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Proc. Nº 375/94
Sec. 1ª
Rel. Cons.
Vítor Nunes de
Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - A. foi julgado, em processo sumário, no Tribunal
Judicial de Portimão, pela acusação de, no dia 9 de Julho de 1994, pelas 00,30
horas, conduzir o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ------,
apresentando uma taxa de alcoolemia no montante de dois gramas e cinquenta e
dois centigramas de álcool por litro.
Por sentença do mesmo dia, o arguido foi condenado como
autor material do crime previsto e punido no artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº
124/90, de 14 de Abril, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 800$00,
fixando-se em alternativa a pena de 80 dias de prisão. Porém, na mesma decisão o
juiz recusou a aplicação da norma do artigo 4º, nºs 1 e 2 do referido diploma,
que estabelece a sanção acessória de inibição de conduzir, com fundamento na sua
inconstitucionalidade, por violar o artigo 30º, nº 4, bem como 'o princípio da
culpa (artigos 1º, 13º, nº 1 e 25º, nº 1, da Constituição da República
Portuguesa) e o princípio da proporcionalidade das sanções criminais (artigos
18º, nº 2 e 88º, nº 1, por identidade de razão, ambos da Constituição da
República Portuguesa)'.
2. - Desta decisão interpôs recurso obrigatório de
constitucionalidade o Ministério Público junto da Comarca de Portimão.
Neste Tribunal, apenas o Procurador-Geral adjunto em
exercício apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1º - Não pode considerar-se como efeito automático da condenação por certo tipo
legal de crime a imposição de uma sanção acessória, mediante decisão do juiz,
que se encontra habilitado a graduar a medida concreta daquela, em função da
ponderação das circunstâncias do caso.
2º - O regime estatuído no artigo 4º, nºs 1 e 2, alínea a), não ofende o
disposto no artigo 30º, nº 4, da Constituição, nem envolve infracção aos
princípios constitucionais da culpa e da proporcionalidade das sanções
criminais.
3º - Termos em que deve proceder o presente recurso, determinando-se a reforma
da decisão recorrida, em conformidade com o juízo de constitucionalidade das
normas desaplicadas.'
O recorrido não apresentou alegações.
Cumpre apreciar e decidir, corridos que foram os vistos
legais.
II - FUNDAMENTOS:
3. - A norma cuja conformidade constitucional se
discute, insere-se no Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, através do qual,
mediando a Lei de Autorização Legislativa nº 31/89, de 21 de Agosto, se criou um
novo tipo de ilícito penal correspondente à condução de veículo, com ou sem
motor, apresentando o condutor uma taxa igual ou superior a um grama e vinte
centigramas de álcool por litro no seu sangue, tendo também criado ilícitos de
natureza contravencional nos casos em que aquela taxa, sendo inferior à atrás
referida, seja, porém, igual ou superior a cinquenta centigramas e inferior a
oitenta centigramas de álcool, ou superior a esta última, mas inferior a cento e
vinte centigramas.
O diploma em causa estabeleceu para a infracção do
ilícito de natureza criminal a sanção de prisão até um ano ou multa até 200
dias, em caso de dolo e se pena mais grave não for aplicável e, em caso de
negligência, a pena de prisão até seis meses ou multa até 100 dias (cf. artigo
2º, nºs 1 e 2).
A estas penas e de acordo com o preceituado no artigo 4º
- a norma questionada nos autos -, o legislador resolveu fazer acrescer uma
sanção acessória, consistente na decretação da inibição da faculdade de
conduzir.
É o seguinte o teor do preceito questionado:
'Artigo 4º
Inibição da faculdade de conduzir
1 - Às penas previstas nos artigos 2º e 3º acresce a sanção acessória de
inibição da faculdade de conduzir.
2 - A inibição terá a seguinte duração:
a) Seis meses a cinco anos nos casos previstos no artigo 2º;
b) Três meses a dois anos nos casos previstos no nº 2 do artigo 3º;
c) Um a seis meses nos casos previstos no nº 3 do artigo 3º.'
4. - A decisão recorrida recusou a aplicação da norma da
alínea a) do nº 2 e do nº 1 do artigo 4º atrás transcrito com fundamento em que
a sanção acessória ali prevista, que consubstancia uma pena limitativa do
exercício de um direito civil, seria uma pena de aplicação automática na
sequência da condenação pela prática do ilícito criminal previsto no artigo 2º
do Decreto-Lei nº 124/90, o que contraria o preceituado no artigo 30º, nº 4 da
Constituição.
Ainda, segundo o entendimento da sentença impugnada, tal
norma viola os princípios constitucionais da culpa e da proporcionalidade das
sanções criminais na medida em que nela se prevê a mesma moldura da inibição,
quer para os ilícitos penais praticados sob a forma dolosa quer para os
praticados sob a forma negligente.
5. - Esta fundamentação não pode proceder. É certo que o
artigo 30º, nº 4, da Constituição estabelece que 'nenhuma pena envolve como
efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou
políticos', proibindo-se que qualquer norma determine a perda de tais direitos
como efeito automático da cominação de uma pena ou como efeito provindo
directamente da própria lei.
No caso em apreço, importa desde logo acentuar que a
sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir, tal como vem
caracterizada na norma do artigo 4º do Decreto-Lei nº 124/90, não pode
configurar-se como uma pena acessória de funcionamento automático em
consequência da condenação em pena privativa de liberdade ou pena de multa.
Com efeito, tal sanção é, nos termos do diploma em
causa, sempre aplicada pelo juiz do processo que, face ao circunstancialismo de
cada caso concreto, dispõe de amplos poderes para graduar a sanção em causa,
sendo os valores temporais de inibição (mínimo e máximo - seis meses e cinco
anos) fixados por forma a permitir um doseamento da sanção aplicada adequado ao
caso em apreciação.
Não pode, por isso, ser aqui invocado para fundamentar
um juízo de inconstitucionalidade o caso do Acórdão nº 224/90, deste Tribunal
relativo ao preceito do artigo 46º do Código da Estrada, então vigente.
Com efeito, não existe na norma em apreço qualquer
automatismo na aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir. Tal
aplicação passa pela mediação do julgador e pela previsão de um amplo espaço de
movimentação no tempo para concretização da sanção, que assim poderá ser
adequada ao caso e deverá ter em conta a intensidade do dolo ou da negligência
do comportamento do agente (cf. o artigo 72º do Código Penal, nº 2, alínea b)).
Por outro lado, para apreciação da conformidade
constitucional da solução legislativa e questão, apresenta-se como decisivo o
facto de não poder deixar de reconhecer-se a existência de uma evidente conexão
entre o facto ilícito desencadeador da responsabilidade penal e a pena acessória
de inibição da faculdade de conduzir.
Pode, com efeito, afirmar-se que decorre da prova da
grave violação dos deveres de condução do veículo automóvel (condução sob o
efeito do álcool) a aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, que
assim é tratada como seria se fosse uma pena principal (cf. neste sentido o
acórdão deste Tribunal, nº 143/95, de 15 de Março, ainda inédito)..
Inexiste, por isso, qualquer violação, por parte da
norma da alínea a), do nº 2 e do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 124/90, de
14 de Abril, do preceituado no nº 4 do artigo 30º da Constituição.
7. - Também não colhe a fundamentação da decisão
impugnada no sentido de existir violação dos princípios da culpa e da
proporcionalidade pela norma da alínea a), do nº 2 do artigo 4º do Decreto-Lei
nº 124/90.
Na verdade, o facto de a norma em causa prever a mesma
sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir, quer para o caso do
ilícito de condução sob o efeito do álcool ser cometido sob a forma dolosa quer
para o caso de o ser sob a forma negligente, não implica a violação daqueles
princípios.
É que, atenta a variação abstracta da dimensão temporal
da sanção - que a norma fixa entre o mínimo de seis meses e o máximo de cinco
anos -, ao julgador é conferida uma margem de apreciação suficientemente ampla
que lhe permite ter em consideração, no doseamento concreto da sanção acessória,
as circunstâncias de facto conexionadas com o grau de culpa do agente, graduando
de forma radicalmente diferente a sanção quando aplicada a um comportamento que
integre um grau de culpa menos acentuado (negligência) do que no caso de se
estar perante um comportamento doloso, integrador de uma maior grau de culpa.
Acresce que, na Constituição não existe qualquer
preceito ou princípio que imponha que as medidas da sanção principal e da sanção
acessória aplicáveis a certo comportamento tenham a mesma dimensão 'numérica'.
Aliás, é da natureza das sanções acessórias serem complementares e/ou
potenciadoras (a propósito da proliferação de sanções acessórias, Figueiredo
Dias fala de que 'ela corresponde a um, por vezes muito reclamado,
«revigoramento da intervenção penal», in 'Direito Penal Português',
Aequitas,pg.164) dos efeitos das sanções principais: no caso, a sanção acessória
de inibição de conduzir há-de ter como pressuposto formal a condenação do agente
numa pena principal por crime cometido no exercício de condução sob o efeito do
álcool; e por pressuposto material o facto de, atentas as circunstâncias do caso
e a pessoa do agente, o exercício da condução dever considerar-se
particularmente censurável, procurando-se, por isso, com a sanção acessória
contribuir, por forma relevante, para a prevenção de futuras prevaricações
semelhantes através da correcção cívica do comportamento do infractor (cf. neste
sentido, Figueiredo Dias, ibidem, pg. 165).
Por outro lado, e tendo agora em vista a alegada
violação do princípio da proporcionalidade, parece claro que basta atentar para
os perigos que indubitavelmente podem resultar da condução de veículos
motorizados sob a influência de álcool e para a gravidade social óbvia de um tal
comportamento, para reconhecer que a sanção acessória prevista na norma
questionada - inibição da faculdade de conduzir de seis meses a cinco anos - não
só não é excessiva ou irrazoável, como se apresenta perfeitamente justificada
face ao comportamento particularmente censurável do agente e face à perigosidade
que do mesmo decorre.
No já referido acórdão nº 143/95, sustentou-se idêntico
entendimento, na defesa do qual se aduziram as seguintes considerações:
'Efectivamente, nada autoriza a pensar que o número de
dias de moldura abstracta da inibição tenha de ser idêntico ao número de dias da
prisão ou da multa. Aliás, nem mesmo entre a prisão e a multa pode ser feita uma
equivalência deste tipo: apesar de a lei estabelecer critérios para a
substituição da prisão por multa (artigo 43º do Código Penal) e para a
determinação da prisão alternativa (artigo 46º, nº 3, do Código Penal), nunca
pode haver uma igualdade entre as molduras abstractas respectivas, desde logo
porque a lei começa por fixar em geral o mínimo da multa em 10 dias e o mínimo
da prisão em 30 dias (artigos 40º, nº1, e 46º, nº 1, do Código Penal) e estatui
em especial limites mínimos e máximos muito diversificados.'
Conclui-se, assim, que a norma da alínea a) do nº 2 do
artigo 4º do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, não viola os princípios
constitucionais da culpa e da proporcionalidade.
III - DECISÃO:
8. - Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao
recurso e, em consequência, determina-se a reformulação da decisão recorrida de
acordo com o antecedente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 1995.05.30
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
José Manuel Cardoso da Costa