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Procº 369/92 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Seçcão do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. A instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Macau, uma acção declarativa sumária, pedindo que se declarasse ser ela a dona do prédio com o nº ... da Rua ..., inscrito na matriz sob o nº ..., omisso na Conservatória do Registo Predial, e construído em terreno de propriedade perfeita, por se encontrar omisso nos livros de foros competentes.
Invocou como causa de pedir a usucapião.Com efeito, o seu marido havia adquirido tal prédio, em 17 de Abril de 1967, mediante mero escrito particular, pelo que, tendo aquele falecido em 22 de Agosto de 1970,a autora, na qualidade de viúva, tornou-se a única herdeira. Ora, juntando a sua posse à exercida pelo seu marido, produziu-se a aquisição do referido imóvel por usucapião, já que sempre o possuiram com 'animus sibi habiendi',sem oposição de ninguém e à vista de todo o público, praticando todos os actos que qualquer proprietário pratica e como tal considerados por toda a gente.
Tal acção veio a ser julgada procedente, por sentença do Mmº Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Macau, de 18 de Outubro de 1991, declarando-se a autora proprietária do referido prédio.
2. Deste aresto interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando, em síntese, nas suas alegações, que não tendo a autora alegado, nem provado que o prédio tinha entrado definitivamente no regime de propriedade privada, devia aquele ser considerado como terreno vago e, por isso, por força do nº 1 do artigo 7º da Lei de Terras de Macau (Lei nº 6/80/M, de 5 de Julho), pertencente ao domínio privado do Território de Macau. Ora, sobre os terrenos do domínio privado do Território, tal como, por maioria de razão,sobre os terrenos do domínio público, o artigo 8º daquela Lei proíbe categoricamente a aquisição de direitos por usucapião.
Nas suas alegações, a recorrente, para além de manter a posição sustentada em 1ª instância, suscitou a inconstitucionalidade do artigo 8º da Lei de Terras de Macau, por proibir a aquisição de direitos por usucapião, imputando--lhe a violação do artigo 62º da Constituição.
3. O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de
27 de Fevereiro de 1992, concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida.
Inconformada, interpôs A o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção introduzida pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, o qual tem por objecto a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 8º da Lei de Terras de Macau (Lei nº 6/80/M, de 5 de Julho).
4. Nas alegações produzidas neste Tribunal, a recorrente apresenta o seguinte quadro conclusivo:
1º- A Recorrente foi declarada e, bem, pela douta sentença da 1ª instância, dona e legítima proprietária do prédio urbano sito na Rua ...;
2º- Foi sendo paga ao longo dos anos Contribuição Predial à Administração Pública;
3º- A sucessiva legislação sobre terras vigente em Macau não proíbe a aquisição por usucapião da propriedade sobre prédios urbanos, mesmo construídos em terrenos pertencentes ao domínio público ou privado do Território, pois a legislação de 1856 apenas se aplicava aos terrenos baldios; a carta de lei de 1901 não afasta a possibilidade de usucapião das coisas imóveis sem dono conhecido, apesar de as declarar integradas no domínio do Estado;
4º- A Lei de 9 de Maio de 1901, a Lei nº 2001, de
16.5.44, e o decreto nº 43.894, de 6.9.61, não entraram em vigor em Macau;
5º- O Decreto nº 47.486, de 6.1.67, é meramente interpretativo, foi publicado em Macau, mas sem eficácia, pois o diploma interpretado não chegou a entrar em vigor no Território;
6º- De qualquer modo, o sentido desse diploma é o de afastar o entendimento erróneo de que a mera posse protraída pelos prazos estabelecidos na lei bastaria para fundar a usucapião; não, o de afastar a verdadeira usucapião fundada em posse e utilização relevantes, patentes no uso e fruição de um prédio urbano, por exemplo;
7º- O artigo 8º da Lei nº 6/80/M - Lei de Terras de Macau - fala, ao arrepio de toda a corrente legislativa anteriormente vigente no Território, em 'terrenos', apenas;
8º- Os prédios urbanos, uma vez pertencentes ao domínio privado dos particulares podem ver a sua propriedade adquirida por usucapião;
9º- Mas mesmo que se considerasse como pertencentes ao domínio privado da Administração (!), ao tempo da entrada em vigor da Lei de Terras e do seu artigo 8º, ainda assim haveria que reconhecer a possibilidade de usucapião para os casos em que as casas já estavam construídas e a ser usadas e fruídas na referida data.
10º- O princípio da fruição social da propriedade permite ao legislador ordinário impor restrições, mas estas atingem a garantia constitucional do direito de propriedade privada quando levam à exclusão da própria utilização normal dos bens;
11º- O artigo 8º da Lei de Terras (Lei 6/80/M) vigente em Macau viola o artigo 62º da Constituição, se interpretado em termos de não abranger tão somente os terrenos vagos e, sim, também, os prédios urbanos construídos em terreno do domínio público e do domínio privado do Território, pelo que é materialmente inconstitucional.
12º- O Acórdão do Tribunal da Relação deve, pois, ser revogado e reformado.
Por sua vez, dos recorridos apenas alegou o Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional, concluindo do seguinte modo:
1º- A 'ratio decidendi' que ditou a improcedência da pretensão do autor não foi, na hipótese dos autos, a aplicação do regime estatuído no artigo 8º da Lei de Terras de Macau (Lei nº 6/80/M, de 5 de Julho)
- inadmissibilidade de aquisição por usucapião ou acessão de direitos reais sobre terrenos integrados no domínio privado do território - única norma arguida de inconstitucional pela recorrente.
2º- Na verdade, a improcedência da acção radicou na aplicação pelo tribunal recorrido de um prazo prescricional de 30 anos, decorrente do estatuído na Lei nº 54, de 16 de Julho de 1913, conjugada com os preceitos legais, vigentes em Macau, que sempre consideraram integrados no domínio privado do território os terrenos que não fizessem parte do domínio público, nem houvessem sido previamente adquiridos por título legítimo.
3º- Não constituindo a norma arguida de inconstitucional verdadeira base ou suporte jurídico da decisão de mérito proferida, carece de relevância, na concreta e específica situação dos autos, a questão de constitucionalidade suscitada pela recorrente.
5. Notificada para responder à questão prévia suscitada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, manifestou-se a recorrente no sentido da sua improcedência, afirmando que a razão fundamental da improcedência da acção foi a proibição da usucapião constante do artigo 8º da Lei de Terras de Macau, funcionando a eventual falta de decurso de prazo da usucapião como mera razão secundária ou reforço da primeira.
6. Corridos os vistos legais, foi apresentado pelo relator projecto de acórdão e inscritos os autos em tabela para julgamento, tendo sido, posteriormente, os mesmos retirados de tabela.
Antes de adoptada a decisão pelo Tribunal Constitucional, apresentou a recorrente um requerimento, no qual solicita a
'declaração da inutilidade superveniente da lide', em consequência das alterações introduzidas na Lei de Terras de Macau pela Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho, e, bem assim, a remessa dos autos ao Tribunal Judicial de Macau. O requerimento da recorrente vem acompanhado dos seguintes fundamentos:
'1.- Discute-se no presente recurso o problema da eventual inconstitucionalidade do art. 8º da Lei nº 6/80/M, de 5 de Julho (Lei de Terras), da Assembleia Legislativa de Macau.
2.- Acontece que pela Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho, publicada no Boletim Oficial de Macau, I Série, Nº 27, o referido artigo 8º da Lei de Terras foi alterado, como alterado foi o artigo 5º.
Embora mantendo-se o princípio de não poderem ser adquiridos direitos, sobre os terrenos do domínio público e do domínio privado do território, por meio de usucapião ou acessão imobiliária (art. 8º), a verdade
é que passou a admitir-se, agora, a aquisição por usucapião nos termos da lei civil, do domínio útil de prédio urbano objecto de concessão por aforamento pelo Território (art. 5º nº 3).
E, nos termos do nº 4 deste referido art. 5º, 'não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento do foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pelo Território e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil'.
Finalmente, de acordo com o art. 7º da nova Lei
2/94/M, 'nas acções judiciais em que tenha sido formulado pedido de usucapião do direito de propriedade sobre prédios na situação prevista no nº 4 do art. 5º da Lei nº 6/80/M, na redacção dada pela presente Lei, pode o Mº.Pº., em representação do território, acordar que o pedido seja alterado para usucapião do domínio útil sobre os mesmos prédios'.
3.- Ora, a aqui Recorrente pretende usar desta faculdade de alteração do pedido ou, se necessário, instaurar nova acção para reconhecimento não já da propriedade perfeita, mas do domínio útil do prédio em causa nos autos.
4.- Seja como for, o presente recurso terá perdido interesse, face à alteração publicada da Lei de Terras de Macau e, porventura, o problema da constitucionalidade (ou não) da norma do art. 8º estará, de certo modo, ultrapassado, face à evolução legislativa.
5.- Parece, assim, defensável considerar que a questão posta no presente recurso perdeu eficácia prática'.
7. Em face do mencionado requerimento da recorrente, ordenou o relator a remessa dos autos, a título devolutivo, ao Tribunal Judicial de Macau, para efeitos de neles ser eventualmente aplicado o disposto no artigo 7º da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho.
Chegados os autos ao Tribunal de Competência Genérica de Macau, requereu a recorrente a alteração do pedido de usucapião da propriedade de prédio sem registo de título de aquisição para usucapião do domínio útil, nos termos do estatuído no artigo 7º da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho (fls. 228 dos autos), tendo o Representante do Ministério Público declarado não se opor à modificação do pedido, no caso de aquele Tribunal declarar apenas que a autora exerceu a posse por mais de vinte anos, mas não reconhecê-la como proprietária do domínio útil (fls. 230 dos autos), condição esta que obteve a anuência da recorrente (fls. 232 dos autos).
8. Verificados os pressupostos referidos no artigo
7º da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho, quanto à alteração do pedido e realizada a audiência de discussão e julgamento, proferiu o Mmº Juiz do Tribunal de Competência Genérica de Macau, em 4 de Outubro de 1995, Sentença na qual declarou que 'a autora é titular da posse do domínio útil do prédio nº ... da Rua ..., inscrito na matriz predial sob o art. ...'.
9. Devolvidos os autos a este Tribunal, cumpre decidir, começando, desde logo, pela análise da questão do conhecimento do recurso.
II - Fundamentos.
10. O relato anteriormente feito das vicissitudes por que passaram os autos deixa imediatamente perceber que não se deve conhecer do recurso interposto para este Tribunal do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Fevereiro de 1992, e cujo objecto é a questão da constitucionalidade da norma do artigo 8º da Lei de Terras de Macau, na versão da Lei nº 6/80/M, de 5 de Julho, que dispunha o seguinte:
'Sobre terrenos do domínio público e do domínio privado do território não podem ser adquiridos direitos por meio de usucapião ou acessão imobiliária'. Vejamos porquê.
Como se viu, foi proferida nos autos a Sentença de
4 de Outubro de 1995 do Tribunal de Competência Genérica de Macau, nos termos do artigo 7º da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho, que veio permitir uma alteração do pedido, quando não houver decisão transitada em julgado e ocorrer acordo do Ministério Público, em representação do Território. Uma análise desta decisão permite concluir o seguinte: por um lado, o acórdão recorrido deixou de subsistir, em consequência da prolação de uma nova sentença, no seguimento de uma modificação do pedido; por outro lado, na Sentença de 4 de Outubro de 1995, a recorrente perdeu a posição de parte vencida que tinha no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Fevereiro de 1992 - a recorrente deu-se, com efeito, por satisfeita com a remoção dos anteriores obstáculos à (parcial) satisfação da sua pretensão, suscitando, inclusive, como foi realçado, a questão da 'inutilidade superveniente da lide', em consequência da alteração legislativa
operada pela Lei nº 2/94/M; por último, a Sentença de 4 de Outubro de 1995 do Tribunal de Competência Genérica de Macau não aplicou a mesma norma que tinha sido aplicada pelo acórdão recorrido: enquanto este aplicou a norma constante do artigo 8º da Lei de Terras de Macau, aprovada pela Lei nº 6/80/M, de 5 de Julho, aquela aplicou, para além da norma (transitória) do artigo 7º da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho, a norma constante do nº 4 do artigo 5º da Lei nº 6/80/M, na redacção dada pela Lei nº 2/94/M, nos termos da qual 'não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento do foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pelo Território e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil'.
O que acaba de ser referido legitima a afirmação de que a decisão que o Tribunal Constitucional viesse a adoptar sobre a questão de constitucionalidade da norma do artigo 8º da Lei de Terras de Macau, na versão da Lei nº 6/80/M, de 5 de Julho, não teria qualquer influência na decisão proferida pelo Mmº Juiz do Tribunal de Competência Genérica em 4 de Outubro de
1995. Assim sendo, considerada a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade (cfr., por todos, os Acórdãos deste Tribunal nºs. 208/86,
250/86, 275/86 e 14/91, publicados no Diário da República, II Série, de 3 de Novembro de 1986, 21 de Novembro de 1986, 12 de Dezembro de 1986 e 28 de Março de 1991, respectivamente), há que concluir que, não subsistindo interesse jurídico relevante na decisão da questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos, deve julgar--se extinto o recurso.
III - Decisão.
11. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide--se julgar extinto o recurso, por inutilidade superveniente.
Lisboa, 7 de Fevereiro de 1996 Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Messias Bento Bravo Serra Guilherme da Fonseca Luis Nunes de Almeida