilidade do Direito do
Autor/Recorrente; bem como o da desconsideração da vinculação ao cumprimento de
tal Direito por todos os entes públicos e privados.
H - Ao decidir de tal modo, as instâncias cíveis como que negam tal
imediatividade de tutela do direito do Autor/Recorrente, desvinculando-se do
cumprimento da Constituição que o mesmo preceito impõe, contribuindo para
aumentar a lesão sofrida pelo particular.
I - Por consequência se viola o disposto no artigo 22º da CRP, dado que se
recusa a efectivação da responsabilização dos Entes públicos por actos lesivos
dos seus `direitos, liberdades e garantias' (cuja tutela se estende como vimos
ao direito de propriedade).
J - Por fim a violação do artigo 8º da CRP surge quando com toda a conduta
exposta, o Estado Português viola não só a sua Constituição mas também os
preceitos de Direito Internacional Público aos quais está vinculado.
Nestes termos e nos mais de Direito, e com o douto suprimento dos
Venerandos Conselheiros desse Tribunal Constitucional, se deve dar provimento
ao presente recurso, devendo ter-se por inconstitucionais as decisões emanadas
das instâncias cíveis, com a sua consequente revogação, isto na medida em que
violam os artigos 205º, 213º, 62º nº 2, 83º, 97º, 17º, 18º, 22º e 8º da
Constituição da República Portuguesa'.
Na contralegação que depois veio a oferecer, o senhor
Procurador-Geral Adjunto suscitou a questão prévia do não conhecimento do
objecto do recurso, suportando-se para tanto num discurso argumentativo rematado
com o seguinte quadro de conclusões:
1º - O recorrente não suscitou durante o processo - isto é, antes de
proferida decisão final na ordem dos tribunais judiciais e esgotado o poder
jurisdicional destes - qualquer questão de inconstitucionalidade de normas ou
preceitos legais, limitando-se a imputar a `inconstitucionalidade'
pretensamente cometida às próprias decisões recorridas.
2º - Sendo a matéria do arbitramento das indemnizações devidas por
nacionalizações ou expropriações ou corridas no âmbito e ao abrigo da legislação
sobre a `reforma agrária' regida pelo direito administrativo, não constitui
violação de quaisquer princípios ou preceitos constitucionais a possibilidade
de sobre tal matéria recaírem actos administrativos, impugnáveis
contenciosamente perante a jurisdição administrativa.
Termos em que, procedendo a questão prévia suscitada, não deverá conhecer-se
do presente recurso, por se não verificarem os pressupostos de admissibilidade
previstos na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional'.
Foi dado conhecimento ao recorrente da matéria da questão prévia,
abstendo-se este de trazer aos autos qualquer resposta.
Os autos seguiram então para os vistos, cabendo agora apreciar e
decidir.
E decidir, liminarmente, a eventual ausência de pressupostos
indispensáveis à abertura da via da fiscalização concreta de
constitucionalidade.
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II - A matéria da questão prévia
1 - Em conformidade com o disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b)
da Constituição e 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, cabe
recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem
normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
A admissibilidade deste tipo de recurso - aquele de que o recorrente
lançou mão - acha-se condicionada, além do mais, pela confluência de dois
pressupostos essenciais: a) a inconstitucionalidade da norma deverá ter sido
suscitada durante o processo pelo próprio recorrente; b) tal norma haverá de ser
utilizada na decisão impugnada como seu suporte negativo.
O legislador constituinte elegeu como conceito identificador do
objecto típico da actividade do Tribunal Constitucional em matéria de
fiscalização da constitucionalidade (cfr. os artigos 278º, 280º e 281º da
Constituição) o conceito de norma jurídica pelo que apenas estas (e não já as
decisões judiciais em si mesmas consideradas), podem nesta sede, na qual se
incluem os processos de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser
objecto de sindicância.
Com efeito, como vem sendo reiteradamente definido pela
jurisprudência deste Tribunal, os recursos de constitucionalidade, sendo embora
interpostos de decisões dos outros tribunais (decisões de provimento ou de
rejeição) não visam impugnar a inconstitucionalidade de tais decisões, mas
antes o juízo que nelas se contenha sobre a inconstitucionalidade ou não
inconstitucionalidade de normas com interesse para o julgamento da causa (cfr.
por todos os acórdãos nºs 128/84 e 274/88, Diário da República, II série, de,
respectivamente, 12 de Março de 1985 e 18 de Fevereiro de 1989).
E assim sendo, incumbe aos recorrentes, durante o processo, o ónus
de suscitar a questão de inconstitucionalidade das normas convocadas para a
decisão da causa e por ela aplicadas, havendo de fazê-lo de modo directo,
explícito e perceptível através da indicação das disposições legais sobre que
se faz recair a suspeita do vício de inconstitucionalidade, em ordem a que os
tribunais judiciais aquando do respectivo julgamento sejam confrontadas com a
matéria da inconstitucionalidade e sobre ela proferiram decisão de provimento ou
de rejeição.
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2 - Ora, à luz das considerações e dos princípios sumariamente
expostos, há-de dizer-se que o recorrente, durante o processo, não suscitou
válida e adequadamente a questão da inconstitucionalidade de qualquer norma
jurídica, nomeadamente, das normas que serviram de suporte legal ao acórdão
recorrido.
Com efeito, e como bem se sublinha na contralegação do senhor
Procurador-Geral Adjunto, nas peças processuais que produziu perante os
diversos tribunais judiciais chamados a pronunciar-se sobre o pedido, o
recorrente, após ter defendido a tese de que a acção proposta se inscrevia no
âmbito da competência material dos tribunais comuns, sempre se limitou a
questionar as diferentes decisões e não já as normas ou preceitos nelas
utilizados como fundamento normativo.
E assim sendo, face à inexistência de um dos pressupostos
essenciais aos seguimento do recurso de constitucionalidade, atende-se a questão
prévia suscitada pelo Ministério Público.
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III - A decisão
Nestes termos, concedendo-se atendimento à questão prévia, não se
toma conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs.
Lisboa, 7 de Junho de 1995
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
José Manuel Cardoso da Costa