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Proc. nº 64/96
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. Por despacho de 4 de Maio de 1994, foram pronunciados, no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real de Santo António, A., B., C., e outros, como autores, em co-autoria, de um crime de desvio de subsídio (previsto e punido pelo artigo 37º, nºs 1, 3 e 4, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro), de um crime de fraude na obtenção de subsídio, na forma tentada (previsto e punido pelos artigos 36º, nº 1, alínea a), e nº 8, alínea a), do mesmo diploma legal, com referência aos artigos 22º e
23º do Código Penal), de um crime de fraude na obtenção de subsídio (previsto e punido pelo artigo 36º, nº 1, alínea a), nº 2, nº 3 e nº 5, alínea a), do citado diploma), e de um crime de fraude na obtenção de subsídio na forma tentada
(previsto e punido pelo artigo 36º, nº 1, alínea a), nº 2, nº 3 e nº 5, alínea a), do mesmo decreto-lei, com referência aos artigos 22º e 23º do Código Penal).
Como questão prévia, suscitada pelos arguidos em sede de instrução, apreciou o juiz a quo a questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº 28/84, decidindo pela não inconstitucionalidade do mesmo diploma.
Não conformados com essa decisão, os arguidos interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Évora. Na sua motivação de recurso, formularam as seguintes conclusões:
(1) o Decreto-Lei nº 28/84, de 20.01 - que serve de base à incriminação dos ora recorrentes - está ferido de inconstitucionalidade orgânica;
(2) na verdade, o referido diploma invoca como norma de autorização legislativa a Lei nº 12/83, de 24.08, a qual concedeu 120 dias para que o Governo legislasse sobre a matéria relativamente à qual a autorização legislativa foi concedida;
(3) sucede que dentro do prazo de 120 dias o Governo apenas conseguiu obter a aprovação em Conselho de Ministros, ou seja apenas alcançou o momento cons- titutivo do processo legislativo;
(4) dentro desse prazo não conseguiu o Governo que fossem alcançados dois momentos essenciais à existência do diploma gerado, seja a promulgação e a referenda (artigo 140º e 143º, nº 2 da CRP);
(5) incumbia ao Governo tomar as cautelas para que fossem cumpridos todos os prazos, pois tratava-se de prazo cominatório;
(6) a autorização legislativa caducou e assim o Governo emitiu o diploma fora de qualquer autorização o que gera inconstitucionalidade orgânica;
(7) não podem os Tribunais aplicar normas inconstitucionais e ao lavrar despacho de pronúncia com fundamento na referida norma incriminatória, o tribunal a quo foi o que fez;
(8) nestes termos, deve ser declarada a inconstitucionalidade suscitada e revogado o despacho de pronúncia, por falta de norma incriminatória válida.
2. Na sua resposta, o Agente do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real de Santo António defendeu a constitucionalidade orgânica do diploma.
Por acórdão de 30 de Maio de 1995, o Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso. Nessa decisão, pode ler-se:
Após 1976, no sistema Constitucional Português, a promulgação é um acto da esfera da competência específica do Presidente da República, implicando a falta de promulgação a inexistência jurídica dos actos legislativos
- art.137 al.b) da C.R.P..
O Presidente da República não participa na formação do acto legislativo, não lhe cabendo o poder legislativo.
O acto de promulgação presidencial não representa mais do que a validação do acto legislativo e a referenda consagrada no art. 143 da C.R.P. nada mais representa do que a autorização da promulgação presidencial.
A promulgação e a referenda sendo actos necessários à validação do acto legislativo, são exteriores e independentes dele (Ac. S.T.J. de 2-10-91
- Processo nº 41.760, in BMJ, 387-215).
O acto de legislar termina com a aprovação dos diplomas legislativos em Conselho de Ministros.
A autorização legislativa da Assembleia da República dirige-se a um órgão próprio e autónomo - o Governo - que compartilha competências legislativas com a Assembleia e não ao Presidente da República que as não possui e sendo assim, só ao Governo se pode exigir que legisle no prazo concedido.
3. É desta decisão que vem interposto o presente recurso, tendo os recorrentes, por manifesto lapso, indicado que o faziam ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
Manifestamente, o que pretendiam, porém, era indicar a alínea b) da mesma disposição legal, sendo certo que do próprio requerimento de interposição resulta claramente expressa a indicação do fundamento dessa interposição - a apreciação da constitucionalidade do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, aplicado na decisão recorrida. Conclui-se, assim, do próprio requerimento que se tratou de mero lapso material, já corrigido na Relação pelo Desembargador-Relator.
4. Admitido o recurso, o Relator do processo neste Tribunal entendeu que o mesmo não podia obter provimento, dizendo em exposição prévia:
O assunto a resolver afigura-se-nos simples, por já ter sido objecto do Acórdão nº 302/95 (D.R., II, 29/7/95).
Notificados nos termos do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, vieram os recorrentes propugnar a prossecução do recurso, invocando a complexidade da questão:
(1) a questão em apreço não é simples;
(2) ela não se resolve com um acórdão de mera remissão para o aresto desse TC citado pelo Meritmº Relator (Acórdão nº 302/95, procº 35/94, DR, II, nº 174 de 29.07.95);
(3) o que se argui neste processo é diferentemente que a promulgação e a referenda são condições de existência jurídica e não de eficácia
- como se pretendia naquele aresto - de um diploma legislativo;
(4) assim se o Governo até expirar o prazo - que é de caducidade de duração da autorização legislativa - apenas lograr obter a mera aprovação em CM, faltam ao iter legislativo dois actos da fase de controlo;
(5) essa omissão implica a inexistência jurídica do diploma em causa;
(6) sendo o ónus de legislar inerente à autorização legislativa um ónus de resultado, o Governo deve dentro dos largos prazos concedidos para o efeito reunir o que deve fazer e o que deve obter para o efeito de conseguir produzir legislação existente;
(7) um Decreto-Lei - sobre matéria prevista no artigo 168º, nº
1, alínea c) da CRP - em que apenas a aprovação em CM foi alcançada dentro do prazo de duração da autorização legislativa é um diploma emitido fora do âmbito de permissão inerente à autorização legislativa (nº 2 do citado artigo 168º da CRP), o que causa de inconstitucionalidade orgânica;
(8) é o caso do Decreto-Lei nº 28/84, que está em causa nestes autos.
Por sua vez, na sua resposta, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal manifestou a sua concordância com a exposição do Relator.
5. Corridos os vistos legais, cumpre, então, decidir.
II - FUNDAMENTOS
6. A questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, não é nova, tendo sido objecto do indicado aresto (Acórdão nº 302/95), e o entendimento aí perfilhado tem-no sido de forma constante e unânime por este Tribunal, em variada jurisprudência.
Aquele decreto-lei foi emitido pelo Governo ao abrigo da Lei nº 12/83, de 24 de Agosto - lei de autorização legislativa -, a qual concedeu um prazo de 120 dias ao Executivo para legislar sobre ilícitos penais em matéria de infracções antieconómicas e sobre a saúde pública.
Tendo, dentro desse prazo de 120 dias, apenas sido obtida a aprovação do diploma em Conselho de Ministros, mas já não a sua promulgação e referenda, pretendem os recorrentes que tal falta - de promulgação e de referenda - importa a inexistência jurídica, ou seja, na sua própria terminologia,
tais omissões põem em causa a própria existência do diploma de cuja tempestividade se trate.
E alegam que o acórdão referido deste Tribunal trata de maneira idêntica os conceitos de inexistência e de ineficácia jurídicas, empregues pela Constituição de forma distinta.
Entendem os recorrentes que a falta daqueles actos importa a inexistência jurídica do diploma em causa, e, consequentemente, sendo eles, no seu entender, parte essencial do iter legislativo, deverão ser considerados parte integrante do mesmo para efeitos de prazo de caducidade da autorização legislativa ao abrigo da qual tenha sido emitido. Em suma, a posição defendida pelos recorrentes consiste em colocar o acento tónico na questão da inexistência jurídica do acto, consequência constitucionalmente determinada para a falta da referenda ou da promulgação, daí
'transplantando' essa consequência para o plano da utilização de uma autorização legislativa.
Ou seja, os recorrentes discordam da presente orientação jurisprudencial, e querem 'vestir' de forma diferente a mesma questão de constitucionalidade, - que é, afinal, a de apurar se a simples aprovação em Conselho de Ministros, dentro do prazo concedido na autorização legislativa, é bastante para legitimar, constitucionalmente, o diploma, o que equivale a determinar se, para efeitos de utilização de uma autorização legislativa dentro do prazo de validade respectivo, se devem incluir nesse prazo, os actos de promulgação e referenda, ou se bastará a aprovação em Conselho de Ministros dentro do mesmo prazo para, sempre de um ponto de vista exclusivamente constitucional, se considerar devidamente utilizada a autorização parlamentar.
7. Pode-se concordar ou não com a orientação jurisprudencialmente seguida, o que se não pode é pretender chamar
'fundamento novo' à mesma questão, só porque se reitera opinião diversa daquela orientação.
Com efeito, não se descortina na argumentação dos recorrentes quaisquer fundamentos novos que justifiquem a alteração da posição assumida, nomeadamente no citado Acórdão n.º 302/95. Este, aliás, remete para a fundamentação do Acórdão nº 651/93 (publicado no Diário da República, nº 76, II Série, de 31 de Março de 1994), acórdão este que apreciou o diploma agora em causa, e esta mesma questão (sobre esta matéria, podem citar-se ainda os Acórdãos nº 150/92, nº 386/93 e nº 146/96, publicados no Diário da República, II Série, de 28 de Julho de 1992, de 2 de Outubro de 1993 e de 7 de Maio de 1996, respectivamente).
Como se pode ler naquele Acórdão nº
651/93:
Como o Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, editado no uso da referida autorização legislativa, foi aprovado em Conselho de Ministros de 6 de Dezembro de 1983, mas só foi promulgado em 9 de Janeiro de 1984, referendado no dia 11 seguinte e publicado a 20 desse mesmo mês e ano, coloca-se a questão de saber, destes actos do processo legislativo, qual é o constitucionalmente relevante para o efeito de se dever considerar utilizada em tempo a autorização legislativa.
É que, tal autorização só foi utilizada em tempo, se esse acto for o da aprovação em Conselho de Ministros - como se decidiu no acórdão recorrido -, pois que só ele ocorreu antes de a autorização ter caducado. Todos os outros actos do iter legislativo tiveram lugar depois dessa data.
Este Tribunal já teve ocasião de decidir esta questão.
Mesmo perante um texto como o da primitiva redacção do nº 4 do artigo 122º da Constituição - que estabelecia que a falta de publicação dos actos implicava a «inexistência jurídica» dos mesmos -, o Tribunal (seguindo, aliás, na esteira da jurisprudência que, a partir do Acórdão nº 122, se impôs na Comisão Constitucional), pronunciou-se no sentido de que a publicação de um decreto-lei não era elemento de validade, sim e tão-só de eficácia.[...]
A publicação de um decreto-lei não é, assim, um elemento da sua validade.
A falta de promulgação ou de referenda importam, é certo, a inexistência jurídica do acto (cf. artigos 140º e 143º, nº 2, da Constituição).
Daqui, porém, não decorre que, para o efeito agora considerado
- ou seja: para o efeito de saber qual o acto do iter legislativo que se deve considerar relevante quando esteja em causa verificar se o Governo, ao editar um decreto-lei no uso de uma autorização legislativa, o fez dentro do respectivo prazo de validade - se haja de atender à data da promulgação ou à da referenda.
8. É esta a orientação que vem sendo perfilhada por este Tribunal, nomeadamente no mencionado Acórdão nº 302/95, e que aqui se reafirma.
Não ignorou nem confundiu o Tribunal aqueles invocados conceitos constitucionais de inexistência e de ineficácia jurídicas; o que fez foi, tão-só, considerar que, sendo as autorizações legislativas dirigidas ao Governo, o respectivo prazo de validade se direcciona apenas à sua utilização por este órgão de soberania - ou seja, ao acto de aprovação do decreto-lei autorizado -, sendo irrelevante qualquer discussão, a este propósito, sobre as condições de eficácia e/ou de existência jurídica dos diplomas legais.
Pelo que, nos termos expostos, se conclui que o Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro, não enferma de inconstitucionalidade orgânica, pois foi aprovado em Conselho de Ministros antes de caducada a autorização legislativa respectiva.
III - DECISÃO
9. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco UC's.
Lisboa, 9 de Julho de 1996 Luís Nunes de Almeida Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Fernando Alves Correia José Manuel Cardoso da Costa