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Procº nº 268/94 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucionais:
I.-Relatório.
1. A. foi julgada à revelia e condenada, por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Sintra de 25 de Março de 1992, além do mais, na pena de dois anos e seis meses de prisão, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança, previsto e punido pelos artigos 30º, nº 2, e 300º, nºs.1 e 2, alíneas a) e b), do Código Penal, tendo-lhe sido perdoado um ano de prisão, por força do disposto no artigo 14º, nºs. 1, alínea b), e 4, da Lei nº 23/91, de 4 de Julho.
2. Emitidos os correspondentes mandatos de captura para cumprimento da pena, veio a arguida a ser detida em 11 de Abril de 1992, tendo a mesma, ainda antes de ser notificada da sentença condenatória, em 28 de Abril de 1992, requerido que se procedesse a novo julgamento, preenchidos que estavam todos os requisitos previstos no artigo 571º, §§ 3º e 4º, do Código de Processo Penal de
1929, apresentando logo a sua defesa e indicando as provas.
Por despacho de 30 de Abril de 1992, foi deferida aquela pretensão e determinada a soltura da arguida, a fim de esta aguardar os ulteriores termos do processo em liberdade provisória, mediante caução carcerária de 50 000$00.
3. Designado dia para o julgamento, a arguida não compareceu, apesar de devidamente notificada, tendo, por esse motivo, o julgamento sido adiado e sido designada nova data para a sua realização. Para justificação da falta, apresentou posteriormente a arguida um atestado médico.
Notificada da segunda data do julgamento, mais uma vez a arguida não compareceu, pelo que o juiz presidente ordenou que se procedesse ao julgamento à revelia, como se a arguida estivesse presente, nos termos dos artigos 571º, § 5º, e 576º do Código de Processo Penal 1929.
Por Acórdão do Tribunal Colectivo da Comarca de Sintra de 25 de Janeiro de 1993, foi a arguida a condenada na pena de dois anos de prisão, tendo-lhe sido perdoado um ano.
4. Deste acórdão interpôs a arguida recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, alegando, além do mais, a sua nulidade 'por violação da lei que exige a presença do arguido na audiência de julgamento, sem que lhe haja sido marcado novo julgamento (artigos 562º do Código de Processo Penal de 1929 e 332º do Código de 1987) e por não ter sido determinada qualquer diligência para obter a sua comparência (artigo 333º do Código de 1987, aplicável por se tratar de um direito fundamental de defesa previsto na Constituição da República Portuguesa, seu artigo 32º)...'.
No Tribunal da Relação de Lisboa, o Ministério Público, no seu parecer, suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma do § 5º do artigo
571º do Código de Processo Penal de 1929, tendo a Relação, por Acórdão de 2 de Março de 1994, julgado inconstitucional aquela norma, enquanto determina o julgamento do arguido ausente como se estivesse presente, por violação do princípio das garantia de defesa (artigo 32º, nº 1, da Constituição), do contraditório (artigo 32º, nº 5, da Constituição), da verdade material e da imediação da prova e, consequentemente, declarado nulo o acórdão recorrido, ordenando a repetição do julgamento com a comparência da arguida.
5. É deste aresto que vem interposto obrigatoriamente pelo Ministério Público o presente recurso, cujo objecto consiste, assim, na questão da inconstitucionalidade da norma do § 5º do artigo 571º do Código de Processo Penal de 1929, enquanto estabelece que, se o réu por qualquer motivo não comparecer no dia novamente designado para julgamento, se procederá ao julgamento à sua revelia, como se estivesse presente.
Nas alegações produzidas neste Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto conclui do seguinte modo:
1º - A norma do § 5º do artigo 571º do Código de Processo Penal de 1929, na parte em que dispõe que se o réu não comparecer ao julgamento, proceder-se-á ao julgamento à sua revelia como se estivesse presente, é inconstitucional por violação do princípio das garantias de defesa (artigo 32º, nº 1, da Constituição), do princípio do contraditório (artigo 32º, nº 5) e dos princípios da imediação da prova e da verdade material ínsitos na ideia de Estado de direito democrático (artigo 2º).
2º - Deve, assim, confirmar-se a decisão recorrida.
6. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir.
II - Fundamentos.
7. O artigo 571º do Código de Processo Penal de 1929 - que se segue ao artigo 570º, que dispõe sobre a ausência do arguido em processo correccional ou de querela - tem o seguinte conteúdo:
'Nas hipóteses previstas no artigo anterior, o processo seguirá, conforme os casos, os termos do processo correccional ou de querela previstos neste código, com as modificações constantes do artigo 564º e seus §§ 1º a 4º e mais as seguintes:
§ 1º O processo de querela que por outro motivo não deva ser julgado pelo tribunal colectivo será julgado pelo juiz da comarca e a produção da prova na audiência de julgamento será sempre reduzida a escrito no que se refere ao ausente.
§ 2º A sentença será notificada ao réu, quando for preso ou se apresentar em juízo.
§ 3º O réu poderá recorrer no prazo de cinco dias, a contar da data da notificação da sentença, e, no mesmo prazo, poderá requerer que se proceda a novo julgamento, se tiver sido condenado em pena maior, deduzindo logo a sua defesa e indicando as provas que oferece.
§ 4º Se o réu requerer novo julgamento, o juiz, apresentado o requerimento, suspenderá imediatamente a execução da sentença e, ouvido o Ministério Público e o assistente, havendo-o, designará dia para o julgamento, a que se procederá com tribunal colectivo, nos termos estabelecidos para o processo de querela.
§ 5º Se o réu, por qualquer motivo, não comparecer no dia novamente designado, proceder-se-á ao julgamento à sua revelia, como se estivesse presente, e o prazo para o trânsito em julgado da sentença contar-se-á desde a data da publicação, não podendo, em caso algum, requerer-se novo julgamento'.
O acórdão recorrido desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma constante do § 5º do artigo acabado de transcrever, enquanto estabelece que, se o réu por qualquer motivo não comparecer no dia novamente designado para julgamento, se procederá ao julgamento à sua revelia, como se estivesse presente. No caso dos autos, não se está perante uma revelia própria, em que o paradeiro do arguido é desconhecido e este não é notificado para julgamento, mas em face de uma revelia imprópria, em que a arguida foi notificada para o julgamento e faltou, tendo sido julgada como se estivesse presente.
Será aquela norma compatível com a Lei Fundamental?
A resposta a este quesito é negativa, pelas razões que a seguir sucintamente se indicam.
8. O Tribunal Constitucional nos seus Acórdãos nºs.
394/89 e 212/93, publicados no Diário da República, II Série, de 14 de Setembro de 1989 e de 1 de Junho de 1993, respectivamente, teve ocasião de analisar a questão da constitucionalidade de duas normas que permitiam a realização de julgamento sem a presença do arguido, tendo, em ambas as vezes, concluído no sentido da sua inconstitucionalidade. No primeiro dos arestos, foi julgada inconstitucional a norma do nº 3 do artigo 394º do Código de Justiça Militar, na parte em que permite que se proceda ao julgamento sem a presença do arguido, enquanto no segundo foi formulado idêntico juízo quanto à norma do corpo do artigo 566º do Código de Processo Penal de 1929, na parte em que permite que o arguido seja dispensado de comparecer em audiência de discussão e julgamento e que esta se realize como se ele estivesse presente, apesar de haver justificação para não comparecer e de ele não ter manifestado conveniência pessoal na sua não comparência, por violação das garantias de defesa, do contraditório e da imediação da prova - esta ínsita no princípio do Estado de direito democrático
-,condensadas nos artigos 32º, nºs. 1 e 5, e 2º da Lei Fundamental.
A doutrina que emana daqueles dois arestos - baseada, essencialmente, nos ensinamentos de Eduardo Correia (cfr. Breves reflexões sobre a necessidade de reforma do Código de Processo Penal, relativamente aos réus presentes, ausentes e contumazes, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano
110º, p. 99-101, 131,132,162,163,178,179,195,210 e 211, Ano 114º, p. 104, 105 e
364-367, e Ano 115º, p. 293-295) e de J. Figueiredo Dias (cfr. Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 149-163), 1974, p. 142) - pode epitomar-se, como bem salienta o Exmº Procurador-Geral Adjunto, nas seguintes proposições:
a) O processo penal de um Estado de direito há-de cumprir dois objectivos fundamentais: assegurar ao Estado a possibilidade de realizar o seu ius puniendi e oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra os abusos que possam cometer-se no exercício do poder punitivo, designadamente contra a possibilidade de uma sentença injusta.
b) Preocupação desse processo há-de ser também tornar possível ao juiz um conhecimento da personalidade do arguido tão completo quanto possível, já que só assim ele poderá escolher a pena a aplicar e graduá-la em termos de promover a recuperação social do delinquente e satisfazer as exigências de reprovação e de prevenção do crime.
c) Ora - salvo excepções sempre possíveis em casos a que correspondam sanções leves ou tenham fraca ressonância ética -, tudo isto exige que o julgamento se não faça sem que o arguido esteja presente. A menos, naturalmente, que ele tenha conveniência em não comparecer ou a sua presença se torne impossível ou seja factor de perturbação.
d) Na verdade, só a presença do arguido na audiência de discussão e julgamento lhe permite organizar a sua defesa com eficácia, exercendo o seu direito a ser ouvido, além de que tal presença é também essencial para a averiguação da verdade material e para que o juiz possa conhecer o arguido.
e) A realização da audiência de julgamento sem a presença do arguido viola, pois, o princípio das garantias de defesa, a que o processo criminal deve obedecer, e bem assim o princípio do contraditório, a que a audiência há-de subordinar-se (artigo 32º, nºs 1 e 5, da Constituição), princípio do contraditório que se traduz, ao menos, num direito à defesa, num direito a ser ouvido.
f) E viola também o princípio da verdade material e, consequentemente, o princípio da imediação, que são ínsitos na própria ideia de processo criminal de um Estado de Direito como exigências fundamentais que são do princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana.
g) Mesmo nos casos em que o arguido é notificado para comparecer e falta sem justificação (em que se pode dizer que o direito de defesa e o princípio do contraditório são respeitados no seu conteúdo essencial), o apuramento da verdade material (que ao processo penal também cumpre garantir) só se consegue verdadeiramente com a presença do arguido, porque só esta garante uma relação de imediação com o juiz e com as provas.
h) Ao abrir excepções à regra da presença do arguido na audiência - nos casos em que nem o direito de defesa, nem a verdade material sofrerão dano de maior com a dispensa dessa presença -, há-de o legislador observar sempre um princípio de necessidade, proporcionalidade e adequação, por forma a não limitar, desnecessária ou desproporcionadamente, o direito-dever do arguido a ser ouvido e a assistir ao julgamento.
A conclusão a que chega, hic et nunc, o Tribunal não pode deixar de ser idêntica à alcançada nos dois arestos mencionados, pelo que, nos termos da fundamentação deles constante acabada de sintetizar, julga-se inconstitucional a norma do § 5º do artigo 571º do Código de Processo Penal de
1929, na parte em que estabelece que, se o réu por qualquer motivo não comparecer no dia novamente designado para julgamento, se procederá ao julgamento à sua revelia, como se estivesse presente, por violação do princípio das garantias de defesa (artigo 32º, nº 1, da Constituição), do princípio do contraditório (artigo 32º, nº 5) e dos princípios da imediação da prova e da verdade material, estes ínsitos no princípio do Estado de direito democrático
(artigo 2º).
9. A solução que vem de ser referida não é posta em causa pela circunstância de a arguida, in casu, ter sido notificada para comparecer no julgamento e ter faltado sem justificação. Numa situação destas, poderá dizer-se, como se salienta no mencionado Acórdão nº 394/89, que tanto o direito de defesa, como o princípio do contraditório são respeitados no seu conteúdo essencial, já que, se o arguido não é ouvido, nem intervém para contraditar as imputações que lhe são feitas, é porque não o quer fazer.
Simplesmente, como sublinha aquele aresto, 'ao processo penal não cumpre apenas garantir o direito de defesa. Ele tem também que assegurar o apuramento da verdade material. Ora, esta - já se disse - só se consegue verdadeiramente com a presença do arguido, desde logo, porque só esta garante «uma relação de imediação com o juiz e com as provas».
Nestas hipóteses em que, pela notificação, é respeitada
«a possibilidade hipotética da integração do contraditório», o que, porém, fica prejudicado é o princípio da imediação da prova, que é pressuposto da obtenção da verdade material. E, daí a possibilidade de se cometerem erros judiciários e, assim, de se ditarem sentenças injustas. Dizendo de outro modo: daí o perigo de se violar a própria dignidade humana, que «há-de considerar-se como limite de toda a apreciação de coisas criminais» (cfr. Eduardo Correia, Revista, cit., ano
114º, p. 366)'.
Poderá argumentar-se também que exigir a presença do arguido para proceder ao julgamento pode, em muitos casos, vir a traduzir-se em abrir a porta a dilações, com evidente prejuízo para a eficácia da justiça penal e, desse modo, para o prestígio da própria justiça.
Só que, como se acentuou no citado Acórdão nº 349/89,
'desde logo, há meios de lutar com alguma eficiência contra esses resultados nefastos [cfr. artigos 335º,336º e 337º do Código de Processo Penal (situação de contumácia e respectivos efeitos) e artigos 33º, nºs. 1 e 2, e 116º, nºs. 1 e 2, do mesmo Código (o arguido que falta injustificadamente à audiência, além de ser condenado numa soma pecuniária, é detido para comparecer sob custódia, mantendo-se a detenção pelo tempo indispensável; e, se a lei permitir a prisão preventiva, pode esta ser ordenada)]. Para além disso, em nome da eficácia ou do prestígio da justiça penal, não pode pôr-se entre parêntesis uma exigência principalíssima do processo penal como é a presença do arguido na audiência de julgamento. E, depois, à eficácia e ao prestígio da justiça penal, decerto também nada adiantará ir proferir uma condenação que, de antemão, se sabe que, na sua parte mais essencial (a prisão do arguido), não virá a ser cumprida'.
10. No caso dos autos, verifica-se uma especificidade, que reside na circunstância de o julgamento que foi realizado sem a presença da arguida ser um segundo julgamento, requerido por ela própria, quando foi presa e notificada da sentença que, em julgamento à revelia, a havia condenado.
Esta particularidade não assume, porém, relevância suficiente para alterar o sentido da decisão acima anunciada. Na verdade, em primeiro lugar, tal como resulta do que foi atrás referido, face à nossa Constituição, salvo casos excepcionais - o que não sucede, de modo algum, no caso dos autos -, ninguém pode ser julgado sem estar presente no julgamento, quer se trate do primeiro, quer do se trate do segundo julgamento, sendo certo que só pode ter lugar um segundo julgamento quando o arguido foi julgado à revelia no primeiro. Nestes termos, não estar presente no segundo julgamento significa, necessariamente, ser julgado sem nunca ter estado presente. Em segundo lugar, não se pode deixar de tomar em consideração, como lembra o Exmº Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, o disposto no artigo 576º do Código de Processo Penal de 1929, o qual estabelece que no segundo julgamento do réu que tenha sido julgado à revelia valerão, para todos os efeitos, as provas produzidas no primeiro julgamento - norma essa que o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional, quando interpretada como valendo no segundo julgamento
'em princípio' a prova produzida no primeiro, com o fundamento de que não era violado o princípio do contraditório e, em geral, o princípio da defesa, porque o arguido podia, no segundo julgamento, questionar e pôr em crise toda a prova produzida no primeiro julgamento e fazer a análise e a valoração crítica da prova produzida no conjunto das duas audiências (cfr. o Acórdão nº 259/90, publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Janeiro de 1991). Ora, o Tribunal só assim decidiu no aresto nº 259/90, porque partiu do pressuposto de que o arguido está presente no segundo julgamento, pois, se tal não se verificasse, outro teria sido, certamente, o sentido da decisão quanto àquela questão de constitucionalidade.
III - Decisão.
11. Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional a norma constante do § 5º do artigo 571º do Código de Processo Penal de 1929, na parte em que estabelece que, se o réu por qualquer motivo não comparecer no dia novamente designado para julgamento, proceder-se-á ao julgamento à sua revelia, como se estivesse presente, por violação do princípio das garantias de defesa (artigo 32º, nº 1, da Constituição), do princípio do contraditório (artigo 32º, nº 5) e dos princípios da imediação da prova e da verdade material, estes ínsitos no princípio do Estado de direito democrático previsto no artigo 2º da Constituição;
b) Em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de inconstitucionalidade.
Lisboa, 20 de Novembro de 1996 Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida