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Procº nº 122/93 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. A Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência intentou, em 24 de Março de 1988, no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, uma acção executiva contra A, com vista à cobrança coerciva de créditos emergentes de um contrato de mútuo.
Por despacho de 28 de Novembro de 1989, o Mmº Juiz do 8º Juízo daquele Tribunal julgou o tribunal incompetente, em razão da matéria, em virtude de considerar revogada a norma legal que conferia competência aos tribunais tributários para conhecer da referida acção executiva.
Na óptica daquele magistrado judicial, tratando-se de uma execução sobre um débito de direito privado, competentes para a sua cobrança seriam os tribunais judiciais, uma vez que os tribunais administrativos e fiscais só são competentes para conhecer questões emergentes de relações jurídico-administrativas e não questões de direito privado, nos termos do disposto nos artigos 213º e 214º da Constituição e do artigo 4º, nº 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril.
2. Inconformada com tal decisão, da mesma recorreu a exequente para o Supremo Tribunal Administrativo, invocando nas suas alegações, inter alia, que, mesmo depois da publicação do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, os tribunais tributários continuam a ser competentes para conhecer da cobrança coerciva de dívidas a pessoas colectivas de direito público (como sucede com a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência), nos casos previstos na lei, de harmonia com o disposto nos artigos 62º, nº 1, alínea c), do ETAF e 61º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 48.953, de 5 de Abril de
1969 (na redacção do Decreto-Lei nº 693/70, de 31 de Dezembro).
Segundo a exequente, uma tal conclusão não seria prejudicada pelo disposto no artigo 4º, nº 1, alínea f), do ETAF, já que este preceito, no que diz respeito aos limites da jurisdição dos tribunais fiscais, não introduziu na ordem jurídica disciplina inovatória, limitando-se a reafirmar a orientação já antes estabelecida na lei.
Por Acórdão de 25 de Novembro de 1992, o Supremo Tribunal Administrativo concedeu provimento ao recurso, determinando a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que entendesse serem competentes os tribunais fiscais para o conhecimento da execução fiscal requerida pela Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência.
3. Notificado deste aresto, o magistrado do Ministério Público junto do Supremo Tribunal Administrativo, entendendo que havia sido recusada, por inconstitucionalidade, a aplicação da norma constante do artigo 233º do Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº
154/91, de 23 de Abril, interpôs o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo das disposições constantes dos artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional concluiu as suas alegações da seguinte forma:
1º O artigo 233º do Código de Processo Tributário não se configura como norma inovadora em sede de delimitação do âmbito da execução fiscal e da competência executiva dos tribunais tributários.
2º O acórdão recorrido, ao interpretar o estatuído no artigo 233º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Tributário no sentido de que tal preceito não derroga a possibilidade - emergente do artigo 62º, nº 1, alínea c), do ETAF - de serem cobrados através dos tribunais tributários débitos de natureza privada de que sejam credores pessoas colectivas públicas, quando a lei especialmente o preveja, não recusou a aplicação do preceito.
3º Não deverá, deste modo, conhecer-se do objecto do presente recurso, por não se verificarem os pressupostos estabelecidos na alínea a) do nº 1 do artigo 70º e no artigo 72º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional.
Por sua vez, nas alegações produzidas neste Tribunal, a Caixa Geral de Depósitos Crédito e Previdência apresenta o seguinte quadro conclusivo:
a) O acórdão recorrido não se pronunciou inequívoca e expressamente pela inconstitucionalidade da norma constante da al.b) do nº 2 do art. 233º do Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº
154/91, de 23 de Abril;
b) razão porque não pode conhecer-se do recurso interposto;
c) como quer que seja, a al. b) do nº 2 do art.
233º do Código de Processo Tributário não veio retirar competência aos tribunais tributários e agora às Repartições de Finanças para a cobrança coerciva dos créditos da Caixa Geral de Depósitos;
d) efectivamente tal competência já decorria do disposto no art. 61º, nº 1, do Decreto-Lei nº 48.953, de 5/4/69, que aprovou a Lei Orgânica da Caixa Geral de Depósitos, na redacção dada pelo art.17º do Decreto-Lei nº 693/70, de 31/12, bem como do art. 62º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 129/84, de 27/4 (E.T.A.F) e ainda do art. 37º, al. c), do Código de Processo das Contribuições e Impostos;
e) a qual decorre do facto da Caixa Geral de Depósitos ser uma pessoa colectiva de direito público, competindo-lhe as funções de Instituto de Crédito do Estado e ainda a de administração da Caixa Geral de Aposentações e do Montepio dos Servidores do Estado;
f) e deve considerar-se tal competência abrangida pelo disposto na al. b) do nº 2 do art. 233º do Código de Processo Tributário;
g) ou, pelo menos, que tal competência não foi retirada pela referida norma legal;
h) caso contrário, a entender-se que a interpretação de tal norma levaria a retirar competência aos tribunais tributários e agora às Repartições de Finanças para a cobrança dos créditos da Caixa Geral de Depósitos, então, só nessa hipótese, tal norma estaria ferida de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto no art. 168º, nº 1, al. q), da Constituição da República.
4. Corridos os vistos legais, cumpre decidir, começando por analisar a questão prévia conducente ao não conhecimento do presente recurso suscitada pelo Exmº. Procurador-Geral Adjunto - a qual coincide, em termos substanciais, com a suscitada pela entidade recorrida.
II - Fundamentos
5. Como foi referido, vem o presente recurso interposto pelo magistrado do Ministério Público junto do Supremo Tribunal Administrativo com fundamento na desaplicação por inconstitucionalidade por aquela instância da norma constante do artigo 233º do Código de Processo tributário. Entende, porém, o Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional que o acórdão recorrido não recusou efectivamente a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, daquele preceito do Código de Processo Tributário, pelo que não deve tomar-se conhecimento do recurso.
Vejamos então.
5.1. A questão de fundo subjacente ao presente recurso prende-se com a competência dos tribunais tributários para o conhecimento das execuções fiscais instauradas pela Caixa Geral de Depósitos para a cobrança coerciva de dívidas resultantes do incumprimento de contratos de mútuo, competência essa que tem o seu fundamento, desde logo, no disposto no artigo 61º, nº 1, do Decreto-Lei nº 48.953, de 5 de Abril de 1969 (a então vigente Lei Orgânica da Caixa Geral de Depósitos Crédito e Previdência), e cujo conteúdo é o seguinte:
'A cobrança coerciva de todas as dívidas de que seja credora a Caixa e suas instituições anexas é da competência dos tribunais de 1ª instância das contribuições e impostos, servindo de títulos executivos as escrituras, títulos particulares, letras, livranças ou qualquer outro documento apresentado pela instituição exequente, incluindo as certidões extraídas dos livros da sua escrita'.
Para resolver o mencionado problema, o Supremo Tribunal Administrativo teve de averiguar se a disposição normativa transcrita continua em vigor ou se a sua vigência se deve considerar prejudicada com a entrada em vigor do ETAF e, mais recentemente, do Código de Processo Tributário. A conclusão a que chegou aquele tribunal foi a de que a norma do artigo 61º, nº
1, do Decreto-Lei nº 48.953, de 5 de Abril de 1969, e, bem assim, a do artigo
62º, nº 1, alínea c), do ETAF estão em vigor e não violam qualquer preceito constitucional.
5.2. O acórdão recorrido começou por operar a conciliação entre dois preceitos, aparentemente antagónicos, do ETAF - os artigos 4º, nº 1, alínea f), e 62º, nº 1, alínea c) -, sustentando que a doutrina do primeiro daqueles preceitos não impede que sejam cobrados em acção executiva a correr termos mediante acção executiva tramitada nos tribunais fiscais débitos que não revistam natureza administrativa ou fiscal. Refere, a este propósito, a dado passo, o citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo:
'Dispõe o artigo 4º, nº 1, alínea f) do ETAF que estão excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público. E seria esta precisamente a hipótese do caso sub judice, uma vez que a execução fiscal requerida tem por objectivo a cobrança coerciva de uma dívida resultante do incumprimento de um contrato de mútuo.
Não se pode esquecer, contudo, que o mesmo ETAF prevê, no artigo
62º, nº 1, alínea c), que aos tribunais fiscais de 1ª Instância possa ser atribuída competência para a cobrança coerciva de dívidas a pessoas de direito público, nos casos previstos na lei. Entre esses casos situa-se precisamente o da Caixa Geral de Depósitos, por força do artigo 61º do Decreto-Lei 48 953.
Ora, como conciliar estes dois preceitos? De um lado, um preceito a excluir da jurisdição fiscal o conhecimento de questões de direito privado; do outro, uma norma a permitir que a lei possa atribuir competência aos tribunais fiscais de 1ª Instância para conhecer de execuções por dívidas a pessoas colectivas de direito público.
A conciliação mais natural entre os dois preceitos é considerar que a alínea f) do nº 1 do artigo 4º do ETAF - norma que estabelece limites à função jurisdicional dos tribunais administrativos e fiscais definida no artigo
3º do mesmo diploma -, ao dispor que estão excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado, não visa excluir a possibilidade de a lei atribuir competência aos tribunais fiscais para a cobrança coerciva de dívidas de pessoas colectivas de direito público. Na ideia do legislador, a competência para o conhecimento das execuções não se encontra abrangida pela proibição do conhecimento de questões de direito privado estabelecida na norma genérica do artigo 4º, a qual visa apenas retirar dos tribunais administrativos e fiscais competência para dirimir conflitos de interesses de natureza privada, no plano declaratório, não abrangendo o âmbito das execuções fiscais, tal como se encontrava tradicionalmente consagrado. A matéria das execuções fiscais escapa, pois, à previsão do artigo 4º em análise.
O que bem se compreende, pois seria impensável que o legislador tivesse querido alterar o status quo das execuções fiscais, nomeadamente a doutrina constante do artigo 37º, alínea c), do Código de Processo das Contribuições e Impostos, ao permitir que nas execuções fiscais se proceda à cobrança de créditos do Estado e créditos equiparados aos do Estado. Afigura-se de facto impensável que o legislador do ETAF tenha pretendido negar no artigo 4º a possibilidade de os tribunais fiscais conhecerem de execuções por dívidas a quaisquer pessoas colectivas de direito público para no artigo 62º, nº 1, alínea c), permitir expressamente essa possibilidade.
Sendo assim, não se verifica qualquer incompatibilidade entre o artigo 4º e o artigo 62º, nº 1, alínea c), do ETAF.'
5.3. De seguida, o aresto aqui sob recurso procurou articular o disposto no artigo 233º do actual Código de Processo Tributário com o preceituado no artigo 62º, nº 1, alínea c), do ETAF. Fê-lo, com base na seguinte argumentação:
'Outra questão entretanto surge. É que se torna necessário entrar em linha de conta com o disposto no artigo 233º do Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 154/91, de 23 de Abril, norma que regula o âmbito da execução fiscal e, por implicação, a competência para o seu conhecimento.
Na verdade, este artigo não contém um preceito semelhante à alínea c) do nº 1 do artigo 62º do ETAF, '... da cobrança coerciva de dívidas a pessoas de direito público, nos casos previstos na lei'. O nº 2 do artigo 233º do Código de Processo Tributário dispõe agora que serão igualmente cobra- das mediante processo de execução fiscal, além de outras dívidas ao Estado [alínea a)] e de receitas parafiscais [alínea c)],'outras dívidas equiparadas por lei aos créditos do Estado' [alínea b)].
Ora, não existindo no citado artigo 233º nenhum inciso que permita enquadrar os créditos da Caixa Geral de Depósitos, põe-se o problema de saber se os créditos da Caixa Geral de Depósitos - que a alínea c) do nº 1 do artigo 62º do ETAF impõe que sejam cobrados pelos tribunais tribu- tários - podem ser considerados como equiparados aos créditos do Estado, nos termos e para os efeitos da alínea b) do nº 2 do citado artigo 233º.
E pode, na verdade, entender-se que os créditos da Caixa Geral de Depósitos não cabem na previsão deste preceito.
A ser assim, e visto que tal norma de competência é de aplicação imediata, em face do preceituado no artigo 8º, nº 2, do ETAF - uma vez que no caso se teria verificado uma alteração de competência em razão da matéria -, dir-se-á que a presente execução deixaria de ser da competência do 8º Juízo do Tribunal Tributário de Lisboa para passar a ser da competência dos tribunais judiciais - cfr. artigo 14º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro.
Só que isso implicaria uma alteração da competência dos tribunais tributários.
Ora, a Lei nº 37/90, de 10 de Agosto, ao abrigo da qual foi publicado o Decreto-Lei nº 154/91, que aprovou o Código de Processo Tributário não conferiu autorização ao Governo para legislar sobre a competência dos tribunais, como o exige a alínea q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República.
Deste modo, o artigo 233º do Código de Processo Tributário, na medida em que altere a competência dos tribunais tributários - e, consequentemente, a dos tribunais judiciais; cfr. artigo 14º da Lei nº 38/87, de
23 de Dezembro -, é organicamente inconstitucional e por isso não pode ser aplicada pelos tribunais - cfr. artigo 207º da Constituição da República.
Assim, caso se entenda que a alínea b) do nº 2 do artigo 233º do Código de Processo Tributário não abrange os créditos da Caixa Geral de Depósitos, subsiste a norma de competência do artigo 62º, nº 1, alínea c), do ETAF'.
6. A transcrição de alguns trechos do acórdão recorrido mostra que o Supremo Tribunal Administrativo, ao confrontar a norma do artigo 62º, nº 1, alínea c), do ETAF com a norma do artigo 233º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Tributário, afastou, por inconstitucional, uma interpretação desta norma que conduzisse à alteração da competência dos tribunais tributários, concluindo que a mesma não podia prejudicar a vigência da referida norma do ETAF e dos preceitos pertinentes do Decreto-Lei nº 48.953. Perante dois sentidos possíveis da norma do artigo 233º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Tributário, o acórdão recorrido recusou aquele que conduziria à sua inconstitucionalidade e optou pelo sentido que é compatível com a Constituição. O acórdão aqui sub judicio realizou, assim, a propósito da mencionada norma, uma interpretação conforme a Constituição, isto é, lançou mão da técnica de decisão, segundo a qual 'no caso de normas polissémicas ou plurisignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido de conformidade com a Constituição' (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra, Almedina, 1993, p. 229).
Ora, as decisões dos tribunais que realizem uma interpretação em conformidade com a Constituição de uma norma jurídica, na medida em que contêm implícita uma recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, de uma norma jurídica (num seu certo sentido) estão sujeitos a recurso de constitucionalidade, para efeitos de o Tribunal Constitucional averiguar se a interpretação rejeitada pelo tribunal a quo é ou não incompatível com a Constituição (cfr., neste sentido, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs.
266/92 e 636/94, publicados no Diário da República, II Série, de 23 de Novembro de 1992 e de 31 de Janeiro de 1995, respectivamente). Salientou-se, neste último aresto, que, 'ao aplicar-se a norma com um sentido que se tem por conforme à Constituição, recusando-se uma outra dimensão normativa do preceito que se considera incompatível com ela, faz-se interpretação (restritiva) conforme à Constituição e, com isso, desaplica-se a norma na sua significação inconstitucional, justamente com fundamento nessa inconstitucionalidade', devendo, nesse caso, considerar-se preenchido o pressuposto do recurso para este Tribunal, que se traduz na desaplicação de uma norma legal, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Vai, por isso, o Tribunal Constitucional conhecer do presente recurso, o qual tem por objecto a questão da constitucionalidade da norma da alínea b) do nº 2 do artigo 233º do Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 154/91, de 23 de Abril, na interpretação tida por inconstitucional pelo acórdão recorrido, isto é, com o sentido de aquela norma ter revogado os artigos 61º, nº. 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 48.953 e 62º, nº 1, alínea c), do ETAF, alterando, desse modo, a competência dos tribunais tributários (e, consequentemente, a dos tribunais judiciais).
II - Fundamentos
7. A norma aqui impugnada tem o seguinte conteúdo:
'Artigo 233º
Âmbito da execução fiscal
1- ...
2 - Serão igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal:
a) ...
b) Outras dívidas equiparadas por lei aos créditos do Estado;
c) ...'
Como se viu, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu pela competência dos tribunais tributários para conhecer das execuções por dívidas à Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência, depois de concluir que a norma do artigo 233º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Tributário não prejudicava a vigência dos artigos 61º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº
48.953 e 62º, nº 1, alínea c), do ETAF. Mas para chegar a tal conclusão, sentiu necessidade de afastar, por incons- titucionalidade, um sentido da norma daquele Código que conduzisse à revogação destas últimas normas e à alteração da competência dos tribunais tributários nelas definida. Significa isto que a interpretação conforme à Constituição da norma do artigo 233º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Tributário constituiu um fundamento ou uma ratio da decisão adoptada pelo acórdão recorrido.
Chegados a este ponto, pode o Tribunal Constitucional adiantar que a norma do artigo 233º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Tributário, com o sentido acima referido, é organicamente inconstitucional. Vejamos porquê.
8. Nos termos do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre a organização e competência dos tribunais, salvo autorização ao Governo.
Importa, por isso, ver qual o âmbito coberto pela reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, em matéria de competência dos tribunais [alínea q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição].
Decorre da formulação utilizada por esta alínea do nº 1 do artigo
168º da Constituição - quando confrontada com outras alíneas do mesmo número e artigo, nomeadamente com as alíneas d), e), f) ou g) - que cabe na competência reservada da Assembleia toda a matéria de organização e competência dos tribunais. Nesse sentido se tem pronunciado sempre a jurisprudência do Tribunal Constitucional, embora não de forma unânime, a qual não tem aceite a formulação mais restritiva sugerida no Parecer nº 4/81 da Comissão Constitucional, segundo a qual poderia estar 'reservada à Assembleia da República apenas a fixação dos princípios básicos de competência, os grandes quadros de competência que integram a organização judiciária (in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 14º, pág. 259). Em numerosos acórdãos do Tribunal Constitucional tem sido acolhida a interpretação dos comentadores Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, 2º volume, Coimbra,
1985, pp. 197 a 199 e 202), de que na reserva relativa cabe toda a matéria de organização e competência dos tribunais (cfr. Acórdãos nºs 25/88, 3/89 e
356/89, publicados no Diário da República, II Série, nº 106,de 7 de Maio de
1988, nº 85, de 12 de Abril de 1989, e I Série, nº 118, de 23 de Maio do mesmo ano, respectivamente), só não cabendo na reserva as modificações de competência judiciária que decorrem da adopção de uma certa forma processual (Acórdão nº
404/87, in Diário da República, II Série, nº 202, de 21 de Dezembro de 1987, solução adoptada subsequentemente em múltiplos arestos tirados em matéria de colonia).
Seja como for, a norma da alínea b) do nº 2 do artigo 233º do Código de Processo Tributário, na interpretação afastada pelo tribunal a quo, com fundamento em inconstitucionalidade, modificou regras de competência dos tribunais em razão da matéria, afectando os tribunais tributários e os tribunais comuns, pelo que só poderia constar de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei alicerçado em autorização legislativa.
Ora, não tendo a Lei nº 37/90, de 10 de Agosto, que conferiu autorização legislativa ao Governo para aprovar o Código de Processo Tributário, habilitado este órgão de soberania a legislar sobre a competência dos tribunais, tem de concluir-se que a norma aqui impugnada, com o sentido que se deixou assinalado, é organicamente inconstitucional.
III- Decisão
9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma constante da alínea b) do nº 2 do artigo 233º Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 154/91, de 23 de Abril, na interpretação rejeitada pela decisão recorrida, isto é, com o sentido de que ela alterou a competência dos tribunais tributários definida no artigo 61º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 48.953, de 5 de Abril de 1969, na redacção do Decreto-Lei nº 693/70, de 31 de Dezembro, e no artigo 62º, nº 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição.
b) Em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido, na parte impugnada.
Lisboa,7 de Fevereiro de 1996 Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Messias Bento Bravo Serra Guilherme da Fonseca Luis Nunes de Almeida