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Proc. nº 77/95
1ª Secção Rel.: Consª. Maria Fernanda Palma
(Cons. Monteiro Dinis)
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. O ora recorrente, A, foi condenado no Tribunal Judicial da Comarca de Loures, pela prática de um crime doloso de homicídio, na pena de 17 anos de prisão.
Já depois do trânsito em julgado da decisão condenatória e quando o arguido se encontrava a cumprir tal pena o seu mandatário requereu ao tribunal a confiança do processo, por vinte e quatro horas, para consulta no seu escritório.
Tendo este requerimento sido indeferido, o arguido interpôs recurso do despacho de indeferimento para o Tribunal da Relação. Todavia, o recurso não foi admitido, por se ter entendido que a decisão que se pretendia impugnar dependia da livre resolução do tribunal e era, como tal, irrecorrível.
Em face da não admissão do recurso, o arguido reclamou para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, dizendo que:
'a) A decisão do juiz, no âmbito do disposto no artº 89º, 3 do C.P.P., é funcionalmente dirigida à garantia duma faculdade do direito de defesa;
b) A defesa em processo penal é de interesse e ordem constitucional, visto o disposto nos artºs 27º e 32º da C.R.P.;
c) Logo, só pode ser limitada nos termos do disposto no artº 18º da C.R.P.;
d) A dita decisão do Juiz não pode ser dependente da livre resolução do Tribunal, por violação dos princípios de adequação e proporcionalidade;
e) Que impõem ainda a emergência do direito fun-damental ao duplo grau de apreciação das decisões dos Tribunais;
f) Assim o despacho reclamado fez errada inter-pretação dos artigos 89º,
3, 400º, nº 1, al. b) do C.P.Penal.
g) Tendo considerado, como considerou, irrecorrí-vel a decisão pela qual foi indeferida a confiança do processo em que o Réu já foi condenado;
h) Tanto mais que, na letra do artº 89º, 3 do C.P.P., autorização do Juiz deve ser entendido simplesmente como precedência de despacho e nada mais;
i) A não ser entendido deste modo, contrariarão as normas do C.P.Penal já citadas, os preceitos constitucionais dos artigos 27º, 1, 32º, nº 1 e 18º, nºs 1 e 2;
j) As quais por serem de aplicação directa exigem também que Vossa Excelência mande receber o recurso.'
2. O Presidente do Tribunal da Relação, por despacho de 22 de Dezembro de 1994, indeferiu a reclamação com base nas seguintes considerações:
'Parece evidente que a disciplina do nº 3 do artº 89º do CPP se dirige, em primeira linha à secretaria do tribunal por onde corre o processo estabelecendo as condições de que os respectivos funcionários podem entregar os processos crime a fim de serem examinados fora da secretaria.
E uma dessa condições é a existência de autorização judicial, confiando o legislador, para o efeito, apenas, no bom critério do Magistrado competente.
De facto, o exercício de tal competência, não está subordinado a quaisquer regras objectivas bastando--se a entidade judicial competente, com a mera conside-ração do circunstancialismo concreto que entenda relevar no caso, para justificar a recusa.
É, assim, nitidamente na acção que depende de livre resolução do tribunal prevista na alínea b) do nº 1 do artº. 400º do CPP compreendida nas decisões que não admitam recurso.
E não se diga que o acto de recusa da confiança do processo colide com os princípios constitucionais da defesa em processo penal já que eles sempre poderão ser assegurados pelas normas que garantem a consulta do processo e a obtenção de certidões estabelecidas no artº 86º e seguintes do C.P.P.
A questão da consulta do processo crime fora da secretaria tem a ver, apenas, com a comodidade dos interessados directos no processo mas já não com o direito fundamental de direito de defesa dos arguidos'.
3. Deste despacho interpôs o arguido o presente recurso de constitucionalidade, expendendo, nas respectivas alegações, a seguinte argumentação:
'a) A decisão do juiz, no âmbito do disposto no artº 89º, 3 do C.P.P., é funcionalmente dirigida à garantia duma faculdade do direito de defesa;
b) A defesa em processo penal é de interesse e ordem constitucional, visto o disposto no artº 32º da C.R.P.;
c) Logo, só pode ser limitada nos termos do disposto no artº 18º da C.R.P.;
d) A dita decisão do Juiz não pode ser dependente de livre resolução, por violação dos princípios de adequação e proporcionalidade;
e) Os quais impõem ainda, no caso sub judice a emergência do direito fundamental ao duplo grau de apreciação das decisões dos Tribunais;
f) Assim, a decisão recorrida fez errada interpretação dos artigos 89º, 3,
400º, nº 1, al. b) do C.P.Penal;
g) Tendo considerado, como considerou, irrecorrível a decisão pela qual foi indeferida a confiança do processo em que o Réu já foi condenado;
h) Tanto mais que, na letra do artº 89º, 3 do C.P.P., autorização do Juiz dever ser entendido simplesmente como precedência de despacho e nada mais;
i) Ao ser entendido diferentemente, foi contrariada uma leitura constitucional das normas do C.P. Penal já citadas, em conjugação com os preceitos dos artigos 32º, nº 1 e 18º, nºs 1 e 2 da C.R.P.;
j) As quais, por serem de aplicação directa, exigem uma plena conformidade da lei reguladora do processo penal quanto ao tema em discussão;
k) Se, no entanto, a letra e intenção do artº 89º/3/C.P.P. deverem ser entendidas como o fez o Excelentíssimo Juiz Desembargador Presidente da Relação de Lisboa, então, é o citado preceito inconstitucional por contrariar as também já referidas normas da Constituição da República'.
O Procurador-Geral Adjunto, nas contra-alegações, formulou as conclusões seguintes:
'1º - Porque interposto sem a indicação de qualquer dos elementos exigidos nos nºs 1 e 2 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, não deve conhecer-se do objecto do recurso.
Se assim se não entender,
2º - A norma resultante da conjugação do nº 3 do artigo 89º com a alínea b) do nº 1 do artigo 400º, ambos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não é admissível recurso do despacho da autoridade judiciária que indefere o pedido do arguido de exame do processo fora da secretaria, não viola o disposto nos artigos 32º, nº 1, e 18º, nºs 1 e 2, da Constituição, nem qualquer outra norma ou princípio constitucional.
3º - Deve, assim, negar-se provimento ao recurso.'
O recorrente, na resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, para além de sustentar o seu indeferimento, veio informar sobre os concretos pressupostos do respectivo recurso.
Corridos os vistos legais, cabe agora apreciar e decidir.
II Fundamentação
A A questão prévia do conhecimento do objecto do recurso
4. Em primeiro lugar, não existe, na situação em apreço, qualquer obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso.
Com efeito, embora não constem do requerimento de interposição todos os elementos exigidos pelo nº 2 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro - a sua completa menção só viria a ser feita na resposta à alegação do Ministério Público -, é certo que decorria já, com alguma segurança, do processo qual a identidade da norma cuja inconstitucionalidade se pretendia ver apreciada e da norma constitucional tida como violada. Assim sendo, a questão de constitucionalidade acabou por ser suscitada pelo recorrente, em termos válidos e operativos, durante o processo, pelo que deve entender-se que no caso estão reunidos, no plano da concreta actividade processual, os pressupostos de admissibilidade do recurso constitucional [artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional].
5. Aliás, o recorrente não foi convidado pelo tribunal a quo
- nem, tão pouco, por este Tribunal - a completar a sua petição de recurso, em conformidade com o disposto no artigo 75º/A da Lei do Tribunal Constitucional. Por conseguinte, não lhe pode agora ser assacado o incumprimento de uma formalidade cuja omissão foi havida por irrelevante e que, como se viu, acabou por ser sanada.
Assim sendo, desatende-se a questão prévia, passando a conhecer-se o mérito do recurso.
B A questão da constitucionalidade da norma resultante da conjugação dos artigos 89º, nº 3, e 400º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal
6. A norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada por este Tribunal resulta da conjugação dos artigos 89º, nº 3, e
400º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso do despacho da autoridade judiciária que indefere o pedido de examinar o processo fora da secretaria apresentado pelo arguido. Com efeito, a decisão recorrida, confirmando anterior despacho judicial, considerou que a autorização dada pela autoridade judiciária para consulta e exame do processo fora da secretaria constitui 'um acto que depende da livre resolução do tribunal', não sendo, como tal, passível de recurso.
Para melhor apreensão do thema decidendi, importa ter presente a formulação das normas em apreço.
Artigo 89º
(Consulta de auto e obtenção de certidão por sujeitos processuais)
1. Para além da entidade que dirigir o processo, do Ministério Público e daqueles que nele intervierem como auxiliares, o arguido, o assistente e as partes civis podem ter acesso a auto, para consulta, na secretaria ou noutro local onde estiver a ser realizada qualquer diligência, bem como obter cópias, extractos e certidões autorizadas por despacho, ou independentemente dele para efeito de prepararem a acusação e a defesa dentro dos prazos para tal estipulados pela lei.
(...)
3. As pessoas mencionadas no nº 1 têm, relati-vamente a processos findos,
àqueles em que não puder ou já não puder ter lugar a instrução e àqueles em que tiver havido já decisão instrutória, direito a examiná--los gratuitamente fora da secretaria, desde que o requeiram à autoridade judiciária competente e esta, fixando prazo para tal, autorize a confiança do processo.
(...)
Artigo 400º
(Decisões que não admitem recurso)
1. Não é admissível recurso:
(...)
b) De decisões que ordenam actos dependentes
da livre resolução do tribunal;
(...)
7. No entendimento do recorrente, estas normas conjugadas, na interpretação que lhes foi dada no despacho impugnado, contrariam o disposto nos artigos 32º, nº 1 e 18º, nºs 1 e 2 da Constituição.
Assim, o recorrente entende que o direito de examinar o processo fora da secretaria (artigo 89º, nº 3, do Código de Processo Penal) constitui expressão das garantias de defesa (artigo 32º, nº 1, da Constituição) e que estas garantias, na qualidade de direito fundamental, beneficiam da tutela reforçada conferida pelo artigo 18º da Constituição: só poderão ser restringidas nos casos expressamente previstos na própria Constituição e as restrições, obrigatoriamente orientadas para a defesa de outros direitos ou interesses, devem obedecer a requisitos de necessidade, adequação e proporcionalidade
(artigo 18º, nº 2).
8. Deve reconhecer-se que a confiança do processo (e a sua consulta fora da secretaria) não constitui conditio sine qua non do exercício das garantias de defesa. Sem embargo, é irrecusável que a consulta do processo pelo defensor no seu escritório - onde tem a possibilidade de proceder a uma análise mais demorada e profunda - assegura, tendencialmente, uma defesa do arguido mais eficaz.
A esta luz se compreende que o nº 3 do artigo 89º do Código de Processo Penal configure, expressamente, como um direito a faculdade de o arguido (para além dos restantes sujeitos processuais e das próprias partes civis) consultar o processo fora da secretaria. No que respeita ao arguido este direito há-de ter-se, necessariamente, como instrumental das garantias de defesa
(nesse mesmo sentido, cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 695/95, de
5/12/95, inédito). No que concerne aos demais sujeitos (ou mesmo intervenientes processuais), pretende assegurar-se a 'igualdade de armas' entre defesa e acusação e, em última instância, o exercício do contraditório.
Deve observar-se, por outro lado, que as garantias de defesa não são temporalmente limitadas pelo trânsito em julgado da sentença. Isso resulta, desde logo, da possibilidade do arguido, ainda que condenado por sentença transitada em julgado, interpor recurso extraordinário de revisão
(artigo 449º do Código de Processo Penal) ou beneficiar da entrada em vigor de uma lei penal mais favorável (artigos 29º, nº 4, da Constituição e 2º, nº 2, parte final, do Código Penal). Por isso, a circunstância de o nº 3 do artigo 89º do Código de Processo Penal se referir a processos findos não afasta o direito do arguido examinar o processo fora da secretaria do âmbito das garantias de defesa.
9. Seria excessivo concluir, todavia, que a autoridade judiciária está obrigada, em todos os casos, a autorizar a confiança do processo. O nº 3 do artigo 89º não contempla, estruturalmente, um direito potestativo, nem a Constituição impõe, no artigo 32º, nº 1, a consagração de um tal direito.
Assim, a autoridade judiciária competente pode recusar a confiança do processo, nos termos do nº 3 do artigo 89º do Código de Processo Penal. A questão que se coloca, no entanto, é a de saber se tal recusa constitui emanação de um poder discricionário, orientado para a boa condução do processo: isto é, decisão que ordena acto dependente da livre resolução do tribunal, nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal.
A identificação de um despacho como dependente da livre resolução do tribunal há-de obedecer a critérios funcionais e teleológicos, que tenham presente o imperativo constitucional de conceder ao arguido as garantias de defesa.
10. Nesta perspectiva, deve ter-se como despacho dependente da livre resolução do tribunal aquele que determina um acto ordenado do processo, insusceptível de afectar o exercício das garantias de defesa. Será o caso, por exemplo, do despacho que designa dia, hora e local para a audiência, desde que se não ultrapasse o limite estabelecido na segunda parte do nº 1 do artigo 312º do Código de Processo Penal.
Porém, no caso sub judice, existe um direito que é instrumental, como se viu, das garantias de defesa. E a decisão judicial que incida sobre o exercício desse direito não se pode considerar, por conseguinte, despacho dependente da livre resolução do tribunal.
Não significa isto, porém, que a autoridade judiciária esteja obrigada a autorizar a confiança do processo. Ela poderá recusá-la, mas deverá fundamentar o seu despacho (artigo 97º, nº 4, do Código de Processo Penal), que será impugnável, nos termos gerais, mediante a interposição de recurso. Deste modo, a restrição da garantia de defesa poderá conter-se nos limites fixados pelo nº 2 do artigo 18º da Constituição.
III Decisão
11. Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 89º, nº 3, e 400º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual está em causa um acto que depende da livre resolução do tribunal;
b) Conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida, no que respeita à questão de consti-tucionalidade
Lisboa, 29 de Fevereiro de 1996 Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz (vencido nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa.(votei o acórdão, pois também entendo que o despacho em causa não deve entender-se como de livre resolução do tribunal, isto
é, deixado ao 'bon vouloir' do juiz e dispenso de fundamentação - como já deixei dito, de passagem, em declaração aposta ao Acórdão nº 695/95. Mas fico com alguma dúvida quanto a extrair daí a obrigatoriedade' constitucional da possibilidade dele recorrer). Declaração de voto
1 - Como primitivo relator do presente processo elaborei um projecto de acórdão no qual se propunha o improvimento do recurso e a consequente confirmação da decisão impugnada.
Continuo a perfilhar semelhante entendimento e daí haver ficado vencido na votação do respectivo acórdão.
Extracta-se, a seguir, o essencial da fundamentação ali expendida em defesa daquela solução.
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2 - Como decorre do artigo 86º do respectivo Código,
o processo penal é, sob pena de nulidade, público a partir da decisão instrutória ou, se a instrução não tiver lugar, do momento em que já não pode ser requerida, vigorando até qualquer desses momentos o segredo de justiça.
Mas, nem o sigilo nem a publicidade revestem, nos tempos processuais em que predominam, um carácter absoluto, existindo mecanismos de consulta na vigência do segredo de justiça e restrições de acesso na fase de publicidade.
A norma do artigo 89º, nº 3, reporta-se a situações em que o processo penal decorre em regime de publicidade, - processos findos e processos em que não possa ou já não possa ter lugar a instrução ou em que tenha havido já decisão instrutória - nas quais os diversos sujeitos processuais, nomeadamente o arguido, têm direito a examinar os processos 'fora da secretaria, desde que o requeiram à autoridade judiciária competente e esta, fixando o prazo para tal, autorize a confiança do processo'.
Nestas situações, e nela se há-de compreender o caso concreto dos autos - o recorrente foi condenado como autor de um crime de homicídio voluntário por decisão judicial transitada em julgado, achando-se privado da liberdade, em cumprimento da respectiva pena - a consulta do processo fora da secretaria, sendo em princípio permitida, acha-se porém
dependente da autorização da autoridade judiciária competente.
E, na hipótese de o exame dos autos ser recusado, a decisão que denegou a consulta não é susceptível de recurso.
Será que este regime, não dispõe de legitimidade constitucional, nomeadamente, por colisão com os preceitos invocados pelo recorrente?
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3 - Ao consagrar-se no artigo 32º, nº 1, da Constituição, que
'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa', consideram-se abrangidos todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas. Este preceito pode portanto ser fonte autónoma de garantias de defesa. A 'orientação para a defesa' do processo penal revela que este não pode ser neutro em relação aos direitos fundamentais (um processo em si, alheio aos direitos do arguido), antes tem neles um limite infrangível (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3ª ed., p. 202).
As várias manifestações típicas que caracterizam o estatuto do arguido são baseadas na existência de um direito de defesa que é pressuposto de todas elas, como aliás, aquela norma constitucional reconhece.
O posicionamento do arguido num processo de tipo acusatório há-de revestir uma situação de reciprocidade face à acusação, pelo que, em conformidade, lhe devem ser atribuídos aqueles meios legais de intervenção que compensem o desiquilíbrio em que naturalmente se encontra perante aquela.
E não se questiona que as garantias de defesa constitucionalmente consagradas, se bem que se assumam com particular relevância na fase dialéctica do processo penal - a partir da constituição de arguido até ao trânsito em julgado da decisão final - hão-de ainda ser asseguradas no decurso da execução das decisões penais condenatórias, nomeadamente, a propósito das questões incidentais que possam entretanto vir a ser suscitadas.
Mas, sem embargo das considerações antecedentes, não se afigura constitucionalmente deficitário o quadro de estatuição normativa que faz depender o acto de consulta do processo fora da secretaria de autorização da autoridade judiciária competente.
É que a regra geral de acesso aos autos, total ou parcial, directo ou indirecto, por parte dos sujeitos processuais, a que se reportam os nºs 1 e 2 do artigo 89º, garante por si só uma permanente disponibilidade de consulta, directamente ou através da obtenção de cópias, extractos ou certidões.
No condicionamento imposto nas situações de consulta dos autos fora da secretaria - processos findos, isto é, processos penais decorridos três meses após decisão que os mande arquivar ou aguardar a produção de melhor prova, o trânsito em julgado da decisão absolutória ou a extinção do procedimento criminal, da pena ou da medida de segurança [artigo 24º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro]; processos que não admitem instrução, isto é, processos sumários e sumaríssimos; processos comuns relativamente aos quais não possa já ser requerida a instrução, ou tenha sido proferido despacho de pronúncia ou não pronúncia - se por um lado se considera a situação objectiva em que os processos se encontram e da qual decorre uma maior facilidade no acesso, não pode deixar de se atender, por outro lado, ao facto de o exame fora da secretaria se revelar, em determinadas situações pontuais, como inconveniente ou mesmo contra-indicado.
E daí que se haja atribuído à competente autoridade judiciária a avaliação dos interesses em presença,
potencialmente conflituantes, - o acréscimo de utilidade e de vantagens que um exame efectuado no escritório dos mandatários dos arguidos pode representar em termos de melhor identificação com o conteúdo dos autos e o eventual prejuízo ou embaraço que a saída do processo da secretaria do tribunal possa acarretar - confiando-se-lhe o encargo de decidir, caso a caso, tendo em atenção as circunstâncias que concretamente se apresentam.
Neste quadro de referências, não se tem por desproporcionado e irrazoável que a consulta dos autos fora da secretaria se ache dependente de prévia autorização da autoridade judiciária desde logo porque, mesmo quando devido a razões objectivamente fundadas o pedido não venha a lograr deferimento, ainda assim sempre será possível aceder ao processo e aos elementos documentais nele existentes através do exame na secretaria do respectivo tribunal.
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4 - Mas, não será que a irrecorribilidade do despacho da autoridade judiciária que denega autorização para consulta do processo, afronta, agora numa outra perspectiva, as garantias de defesa dos arguidos?
A faculdade de recorrer da decisão condenatória
constitui peça dominante do quadro dialéctico em que se desenvolve o processo penal: é o recurso que permite ao arguido superar a antitese entre o interesse público à condenação e o seu próprio interesse de defesa e obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento.
A faculdade de recorrer da sentença condenatória proferida em primeiro julgamento, seja qual for o âmbito e a dimensão dada ao recurso, há-de inserir-se naquele complexo de garantias que caracterizam o direito de defesa.
E no plano garantístico, e no rigor dos princípios, tão importante é reconhecer-se ao arguido o direito de recorrer da solução encontrada pelo tribunal para a questão de facto, como da solução que haja sido dada à questão de direito.
Na continuidade de uma jurisprudência uniforme deste Tribunal pode afirmar-se que no artigo 32º, nº 1, da Constituição, se assegura o princípio do duplo grau de jurisdição à decisão penal condenatória, seja quanto
à matéria de facto, seja quanto à matéria de direito, (cfr. por todos o acórdão nº 219/89, Diário da República, II série, de 30 de Julho de 1989).
Simplesmente, se as coisas assim se passam no domínio das decisões condenatórias, não se pode extrair do
texto constitucional, no seu quadro normativo e nos seus princípios cogentes, que a faculdade de recorrer não possa ser restringida e limitada em determinadas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido.
A não recorribilidade do despacho que não autoriza a confiança do processo deriva do facto de se dever considerar tal decisão como uma 'decisão que ordena actos dependentes da livre resolução do tribunal'.
Com efeito, e tal como acontece com a situação contemplada no artigo 679º, nº 1, in fine, do Código de Processo Civil, a propósito dos despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário, aquela decisão é tomada pelo próprio juiz livremente, ao abrigo de uma norma que lhe confere uma ou mais alternativas de opção, 'entre as quais deve escolher em seu prudente arbítrio e em atenção a certo fim geral' (cfr. Castro Mendes, Recursos, p. 46 e Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 2ª. ed., p. 155 a 158).
A não sindicabilidade no plano do recurso de uma decisão desta natureza, com o sentido e alcance assinalado, não pode ser havida como fautora de condicionamento ou limitação indevidas das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas. E não pode, desde logo pelas razões já invocadas a
propósito da recusa de consulta dos autos fora da secretaria: é que, nas diversas hipóteses contempladas no artigo 89º, nº 3 - logo naquela a que o presente recurso se reporta - o acesso, aos autos na secretaria do tribunal é sempre assegurado aos arguidos e através desse acesso, mesmo quando se lhe atribua uma dimensão mitigada relativamente ao que resultaria de uma confiança do processo, logo se tem por garantido o direito de defesa.
Não se tem assim por verificada a inconstitucionalidade assacada pelo recorrente às normas postas em crise.
Monteiro Diniz