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Processo nº 169/95
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do despacho do Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de Fevereiro de 1995, que lhe indeferiu uma reclamação, mantendo a decisão da instância que não admitiu um recurso por ele interposto para aquele tribunal de relação.
Invoca o recorrente o seguinte no requerimento respectivo:
'1º O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do artº 70 da Lei
28/82 de 15 de Novembro.
2º Pretende o Recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade do artº 74 do Decreto-Lei 433/82 de 27 de Outubro.
3º O Recorrente considera violado o princípio da igualdade e da não discriminação consignado nos arts 13 e 266 nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
4º A inconstitucionalidade alegada foi suscitada na Reclamação apresentada para o Exmº Senhor Juiz Presidente do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, pois só nessa altura e não antes se questionou a 'desigualdade' do prazo previsto no artº 74 para a interposição do Recurso e o prazo para a outra parte responder'.
2. Nas suas alegações, concluiu assim o recorrente:
'1º O artº 74, nº 1 do Decreto Lei 433/82 de 27 de Outubro, fixa o prazo de cinco dias para a interposição do recurso da decisão judicial;
2º O nº 4 do artº 74, dispõe que 'o recurso seguirá a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as especialidade que resultam deste diploma legal';
3º Nos termos do artº 413 do Código de Processo Penal, 'os sujeitos processuais afectados pela interposição do recurso, podem responder no prazo de dez dias, contados da notificação referida no artº 411, nº 4';
4º Como se torna claro, existem 'in casu' dois prazos: um de 5 dias para o Recorrente que decorre do artº 74 do Decreto Lei 433/82 e outro de 10 dias para os sujeitos processuais afectados pela interposição de Recurso, que resulta do Código de Processo Penal;
5º A existência destes dois prazos processuais, viola o princípio da igualdade, na sua dimensão de princípio de igualdade de armas (cfr artºs 13 e 32 da Constituição da República Portuguesa);
6º O 'statu quo' existente encontra-se em via de ser alterado, em decorrência da publicação da Lei 13/95 de 5 de Maio, que concedeu ao governo autorização legislativa para rever o regime geral do ilícito de mera ordenação social;
7º A revisão do regime geral do ilícito de mera ordenação social 'passa' pelo alargamento do prazo do recurso para 10 dias, em articulação com o regime geral do Código de Processo Penal e em consonância com os princípios constitucionais;
8º O artº 74, nº 1 do Decreto Lei 433/82 é pois, na óptica do Recorrente, inconstitucional'.
3. Contra-alegou o Ministério Público, sustentando que 'improcede o presente recurso', para o que adiantou as seguintes conclusões:
'1º O artigo 74º, nº 4, do Decreto-Lei nº 433/82 deve ser interpretado no sentido de que o prazo de resposta do recorrido à motivação do recorrente, em processo contra-ordenacional, é de apenas 5 dias, por representar 'especialidade' vigente em tal forma de processo o encurtamento dos prazos de interposição e motivação - e, consequentemente, de resposta a esta.
2º O bloco normativo consistente nas normas do artigo 74º, nº 1, do citado Decreto-Lei nº 433//82 e do nº 4 de tal preceito, devidamente interpretado, nos termos anteriormente referido, não viola o princípio da igualdade de armas'.
4. Vistos os autos, cumpre decidir.
A história do caso é esta:
4.1. Ao recorrente foi negado provimento, por sentença do Mmº Juiz do Tribunal Judicial da comarca de Águeda, de 29 de Novembro de 1994, ao recurso que havia interposto da decisão do Director-Geral do Ambiente que, em processo de contra-ordenação, lhe impôs uma coima.
4.2. Dessa sentença veio interpor o recorrente recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, 'de harmonia com as disposições contidas no artºs 73, 74, 75 do Decreto-Lei 433//82 de 27 de Outubro e artºs 399, 401, 406 e 408 do Código de Processo Penal', em requerimento entrado no tribunal de comarca em 15 de Dezembro de 1994 e ao qual foi junta a respectiva motivação.
4.3. Tal recurso não foi admitido por despacho do Mmº Juiz daquele Tribunal, de 5 de Janeiro de 1995, por intempestivo, sendo este o fundamento do decidido:
'Com efeito, o recorrente foi notificado da sentença, no dia da sua leitura ou seja, em 29 de Novembro de 1994.
O prazo de interposição do recurso é de 5 (cinco) dias, a partir da sentença - artigo 74º, nº 1, do Decreto Lei 433/82 de 27 de Outubro.
O recurso deu entrada em 15.12.94, ou seja, já depois de decorrido aquele prazo'.
4.4. Desse despacho apresentou o recorrente reclamação dirigida ao Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, 'ao abrigo do artº 405 do Código de Processo Penal', sustentando que o nº 1 do artigo 74º do Decreto-Lei nº
433/82, de 27 de Outubro, é inconstitucional.
É este o essencial do discurso do recorrente:
'Na óptica do Arguido, o prazo de interposição referido no artº 74 do mencionado diploma legal, viola as garantias de defesa do Arguido, consagrados no artº 32 da Constituição da República, traduzindo-se tal violação no facto de não ser igual o prazo para a interposição do Recurso e o prazo para a Resposta, o que significa na prática que a parte afectada pela interposição, tem 10 dias para a apresentar a Resposta de harmonia com o artº 413 do Código de Processo Penal, aplicável 'ex vi' do nº 4 do artº 74 do Decreto-Lei 433/82 de 27 de Outubro'.
4.5. Aquela reclamação foi indeferida no despacho ora recorrido, onde se lê:
' Dispõe o nº 1 do artigo 74º do Decreto-Lei nº 433/82 que o recurso será interposto no prazo de 5 dias a partir da sentença ou do despacho ou da sua notificação ao arguido, caso a decisão tenha ocorrido na sua ausência. E o nº 4 prescreve que o recurso terá a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as especialidades que resultem deste diploma - o Decreto-Lei nº 433/82.
Assim, e tendo o reclamante estado presente na leitura da decisão, o prazo para recorrer conta-se a partir dessa data. E, tendo essa leitura ocorrido em 29 de Novembro de 1994 e o recurso dado entrada no Tribunal em 15 de Dezembro de 1994, dúvidas não há que estava excedido aquele prazo de 5 dias.
Para fazer vingar a sua reclamação, pretende-se que aqueles prazos de recurso e de resposta violam as garantias de defesa e de igualdade consagradas na Constituição.
Não se vê razão para considerar que aquele prazo de 5 dias vá, por qualquer forma, violar o direito de defesa e as suas garantias, princípio esse consagrado no nº 1 do artigo 32º da Constituição. Não é esse prazo que o impedirá de se defender e de lhe assegurar as garantias de defesa. Esse prazo é o que o legislador entendeu como razoável para o arguido se defender por meio da interposição de recurso e em nada contende com aquele falado nº 1 do artigo
32º.
Por outro lado, também se não verifica violação do princípio da igualdade estabelecida no artigo 13º da Constituição. Na verdade, esse princípio estabelece que se deve tratar de igual forma o que é essencialmente igual e tratar diferentemente o que essencialmente for diferente. Esse princípio só proíbe as distinções arbitrárias ou sem fundamento material bastante.
Ora, aquele artigo, no seu nº 1, não estabelece qualquer desigualdade quanto ao prazo para interpor recurso. Ele aplica-se igualmente a todos os recorrentes.
Situação diferente da do recorrente é a do 'recorrido', e, assim, nada impede que o prazo para o seu direito de resposta seja também diferente.
Não se verifica, assim, qualquer inconstitucionalidade do nº 1 do referido artigo 74º.
Afastada a questão da inconstitucionalidade suscitada, de concluir é, pois, que o recurso foi interposto fora daquele prazo de 5 dias'.
5. O questionado nº 1 do artigo 74º do Decreto-Lei nº 433/82, em matéria de recurso no processo de contra-ordenação, estabelece o prazo de cinco dias para ser interposto o recurso aí previsto, contando-se o prazo 'da sentença ou do despacho ou da sua notificação ao arguido, caso a decisão tenha ocorrido na sua ausência'.
Abordando, à partida, o plano garantístico, não se vê como se possa defender que tal prazo, por ser exíguo, ofende as garantias do arguido em processo criminal, sediadas no artigo 32º da Constituição (e aquele processo é direito subsidiário, à luz do artigo 41º do Decreto-Lei nº 433/82).
É que a simplicidade do tipo processual em causa e os objectivos que visa alcançar o processo de contra-ordenação compadecem-se perfeitamente com um prazo de cinco dias para interposição de recurso, assegurando-se com ele perfeitamente as garantias de defesa do arguido em tal processo (o preâmbulo do Decreto-Lei nº
232/79, de 24 de Julho, que antecedeu o vigente Decreto-Lei nº 433/82, refere-se a 'processo extremamente simplificado' e continua a ser esse o retrato de uma tramitação processual curta e de contornos facilitadas para as partes e, portanto, para o arguido).
E o Tribunal Constitucional tem dito já, relativamente a outras categorias de processos, como, por exemplo, no domínio dos crimes de abuso de liberdade de imprensa (cfr. Acórdão nº 393/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 264, de 15 de Novembro de 1995), que os diversos mecanismos de aceleração processual ensaiados pelo legislador, designadamente o encurtamento dos prazos, 'tem justificação constitucional bastante', não ofende
'materialmente o texto constitucional' (cfr. os arestos citados no mesmo acórdão; cfr. ainda o acórdão nº 47/95, inédito).
Nem a circunstância de o legislador ter substituído o prazo em causa de cinco dias pelo prazo de dez dias, com o Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro, daí resultando um 'alargamento significativo' do prazo de recurso da decisão judicial (é a linguagem do preâmbulo do diploma), traduz, por si só, que a norma do nº 1 do artigo 74º, na redacção anterior e que interessa aqui, envolva qualquer ofensa das garantias de defesa do arguido. Trata-se de opções legislativas que não espelham, em hipóteses como esta, nenhum vício de inconstitucionalidade, seja mais encurtado, seja mais alargado, um prazo processual, pois não pode falar-se em limitação desproporcionada e intolerável do direito ao recurso por parte do arguido.
6. Da posição do recorrente decorre ainda a afirmação de que a existência de dois prazos processuais (o de cinco dias, do artigo 74º, nº 1, e o de dez dias, 'para os sujeitos processuais afectados pela interposição de Recurso, que resulta do Código de Processo Penal') 'viola o princípio da igualdade, na sua dimensão de princípio de igualdade de armas', à luz do artigo
13º da Constituição, na medida em que são prazos distintos para motivar e para responder no processo de contra-ordenação.
Partindo dessa afirmação, tudo está em saber se a pretensa diferenciação de tratamento dos sujeitos processuais se baseia em motivos subjectivos ou arbitrários, ou é materialmente infundada, e é este aspecto que releva para aferir a violação do princípio da igualdade, aqui na dimensão de igualdade
de armas no mesmo processo, enquanto princípio vinculativo da lei, traduzindo a ideia geral de proibição do arbítrio (na leitura, por exemplo, do Acórdão nº
213/93, publicado no Diário da República, II Série, nº 127, de 1 de Junho de
1993, seguido depois no citado Acórdão nº 47/95).
Na verdade, a aceitar-se um regime distinto para os actos processuais, como não pode deixar de aceitar-se, por aplicação dos nºs 1 e 4 do artigo 74º (o nº 4 manda seguir 'a tramitação de recurso em processo penal'), conjugados com os artigos 411º e 413º do Código de Processo Penal, tem de dizer-se que, sendo assim, ocorre afronta à regra da igualdade constitucionalmente consagrada, não valendo argumentar que o legislador se move no quadro de valores constitucionais, tais como os da celeridade da eficácia da justiça e da eficácia do sistema contra-ordenacional. E não pode também argumentar-se com a ideia de que uma coisa é o acto de interposição do recurso à disposição do arguido, que tem de ser motivado (cfr. artigo 411º do Código de Processo Penal), e outra é a resposta ao recurso, por aplicação do artigo 413º do mesmo Código, pois a igualdade de armas no mesmo processo supõe iguais mecanismos à disposição dos sujeitos processuais (igualdade que estava assegurada à data em que foi editado o Decreto-Lei nº 433/82, pois vigorava então o Código de Processo Penal de 1929, à face do qual a fase da motivação do recurso era posterior à sua interposição e era o mesmo o prazo para alegar e contra-alegar: artigos 645º,
649º e 651º daquele Código).
Sendo certo que a decisão recorrida não chegou a envolver-se num juízo de aplicação daquela norma do nº 4 do artigo 74º, pois nem sequer o presente processo chegou à fase de produção da resposta ao recurso pelo recorrido, a verdade é que o prazo mais encurtado para a motivação do recurso da parte do recorrente envolve ofensa do princípio da igualdade, tal como ela vem pelo recorrente delineada (cfr. os acórdãos deste Tribunal Constitucional nº 208/93 e
263/93, com identificação de mais arestos, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 24º, págs. 527 e 655).
Em suma, o artigo 74º, nº 1, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, quando dele decorre, conjugado com o artigo 411º, do Código de Processo Penal, um prazo mais curto para o recorrente motivar o recurso, está ferido de inconstitucionalidade, por violação do artigo 13º da Constituição.
7. Termos em que, DECIDINDO, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o despacho recorrido, para ser reformado de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 5 de Dezembro de 1996 Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida