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Proc. nº 163/90
1ª Secção
Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. O recorrente A., que foi pronunciado nos autos (em 26
de Maio de 1988) como autor de um crime de associação de delinquentes, previsto
e punível pelo artigo 28º, nº 1, com referência ao artigo 23º, nº 1, do
Decreto-Lei nº 430/83, de 13 de Dezembro, interpôs recurso desse despacho de
pronúncia para o Tribunal da Relação de Lisboa, com o qual subiram três outros
recursos de decisões anteriores por ele interpostos.
Tendo sido negado provimento a todos esses recursos,
interpôs então A. recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Após várias
vicissitudes, veio esse recurso a ser admitido para subir àquele Tribunal.
Ainda no Tribunal da Relação, suscitou o Ministério
Público a questão prévia do não conhecimento do recurso, sustentando a
inadmissibilidade de recurso do despacho de pronúncia, em face do disposto no
artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro, e de acordo com o Assento
do Supremo Tribunal de Justiça (entretanto publicado no Diário da República, I,
de 12 de Abril de 1990), que interpretou aquele preceito legal no sentido de que
proíbe tais recursos para esse Tribunal, quer versem sobre matéria de facto,
quer sobre matéria de direito.
Sendo ouvido sobre essa questão prévia, o arguido
pronunciou-se no sentido da admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal
de Justiça, embora restrito à matéria de direito, e suscitou logo a questão da
inconstitucionalidade do assento invocado, por violação do artigo 115º da
Constituição.
Por acórdão de 26 de Abril de 1990, o Supremo Tribunal
de Justiça decidiu atender aquela questão prévia e não conhecer o recurso. Aí se
considerou que estava em causa recurso de despacho de pronúncia (e recursos que
com ele subiram) e que esse recurso era inadmissível para o Supremo, em
conformidade com o Assento de 24 de Janeiro de 1990, pelo que se concluiu no
sentido de 'aplicar ao caso a doutrina firmada através do assento'.
2. O ora recorrente interpôs então recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, para apreciação da questão da constitucionalidade do
artigo 2º do Código Civil, por violação do disposto no artigo 115º, nº 5, da
Constituição.
Neste Tribunal, o Magistrado do Ministério Público
começou por suscitar a questão prévia do não conhecimento do recurso, por
alegadamente a decisão recorrida não ter aplicado a norma arguida de
inconstitucional. Essa questão foi já decidida nos autos (a fls. 2175 a 2188),
através do Acórdão nº 406/91, no qual se entendeu que o Assento do Supremo
Tribunal de Justiça de 24 de Janeiro de 1990 constituiu ratio decidendi do
acórdão recorrido e que a questão de constitucionalidade foi suscitada
atempadamente no decurso do processo. Concluiu-se, pois, no sentido de
desatender a questão prévia e determinar o normal prosseguimento do processo.
3. Corridos os vistos legais, cumpre agora apreciar
tão-só a questão de mérito, ou seja, a questão de constitucionalidade suscitada.
II
Fundamentação
4. O presente recurso tem por objecto a questão da
compatibilidade da norma do artigo 2º do Código Civil com o artigo 115º, nº 5,
da Constituição, enquanto atribui aos tribunais competência para, através de
assentos, fixar doutrina com força obrigatória geral.
5. A propósito desta questão, o Acórdão nº 810/93
(Diário da República, II, de 2 de Março de 1984), tirado em Plenário nos termos
do artigo 79º-A da Lei do Tribunal Constitucional, e anterior ao início de
funções da ora relatora, estabeleceu doutrina orientadora para a jurisprudência
do Tribunal, ainda que sem força obrigatória geral.
Nesse acórdão julgou-se inconstitucional a norma do
artigo 2º do Código Civil na parte em que atribui aos tribunais competência
para, através de assentos, fixar doutrina com força obrigatória geral, por
violação do artigo 115º, nº 5, da Constituição, mas sem prejuízo da sua força
vinculativa para os tribunais integrados na ordem dos tribunais judiciais de
cuja hierarquia o Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior.
6. No caso dos autos, a doutrina do Assento de 24 de
Janeiro de 1990 (Diário da República, I, de 12 de Abril de 1990) foi aplicada
pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça. Neste contexto, vale seguramente o
juízo de inconstitucionalidade da norma do artigo 2º do Código Civil formulado
no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 810/93, enquanto apoiado nos
fundamentos (para que ora se remete) que permitiram concluir que a norma
atributiva de força obrigatória geral aos assentos conflitua com o princípio da
tipicidade dos actos legislativos estabelecido no artigo 115º da Constituição.
7. Nessa medida, cabe reiterar tal juízo de
inconstitucionalidade e determinar a revogação da decisão recorrida, a fim de
ser reformulada em função desse juízo.
III
Decisão
8. Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 2º do
Código Civil na parte em que atribui aos tribunais competência para, através de
assentos, fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do artigo
115º, nº 5, da Constituição;
b) Conceder provimento ao recurso e, em consequência,
revogar a decisão recorrida, determinando a sua reformulação em conformidade com
o ora decidido sobre a questão de inconstitucionalidade.
Lisboa, 22 de Junho de 1995
Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Luís Nunes de Almeida
Proc. nº 163/90
Declaração de voto
Tendo relatado e votado o presente acórdão, devo,
contudo, assinalar que, contrariamente à tese vencedora do Acórdão nº 810/93,
para que se remeteu, defendo a total inconstitucionalidade da norma do artigo 2º
do Código Civil. Discordo, pois, de parte dos seus fundamentos e da solução que,
nesse caso concreto, se adoptou.
Adiro, assim, aos fundamentos desse acórdão enquanto
sustenta que a norma que confere força obrigatória geral aos assentos conflitua
com o princípio da tipicidade dos actos legislativos estabelecido no artigo 115º
da Constituição. Mas já não aceito que os assentos possam continuar a obrigar os
tribunais hierarquicamente subordinados àquele que os tenha emitido, como
decorrência duma suposta 'eficácia interna', que já não contenderia com a
proibição constitucional de a lei conferir a actos de outra natureza o poder de,
com eficácia externa, interpretar ou integrar preceitos legais (artigo 115º, nº
5, da Constituição).
Na verdade, procedendo, por razões de
constitucionalidade, à redução teleológica da norma do artigo 2º do Código
Civil, amputando-a da expressão 'doutrina com força obrigatória geral', torna-se
ilegítimo conceber, em alternativa, uma eficácia interna dos assentos.
As razões constitucionais que não permitem que os
assentos fixem doutrina com força obrigatória geral não deixam subsistir,
igualmente, uma força obrigatória interna, apenas aplicável aos tribunais
inferiores. Nem a restrição da força vinculativa dos assentos aos tribunais
integrados na ordem do tribunal emitente gera uma mera eficácia interna
desligável de uma força obrigatória geral - para os destinatários das decisões
judiciais proferidas ao abrigo da força vinculativa dos assentos, a doutrina
destes é tão obrigatória como para os juízes que proferiram tais decisões -, nem
os tribunais inferiores se relacionam com os superiores, na nossa ordem
judiciária, através de relações hierárquicas funcionais. Assim, a criação, sem
base legal, de injunções para os juízes dos tribunais de 1ª e 2ª instâncias
determinadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, fora do quadro da vinculação dos
tribunais inferiores às decisões proferidas em via de recurso pelos tribunais
superiores, viola o princípio da independência decisória dos juízes consagrado
no artigo 206º da Constituição.
E, decisivamente, no plano dos valores do Estado de
direito em sentido material, essa eficácia interna contenderia com o princípio
democrático (artigo 2º da Constituição), tornando os assentos fontes de direito
não derivadas da auto‑vinculação subjacente ao cometimento de função legislativa
a órgãos representativos dos cidadãos.
Maria Fernanda Palma