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Proc. nº 263/96
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A., B. e C. requereram a aclaração do acórdão do Tribunal da Relação de Évora que decidiu não conhecer de recurso por eles interposto, por inutilidade superveniente da lide, uma vez que o despacho recorrido, que ordenara a respectiva prisão preventiva, fora revogado pelo posterior despacho de pronúncia, entretanto proferido nos autos.
Invocaram, em suma, que o entendimento perfilhado pela Relação «permitiria ao Tribunal, em manifesta violação do artigo
32º, nº 1, da Constituição, substituir um despacho recorrível por um despacho irrecorrível - com a agravante de estar em causa um direito fundamental, o direito à liberdade».
Entendem que a referência no despacho de pronúncia a «medidas de coacção: as em vigor», não poderia revogar o despacho anterior, no qual, após reexame, se fixaram aos arguidos medidas privativas de liberdade, pois, a ser assim, estabelecer-se-ia um conflito directo com o estipulado no artigo 219º do Código de Processo Penal (de 1987); é que, enquanto esta disposição legal determina a recorribilidade de decisões que ordenem a prisão preventiva, o artigo 310º do mesmo diploma legal determina a irrecorribilidade do despacho de pronúncia e a imediata remessa dos autos para julgamento.
Pretendiam os recorrentes
saber se para o Tribunal da Relação de Évora um despacho recorrível, por imposição do artigo 219.º do Código de Processo Penal pode ser substituído por um despacho não recorrível, nos termos do artigo 310.º do mesmo Código de Processo Penal?
Concluem que, se a Relação entender que aquela expressão «medidas de coacção: as em vigor» revoga e substitui o anterior despacho que ordenara a prisão preventiva dos arguidos, o artigo 310º, nº 1, do Código de Processo Penal é inconstitucional, por violação dos artigos 32º, nº 1, e 13º, nºs 1 e 2, da Constituição.
2. Por acórdão de 23 de Janeiro de 1996, a Relação de Évora indeferiu o requerimento de aclaração dos arguidos, nomeadamente por considerar que os recorrentes não lograram provar que existisse qualquer ambiguidade ou obscuridade no acórdão recorrido. Entendeu-se, nomeadamente, que:
Se os recorrentes tinham dúvidas sobre o alcance do despacho de pronúncia, na parte relativa às medidas de coacção, deveriam ter pedido a sua aclaração ao Magistrado que o proferiu, no processo em curso na Comarca, nos termos do artigo 380º do Código de Processo Penal.
Pretender agora, a propósito do recurso de um anterior despacho, que se esclareça qual o alcance dessa parte do despacho de pronúncia é querer que este Tribunal da Relação conheça de uma questão que está fora do
âmbito do recurso.
3. Não se conformando com esta decisão, vieram os arguidos da mesma interpor recurso para este Tribunal, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea b), artigo 72º, nº 1, alínea b), e artigos 75º e 75º-A, todos da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional - Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Pretendem ver reconhecida a inconstitucionalidade do artigo 310º do Código de Processo Penal, pelos fundamentos alegados no requerimento de aclaração.
Admitido o recurso, e remetido o processo para o Tribunal Constitucional, pelo Relator foi elaborada exposição prévia, nos termos do artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, no qual entendeu não se dever tomar conhecimento do recurso, pelos seguintes fundamentos:
O recorrente indica ter suscitado a questão de inconstitucionalidade no requerimento de aclaração do acórdão recorrido.
Contudo, este Tribunal - em jurisprudência constante e uniforme
- vem entendendo que só se considera suscitada durante o processo a questão de inconstitucionalidade, quando em tempo de o tribunal a quo sobre ela se dever pronunciar, por não se encontrar esgotado o seu poder jurisdicional sobre a matéria.
Assim, como se escreveu no Acórdão nº 62/85 (publicado no Diário da República, 2ª Série, de 31 de Maio de 1985; e, bem assim, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e segs.), para cuja fundamentação se remete, 'o pedido de aclaração de uma decisão judicial da qual já não cabe recurso ordinário é meio inidóneo para se suscitar ex novo uma questão de inconstitucionalidade, para efeito de se poder vir a usar do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição.
4. Devidamente notificados, os recorrentes B. e C. apresentaram resposta, na qual requereram que o recurso fosse admitido e julgado.
Por sua vez, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal concluiu pela não admissibilidade do recurso, pelos fundamentos constantes da exposição do relator.
5. Dispensados os vistos, cumpre, agora, decidir.
II - FUNDAMENTOS
6. A resposta dos recorrentes em nada veio infirmar a mencionada exposição do relator, limitando-se a afirmar que só após a decisão do Tribunal da Relação de Évora foram confrontados com a questão da não aplicação pelo tribunal de uma norma inconstitucional - o artigo 310º do Código de Processo Penal -, pelo que só então puderam suscitar essa questão nova.
De todo lhes falece razão, porquanto é manifesta a falta do pressuposto processual consistente na atempada alegação da inconstitucionalidade 'durante o processo'.
Para se abrir caminho ao recurso de constitucionalidade, impõe a lei que a questão de inconstitucionalidade de uma norma haja sido suscitada «durante o processo», o que sói dizer-se, como repetidamente tem sido afirmado por este Tribunal, em momento tal que o tribunal recorrido ainda pudesse e devesse conhecer da questão, ou seja, necessariamente em momento anterior àquele em que se deva considerar esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido.
Ora, como se pode ler no Acórdão nº
334/92 deste Tribunal (não publicado), sendo certo que «esgotando-se, em princípio, o poder jurisdicional com a prolação da sentença e que a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial nem torna esta obscura ou ambígua, o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação por nulidade não são, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade.»
O mesmo entendimento tem sido constante e uniformemente seguido por este Tribunal, nomeadamente no já citado Acórdão nº
62/85.
7. Nem podem os recorrentes pretender que se trata de um questão nova, insusceptível de ser levantada em qualquer outro anterior momento do processo.
A norma em causa - o artigo 310º do CPP - não foi aplicada de forma inesperada, pelo contrário, sempre seria norma essencial, quer porque regulamenta a matéria relativa ao despacho de pronúncia, quer porque a interpretação dela feita pelo tribunal a quo - a de que o despacho de pronúncia é recorrível na parte em que determine a privação provisória da liberdade - tem sido frequentemente seguida pelos tribunais, nomeadamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo que sempre deveriam os recorrentes prevenir a possibilidade da sua aplicação, com o sentido que lhe foi dado, suscitando atempadamente e pelos meios idóneos, a alegada questão da inconstitucionalidade.
8. É certo que, na sua resposta, vêm os recorrentes invocar que a nova questão é a da não aplicação de norma inconstitucional pelo tribunal a quo, sendo o seguimento do recurso imposto pela necessidade de se não «esvaziar de conteúdo a alínea a) do nº 1 do artigo 280 da Constituição da República», inculcando, assim, que o presente recurso se arrimaria naquela disposição constitucional - e, consequente e implicitamente, na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
A verdade, porém, é que o requerimento de interposição do recurso é inequívoco quanto ao tipo de recurso que se pretende interpor - o da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC e, portanto, da alínea b) do nº 1 do artigo 280º da CRP.
Com efeito, para além de ser o recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC aquele que expressamente ali se invoca, refere-se com clareza que se pretende ver «declarada a inconstitucionalidade do artigo 310 do Código de Processo Penal» e sustenta-se que foram satisfeitas todas as exigências requeridas pelo nº 2 do artigo 75º da LTC [inaplicável no caso de recursos da alínea a)].
III - DECISÃO
9. Assim, e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em cinco UC's.
Lisboa, 9 de Julho de 1996 Luís Nunes de Almeida Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Fernando Alves Correia José Manuel Cardoso da Costa