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Proc. nº 447/95
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A. e mulher, B., deduziram, no Tribunal Tributário de 1ª instância de Aveiro, impugnação judicial contra a liquidação adicional de imposto complementar - secção A, com referência ao ano de 1987, efectuada pela Repartição de Finanças de Espinho, no montante de 34.717$00.
Alegaram, para tanto, que a administração fiscal não considerou, para efeitos de dedução, as importâncias de 500.000$00, relativa
à subscrição de certificados de participação em fundos de investimento mobiliário Unifundo, e de 3.360$00, referente a seguro de vida que não garante o capital nos primeiros cinco anos.
Quanto a esta última importância, consideraram os recorrentes ter havido ilegalidade por parte da administração fiscal ao não considerar a mesma para efeitos de dedução, encontrando-se tal possibilidade prevista no artigo 10º, nº 1, alínea e), do Código de Imposto Profissional e no artigo 30º, alínea b), do Código de Imposto Complementar; e, por despacho de 9 de Março de 1989, o Chefe da Repartição de Finanças reconheceu que tal dedução não fora efectuada, como o deveria ter sido, por mero lapso da entidade que procedera à liquidação adicional, mas que, entretanto, já fora considerada em liquidação correctiva.
No que toca à dedução da importância de
500.000$00 na fixação do rendimento colectável, esta possibilidade encontrava-se prevista pelo Decreto-Lei nº 20/86, de 13 de Fevereiro, sendo que, pelo Decreto-Lei nº 321/87, de 28 de Agosto, foi suspensa a vigência e aplicação daquele anterior Decreto-Lei nº 20/86, com efeitos retroactivos, concretamente a partir da data da entrada em vigor da Lei nº 49/86, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 1987), que incluíra no seu artigo 44º a autorização legislativa utilizada naquele Decreto-Lei nº 321/87. Alegaram os recorrentes que este diploma legal - isto é, a norma constante do seu artigo único - é materialmente inconstitucional, ao determinar a suspensão, com eficácia retroactiva, dos benefícios fiscais introduzidos pelo Decreto-Lei nº 20/86, por violação do princípio do Estado de direito democrático e dos princípios da segurança, certeza e confiança jurídica.
2. Por sentença de 10 de Fevereiro de 1995, o tribunal tributário de Aveiro, após julgar a liquidação impugnada afectada por vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito, determinando a sua anulação no tocante à reclamada dedução da importância de 3.360$00, considerou ainda «inconstitucional a norma do art. único do DL nº 321/87, na parte em que suspende o benefício fiscal previsto no artº 1º, nº 1, do DL nº
20/86, relativamente à subscrição de certificados de fundos de investimentos mobiliários feitos antes da sua entrada em vigor, por violação do princípio da protecção da confiança do cidadão na ordem jurídica, decorrente do princípio do Estado de direito democrático ínsito no art. 2º da CRP», assim julgando a impugnação procedente e anulando a liquidação impugnada, também nesta parte.
3. Desta decisão, recorreu o Magistrado do Ministério Público junto daquele tribunal tributário, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº1, alínea a), e nº 2, da Constituição da República, e 72º, nº 1, alínea a), e nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC), por ali se ter considerado inconstitucional a norma constante do artigo único do Decreto-Lei nº
321/87, na parte em que suspende o benefício fiscal previsto no artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 20/86.
Neste Tribunal, o Ministério Público, nas suas alegações, conclui que a norma invocada não enferma de qualquer inconstitucionalidade, não violando o princípio da protecção da confiança ínsito na ideia de Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição.
4. Corridos os vistos, cumpre, então, decidir.
II - FUNDAMENTOS
5. A norma cuja constitucionalidade deve ser apreciada é, pois, a constante do artigo único do Decreto-Lei nº 321/87, do seguinte teor:
São suspensos, com efeitos a partir da data de entrada em vigor da Lei nº
49/86, de 31 de Dezembro, os benefícios fiscais estabelecidos para a compra ou subscrição de acções e de certificados de fundo de investimento mobiliário e similares, designadamente no artigo 4º do Decreto-Lei nº 182/85, de 27 de Maio, no artigo 1º do Decreto-Lei nº 20/86, de 13 de Fevereiro, e nos artigos 2º, 3º e 4º do Decreto-Lei nº 172/86, de 30 de Junho.
Reverte a questão dos presentes autos à parte da norma que refere o artigo 1º do Decreto-Lei nº 20/86, o qual dispunha:
Artigo 1º
1 - Para efeitos do imposto complementar, secção A, respeitante aos contribuintes residentes no continente ou nas Regiões Autónomas da Madeira ou dos Açores será deduzido ao rendimento global líquido relativo aos anos de
1986, 1987 e 1988, até ao total anual de 500 contos, o montante do investimento efectuado na subscrição de certificados de participação em fundos de investimento mobiliários.
Por outro lado, deve-se referir ainda que o diploma de onde consta a norma em apreço, o referido Decreto-Lei nº 321/87, foi emitido pelo Governo ao abrigo da autorização legislativa conferida pelo artigo
44º, nº 3, da Lei nº 49/86 (Lei do Orçamento do Estado), o qual dispunha, por sua vez:
Fica o Governo autorizado a suspender, desde 1 de Janeiro de 1987, os incentivos fiscais dirigidos à compra ou subscrição de acções, certificados de
fundos de investimento mobiliários e similares, de modo a ter em devida conta a conjuntura da procura nos mercados primários e secundários de títulos.
6. A questão em causa no presente recurso é, pois, a de apurar da validade constitucional da eficácia retroactiva da norma constante do artigo único do Decreto-Lei nº 321/87, na parte em que suspende os benefícios fiscais previstos no artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 20/86, desde data anterior à da sua publicação, por eventual ofensa do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição.
Não se questiona a constitucionalidade da suspensão do benefício fiscal, mas tão-somente dos efeitos retroactivos que tal norma determina.
Com efeito, o questionado decreto-lei foi publicado em 28 de Agosto de 1987, mas expressamente impõe a suspensão dos benefícios fiscais introduzidos pelo Decreto-Lei nº 20/86 desde a data da entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 1987, ou seja, desde o dia 1 de Janeiro do mesmo ano (cfr. artigo 90º da Lei nº 49/86).
Não há quaisquer dúvidas quanto aos pretendidos efeitos retroactivos, pois não só constam de forma clara e expressa do texto da disposição em causa, como ainda da referida Lei nº 49/86 constava, no mencionado artigo 44º, nº 3, a autorização ao Governo para actuar pela forma descrita, já que a autorização continha, em si mesma, a previsão da retroactividade, ao permitir ao Governo aquela suspensão com efeitos desde 1 de Janeiro de 1987, e assim, independentemente da data em que o Governo viesse a publicar o diploma autorizado.
7. A jurisprudência deste Tribunal, na esteira do que já afirmara a Comissão Constitucional (cfr. Pareceres da Comissão Constitucional nº 5/81, nº 25/81 e nº 14/82, in Pareceres da Comissão Constitucional, 14º volume, págs. 309 e segs., 16º volume, págs. 257 e segs, e
19º volume, págs. 183 e segs., respectivamente; e Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 11/83, nº 66/84, nº 141/85, nº 409/89, e nº 216/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º volume, págs. 11 e segs., 4º volume, págs. 35 e segs., 6º volume, págs. 39 e segs., 13º volume, tomo II, págs. 1169 e segs., e 16º volume, págs. 215 e segs., respectivamente), vai uniformemente no sentido de que de nenhum princípio ou norma constitucional se pode extrair a proibição genérica da retroactividade das leis fiscais, sem prejuízo dos limites que decorrem do princípio do Estado de direito democrático, consignado no artigo
2º da Constituição, e do princípio da confiança, ínsito naquele.
A Constituição proíbe expressamente a retroactividade de determinadas leis, concretamente, das leis penais e das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, conforme o disposto nos seus artigos 18º, nº 3, e 29º, nºs 1, 3 e 4. Quanto às restantes leis, sendo admissível, em princípio, do ponto de vista constitucional, a respectiva retroactividade, a verdade é que essa admissibilidade estará sempre dependente da verificação, in casu, de que tais normas, na sua aplicação retroactiva, não ferem de forma inadmissível ou intolerável, a certeza e confiança na ordem jurídica dos cidadãos por elas afectados; ou que não traem, de forma arbitrária e injustificada, as expectativas juridicamente tuteladas e criadas na esfera jurídica dos cidadãos ao abrigo das disposições vigentes à data da ocorrência dos factos que as geraram.
Duas observações, desde logo, se impõem: por um lado, se a confiança dos cidadãos na manutenção das situações eventualmente criadas ou nas situações jurídicas em causa for injustificada, material e objectivamente, ou carecer de certeza e clareza jurídicas, não nos encontraremos perante uma situação que mereça a tutela do princípio do Estado de direito democrático, ou mais concretamente, do princípio da confiança jurídica, por imanência daquele; e, por outro lado, casos haverá em que, pese embora a existência clara e certa de situações inequivocamente legítimas e merecedoras de tal tutela, ocorrem motivos de 'força maior', relacionados com interesses sociais de carácter geral, cuja preservação ou salvaguarda impõem o sacrifício desses outros interesses particulares, tanto mais quanto esses sacrifícios possam ser esperados pelos seus destinatários ou não surjam como desproporcionados.
8. Ficam assim definidas as linhas por que se há-de guiar a análise da questão presente, ou seja, determinar, afinal, se a retroactividade desta norma fiscal - a constante do artigo único do Decreto-Lei nº 321/87 - ofende o princípio da confiança e certeza da ordem jurídica de forma intolerável, arbitrária, e injustificada.
Ou seja, as expectativas dos cidadãos, que os mesmos viram criadas à face do Decreto-Lei nº 20/86, merecerão a tutela da ordem jurídica, e, nesse caso, terá a norma em causa violado as exigências de protecção e certeza jurídicas desses mesmos cidadãos de forma injustificada e intolerável?
A resposta à primeira parte da pergunta afigura-se-nos, desde logo, como afirmativa: os contribuintes que subscrevessem certificados de participação em fundos de investimento mobiliário, nos anos de
1986, 1987 e 1988, veriam o seu rendimento global líquido, relativo a esses anos, para efeitos de imposto complementar, secção A, deduzido pelo montante do investimento, até ao limite anual de 500 contos; a dedução seria feita no rendimento respeitante ao ano da subscrição, mediante depósito desses certificados numa entidade bancária. Assim, justificadamente contavam os contribuintes que efectuassem tal investimento, a partir de 13 de Fevereiro de
1986, data da publicação do diploma que instituiu este benefício, que os seus rendimentos globais líquidos, em termos de imposto complementar, nos anos da subscrição, seriam deduzidos num montante que poderia elevar-se aos 500 contos, assim ficando estes montantes justificadamente isentos de carga fiscal. O que terá sido, como facilmente se compreende, determinante para muitos contribuintes para efeitos de efectuarem tais investimentos, o que correspondia, de resto, à intenção governativa, como se pode deduzir do próprio preâmbulo daquele Decreto-Lei nº 20/86.
9. Decorrido, todavia, um curto prazo de tempo sobre a publicação deste incentivo fiscal, veio a Assembleia da República, por autorização incluída na Lei do Orçamento para 1987 - a Lei nº 49/86 - a permitir ao Governo que suspendesse esses mesmos benefícios, com efeitos desde 1 de Janeiro de 1987.
Aquela autorização foi, pois, utilizada pelo Decreto-Lei nº 321/87, este apenas publicado em 28 de Agosto. E foi em cumprimento do disposto na lei autorizante que se determinou a retroacção dos seus efeitos à data de início da vigência daquela lei.
Este aspecto não pode, efectivamente, ser ignorado. Como afirma o Ministério Público, nas suas alegações:
É certo que o Decreto-Lei nº 20/86, de 13 de Fevereiro, lhe permitia supor que, relativamente aos anos de 1986, 1987 e 1988, lhe seria deduzido ao rendimento global líquido, até ao total de 500 contos por ano, o montante de investimento efectuado nas referidas subscrições. Só que, quando estas foram feitas - em 22 de Junho de
1987 (vd. documento de fls. 10) -, já era sabido que o Governo estava autorizado a suspender desde 1 de Janeiro de 1987 aqueles incentivos fiscais. Assim, o impugnante poderia e deveria contar com a eventualidade, que viria efectivamente a concretizar-se, em 28 de Agosto, da publicação de um Decreto-Lei autorizado a determinar a suspensão daqueles benefícios fiscais desde a referida data.
Tal situação não surgiu, pois, aos olhos do contribuinte, como algo de improvável ou inverosímel.
Na verdade, então, só se poderá falar de legítimas expectativas dos contribuintes até 31 de Dezembro de 1986, data da publicação da Lei nº 49/86, pois que a partir desta data ficou o Governo autorizado a efectuar aquela suspensão, com efeitos desde 1 de Janeiro de 1987.
A alteração na ordem jurídica verificada pela entrada em vigor do Decreto-Lei nº 321/87, de 28 de Agosto, não pode ser considerada, de facto, inesperada para os contribuintes, face àquela disposição autorizante. Até porque a retroactividade determinada mais não visou do que aplicar uma disposição prevista nessa mesma autorização.
Mas a manutenção do regime mais favorável, de isenção fiscal, por um período de cerca de oito meses, sem qualquer alteração, após a publicação do Orçamento do Estado para 1987, não terá criado nos contribuintes a expectativa - legítima - de que as situações entretanto criadas
à sua sombra veriam os seus efeitos salvaguardados, mesmo que se alterasse, ou suspendesse, esse regime, para o futuro?
A resposta a esta questão só pode ser negativa.
Com efeito, parece claro que, pelo menos desde 31 de Dezembro de 1986, os contribuintes deixaram de poder contar por forma segura, com a manutenção da situação de isenção fiscal proporcionada pelo Decreto-Lei nº
20/86, de 13 de Fevereiro; passou a ser previsível que, a qualquer momento, após essa data, esses benefícios seriam suspensos, e sempre previsivelmente, com efeitos a partir da data de entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado, pelo que o contribuinte que optasse por fazer tal investimento deveria, na verdade, estar preparado para a eventualidade de não poder abater tais montantes no rendimento global líquido.
E, por outra banda, não se afigura anómala ou excessiva a circunstância de o diploma autorizado só ter vindo a ser publicado em Agosto, tendo em conta que tal ainda aconteceu em meados do ano a que se reportavam os rendimentos sujeitos a imposto e a demora do iter legislativo.
A questão seria diversa se a norma dispusesse para período anterior ao do próprio início de vigência da lei autorizante, ainda que isso nesta estivesse expressamente previsto. Mas tal aqui não se verifica, pois que a retroactividade contemplada se refere apenas ao período entre a data de entrada em vigor da lei autorizante e a data da entrada em vigor do decreto-lei autorizado.
10. Perante tal enquadramento, cremos que se deve, assim, considerar que a retroactividade imposta pela norma constante do artigo único do Decreto-Lei nº 321/87, na parte em que suspende os benefícios fiscais constantes do artigo 1º, nº 1 do Decreto-Lei nº 20/86, não colide com o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, constante do artigo 2º da Constituição.
III - DECISÃO
11. Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformado em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 8 de Outubro de 1996 Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Messias Bento Fernando Alves Correia José Sousa e Brito Guilherme da Fonseca (vencido,
conforme declaração de voto junta)
1. Entendo, diferentemente da solução a que chegou o acórdão, que devia ter sido negado provimento ao recurso, emitindo-se um juízo de inconstitucionalidade da norma sindicada do artigo único do Decreto-Lei nº 321/87, de 28 de Agosto, na parte em que suspende o benefício fiscal previsto no artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 20/86, de 13 de Fevereiro, por violação dos artigos 2º, 18º, nº 3 e 106º da Constituição.
Acompanhando o acórdão quanto à delimitação da
'questão e em causa no presente recurso' - 'a de apurar da validade constitucional da eficácia retroactiva' daquela norma, por não haver quaisquer dúvidas quanto aos 'pretendidos efeitos retroactivos', desde 1 de Janeiro de
1987 -, dele divirjo frontalmente quando apela à jurisprudência constitucional, que 'vai uniformemente no sentido de que de nenhum princípio ou norma constitucional se pode extrair a proibição genérica da retroactividade das leis fiscais, sem prejuízo dos limites que decorrem do princípio do Estado de direito democrático, consignado no artigo 2º da Constituição, e do princípio da confiança, ínsito naquele'.
Jurisprudência que, em todo o caso, não se tem eximido a criticas, como é o caso da anotação de Jorge Miranda ao Acórdão deste Tribunal Constitucional nº 11/83, em 'O Direito', ano 106º-119º, pág. 394, criticando a doutrina do Acórdão por parecer 'não suficientemente segura, algo vaga na sua formulação e prestando-se a oscilações ou, mesmo, a subjectivismos de aplicação'.
E que nem mesmo é unânime, como se pode ver das declarações de voto que estão juntas aos Acórdãos deste Tribunal Constitucional nº 66/84 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol., págs. 35 e segs.) e 141/85 (publicado na II Série do Diário da República, nº 192, de 29 de Agosto de 1985).
'À jurisprudência cabe nestes casos desenvolver, parafraseando Larenz, uma actividade mediadora entre a aplicação da lei constitucional e a 'consciência jurídica geral', uma vez que o silêncio constitucional a propósito da aplicação retroactiva da lei fiscal não pode significar o seu desinteresse a respeito deste problema, mas constitui antes a convicção de que uma solução equilibrada e, portanto, justa, para este assunto só poderia ser conseguida numa apreciação caso a caso' - opina Saldanha Sanches, A Segurança Jurídica no Estado Social de Direito, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (140), 1985, pág. 346 (que, noutro passo, acrescenta: '(...) uma vez que a retroactividade fiscal lesa sempre o princípio da tutela da confiança terá de ser justificada caso por caso e só poderá ser admitida no caso de outros valores o poderem justificar' - pág. 351).
Também para Gomes Canotilho e Vital Moreira 'o imposto retroactivo (ou qualquer norma fiscal retroactiva) é, em princípio, constitucionalmente ilícito (...)' - Constituição anotada, 3ª ed., pág. 460.
2. Com efeito, sempre tenho entendido desde logo que a tal 'proibição genérica da retroactividade das leis fiscais' pode extrair-se do texto da Constituição, à luz dos seus artigos 2º e 18º, nº 3, e, portanto, o parâmetro do juízo de inconstitucionalidade não está nos limites que decorrem do princípio do Estado de direito democrático, mas o montante desses limites, naquela proibição genérica (cfr. o acórdão deste Tribunal Constitucional nº 67/91, publicado no Diário da República, II Série, nº 151, de
6 de Julho de 1991, num recurso em que fui directamente interessado, como recorrente, e acompanhado nas declarações de voto dos Consºs. Tavares da Costa e António Vitorino).
Não há, pois, que entrar, como fez o acórdão, na verificação de que a aplicação retroactiva da lei fiscal ofende ou não o princípio da confiança e certeza da ordem jurídica de forma intolerável, arbitrária e injustificada.
A lei fiscal retroactiva é, por si só, ofensiva da Constituição e os contribuintes, numa hipótese como é a do presente caso, têm sempre que contar, para o passado, e por forma segura, com a manutenção da situação de isenção fiscal proporcionada pelo Decreto-Lei nº 20/86, de 13 de Fevereiro. Não se questiona a constitucionalidade da suspensão daquela isenção fiscal, mas tão-somente dos efeitos retroactivos dessa mesma suspensão.
Como, de modo tão impressivo, ensina Alberto Xavier e aqui se segue: 'Do próprio fundamento político-filosófico do princípio da legalidade resulta a necessidade de se interpretar o artº. 70º da Constituição no sentido do que contem implícita uma proibição constitucional de retroactividade em matéria de impostos' (Manual de Direito Fiscal, I, 1981, pág.
192; leia-se o artigo 70º à luz do artigo 106º da Constituição vigente).
E sem esquecer Leite de Campos, quando, a propósito da não-retroactividade da lei, nela abarca a 'matéria fundamental das restrições aos direitos, liberdades e garantias, em que se inclui o direito dos impostos' (Rev. Ordem dos Advogados, ano 43, Dezembro, 1983, pág. 656).
Curioso é verificar que esta matéria continua a ser ainda tão sensível, apesar da dita jurisprudência constitucional, de modo a interessar os apresentadores dos recentes projectos de revisão constitucional, defendendo o deputado João Corregedor da Fonseca a introdução no artigo 106º da regra de que a 'lei que cria ou agrava impostos não pode ter aplicação retroactiva' (Projecto nº 11/VII), mostrando-se o Grupo Parlamentar do Partido Social Democrata receptivo a uma nova redacção do nº 3 daquele artigo 106º, com o acrescentamento dos impostos 'que tenham natureza retroactiva' (Projecto nº V/VII), e revelando o Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português a preocupação em fazer consagrar no mesmo artigo 106º a regra de que a 'lei que criar ou aumentar impostos não pode ter efeito retroactivo, sendo vedada a tributação relativa a factos geradores decorridos antes da respectiva lei'
(Projecto nº 4/VII), solução que também é sustentada pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista (Projecto nº 3/VII: 'A lei fiscal não pode ser aplicada retroactivamente (...)').
Tudo indica, pois, perante este quadro de próxima revisão constitucional, que no artigo 106º irá ser introduzida a explicitação da proibição da lei fiscal retroactiva, ao arrepio da jurisprudência constitucional, que passará, assim, ao esquecimento. José Manuel Cardoso da Costa