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Processo n.º 9/12
2ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. No processo de execução comum n.º 1109/11.0YDLSB, da 3.ª Secção, do 3.º Juízo de Execução de Lisboa, em que é exequente o Ministério Público e executado A., foi proferido despacho liminar, após a distribuição dos respetivos autos, em que, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, se desaplicou o Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, e, julgando-se vigente o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, se determinou que fosse dada baixa e se procedesse à sua distribuição por um dos 12 (doze juízes do Juízo de Execução da Comarca de Lisboa, de acordo com este último diploma legal.
2. O Ministério Público interpôs recurso de tal decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, relativamente à parte em que nele se recusou a aplicação do Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica.
Tendo sido apresentadas as respetivas alegações de recurso, pelo Magistrado do Ministério Público neste Tribunal, nelas conclui da seguinte forma:
“…
Entende pois, este Ministério Público, que os critérios interpretativos utilizados, pelo digno magistrado judicial, no despacho recorrido, de 19 de dezembro de 2011, acabaram por conduzir a um resultado que não reflete, adequadamente, o sentido da evolução legislativa verificada.
Conclui-se, por isso, pelo deferimento do interposto recurso de constitucionalidade, com a consequente revogação do despacho recorrido, por se não verificar, nos presentes autos, nenhuma inconstitucionalidade orgânica que obste à aplicação, pelo tribunal a quo, do Decreto-Lei 113-A/2011, de 29 de novembro.
…”.
Apreciando e decidindo.
II. Fundamentação
3. Como se alcança da decisão recorrida, esta recusou-se a aplicar o Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto na alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, ou seja, por violação de reserva legislativa da Assembleia da República aí prevista, pelo que o objeto do recurso se cinge à parte daquele diploma legal que procede à revogação do Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, isto é, ao n.º 1 do seu artigo 1.º.
4. Sucede que sobre esta matéria, em caso manifestamente idêntico e sobre decisão proferida no mesmo Tribunal de Execução e Secção, já o Tribunal Constitucional se pronunciou, pelo menos, nos Acórdãos n.º 174/2012 e 175/2012, ambos da 2.ª Secção, sendo que, no primeiro dos citados acórdãos se deixou explicito, no que à decisão releva, que:
“…
A decisão recorrida, considerando a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, uma lei de bases que consagrava os princípios vetores do regime jurídico da organização e do funcionamento dos Tribunais Judiciais, entendeu que o conteúdo do Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, ao revogar o disposto no anterior Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, em vez de desenvolver aqueles vetores, como era sua obrigação constitucional, contrariou-os, pelo que sofre de inconstitucionalidade orgânica, uma vez que legislou inovatoriamente em matéria que competia à Assembleia da República.
É certo que, nos termos do artigo 112.º, n.º 2, da Constituição, um decreto-lei que tenha como parâmetro normativo de referência uma lei de bases, em matéria reservada à Assembleia da República, deve subordinar-se aos seus princípios e directrizes. Contudo, não há qualquer razão para qualificar a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, como uma lei de bases. Nem esta se intitula como tal, nem as características do seu complexo normativo permitem tal qualificação.
Na verdade, apenas deve ser considerada uma lei de bases aquela que se resuma à enunciação das opções político-legislativas fundamentais na matéria em causa, através da formulação de princípios normativos, diretrizes ou critérios gerais, contidos em disposições de reduzida densidade, dotados de um grau de indeterminação tal que exija necessariamente o seu desenvolvimento e concretização através de uma atividade legislativa subsequente.
Ora, conforme resulta da leitura da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, esta não se limitou a enunciar os grandes princípios da política legislativa em matéria de organização e funcionamento dos tribunais judiciais, tendo ela própria definido com o pormenor necessário a estrutura dessa organização e o modo de funcionamento dos tribunais judiciais. Aliás não existindo na redação da alínea p), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição, qualquer referência a bases, nunca poderia o legislador parlamentar optar por apenas restringir a sua intervenção a uma lei de simples enunciação de princípios normativos, uma vez que estamos num domínio em que existe uma reserva de densificação total (vide, neste sentido, Jorge Miranda, em “Manual de direito constitucional”, tomo V, pág. 377-378, da 3.ª ed., da Coimbra Editora, e Blanco de Morais, em “Curso de direito constitucional”, tomo I, pág. 326, da ed. de 2008, da Coimbra Editora)
Contudo, o facto de não se ter aderido à qualificação da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, como lei de bases, não invalida que o decreto-lei aqui sob fiscalização não deva respeitar a reserva da competência legislativa da Assembleia da República estabelecida na alínea p), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição.
Conforme resulta da descrição que acima se fez das normas específicas da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, sobre a sua aplicação no tempo, o regime por ela consagrado, relativo à organização e funcionamento dos tribunais judiciais, foi instituído numa primeira fase, a título experimental, em determinadas comarcas piloto, visando-se testar ou ensaiar a aplicação das suas normas, limitando tal aplicação no tempo e no espaço, de modo a permitir uma avaliação dos efeitos e resultados dela decorrentes.
Este «método» de legislação tem na sua base uma indecisão do legislador, que adota uma atitude de prudência.
Como se disse no Acórdão n.º 69/2008 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt) relativamente a uma lei que adotou igual metodologia, “a «normação experimental» pressupõe antes do mais um legislador indeciso, ou ao qual faltam certezas quanto à regulação definitiva a adotar para o cumprimento de certas políticas públicas ou para a disciplina de certos domínios da vida coletiva. Ao invés, por isso, de esperar que a adequação do Direito às realidades se faça, na continuidade, pela jurisprudência, ou na descontinuidade, por reformas legislativas sucessivas – como sucede com o método, chamemos-lhe assim, ‘clássico’ de normação –, o «legislador experimental» testa ou ensaia primeiro, num espaço e num tempo limitados, a aplicação e os efeitos da aplicação das suas normas, a fim de evitar os riscos que, em situações de elevado grau de incerteza quanto aos efeitos de certa regulação, geraria porventura a adoção de sistemas normativos ‘definitivos’. (Pierre-Henri Bolle, «Lois Expérimentales et Droit Pénal», em Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXX, 1994, pp. 321-335). Assim, o legislador que «experimenta» – tal como o legislador que toma ‘medidas’ para situações que não são nem gerais nem abstratas – parece ser movido por uma racionalidade técnico-económica que será diversa daquela que orienta os métodos ‘comuns’ de legiferação.”
Daí que o artigo 187.º, da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 162.º, da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, tenha determinado que a entrada em vigor da nova organização judiciária, ao restante território nacional, para além das comarcas piloto, se faria de forma faseada, durante um período de 4 anos, a partir de 1 de setembro de 2010, tendo incumbido o Governo de executar essa aplicação faseada, através de decretos-lei que definissem as comarcas a instalar em cada fase, tendo em atenção a avaliação do impacto da sua vigência nas comarcas piloto, a efetuar nos termos do artigo 172.º, do mesmo diploma.
O legislador parlamentar remeteu, pois, para o Governo, a tarefa de avaliar os resultados da aplicação da lei nas comarcas piloto e, de acordo com a avaliação efetuada, faseadamente, durante um período de quatro anos, determinar a sua aplicação a outras comarcas do país.
Esta atividade legislativa do Governo não é conformadora do regime da organização e funcionamento dos tribunais judiciais, situando-se claramente num domínio de mera execução e aplicação do regime consagrado na Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, pelo que se encontra fora da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia República estabelecida na alínea p), do artigo 165.º, da Constituição, sendo, por isso, legítima a remissão para o exercício das funções legislativas do Governo.
E o Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, ao revogar o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, impedindo que se efetivasse o alargamento do novo mapa judiciário às comarcas de Lisboa e Cova da Beira, o qual havia sido determinado por este último diploma, mantém-se no referido domínio da mera execução e aplicação do regime consagrado na Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, não invadindo a competência legislativa reservada ao legislador parlamentar nesta matéria.
Na verdade, o diploma sob fiscalização em nada altera a estrutura judiciária construída pela Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, tendo apenas recuado na sua aplicação a novas comarcas, a qual havia sido determinada por um anterior decreto-lei, emitido em cumprimento de acordo de apoio financeiro a Portugal que incluía uma cláusula nesse sentido, após o Estado Português se ter libertado desse específico compromisso e o Governo ter entendido que existiam elementos fornecidos durante a fase experimental que aconselhavam uma reponderação da malha judiciária.
Note-se que, apesar de estar subjacente ao Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, a necessidade de uma redefinição da estrutura judiciária criada pela Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, ele não procede a qualquer alteração dessa estrutura, limitando-se a suster a sua aplicação às comarcas de Lisboa e da Cova da Beira, até que se encontre definido e consensualizado o novo paradigma de organização judiciária. E tendo intervindo apenas no campo executivo da aplicação no tempo e no espaço daquela lei, manteve-se fora da área reservada à intervenção legislativa da Assembleia da República, não sofrendo, por isso, do vício da inconstitucionalidade orgânica.
…”.
Daí que, atenta a manifesta coincidência existente na questão a decidir e concordando-se integralmente com a jurisprudência citada por se não vislumbrarem quaisquer razões que justifiquem a sua alteração, se conclua pela procedência do presente recurso.
III. Decisão
Nos termos supra expostos, decide-se:
a) – Não julgar inconstitucional o artigo 1.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro de 2011;
b) – E, consequentemente, julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o precedente julgamento de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 24 de abril de 2012. – J. Cunha Barbosa – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.