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Proc. nº 403/94 Plenário Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - No 1º Juízo Criminal de Lisboa, o Ministério Público deduziu acusação contra A, imputando-lhe o cometimento de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, previsto e punível pelos artigos 4º e 16º, nº 1, da Lei nº
34/87, de 16 de Junho, o artigo 1º do Decreto-Lei nº 371/83, de 6 de Outubro, e o artigo 420º do Código Penal.
Na audiência de julgamento, o Presidente do Tribunal admitiu a junção aos autos de 43 documentos [sessão de 8-06-1993], que o arguido requereu e reputou de relevante para a decisão da causa [sessão de 28-05-1993].
De imediato, o Ministério Público interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do despacho por que se admitiu aquela junção de documentos. E o recurso foi admitido, para subir a final, com o que porventura viesse a ser interposto do acórdão de apreciação do mérito.
Este acórdão seria o de 4 de Agosto de 1993 e por ele o Tribunal Colectivo viria absolver o arguido.
O processo foi então remetido ao Supremo Tribunal de Justiça. Aí teve vista o Ministério Público, em ordem ao artigo 416º do Código de Processo Penal. Nos seguintes termos:
'Vêm submetidos à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça dois recursos, ambos interpostos pelo Ministério Público, figurando como recorrido o arguido A.
O primeiro recurso, foi interposto por declaração em acta (fls.
2983) e tem por objecto a decisão do Exmº Juiz Presidente do Colectivo que nessa mesma acta deferiu o requerimento do mandatário do arguido apresentado a fls.
2919 verso, assim se decidindo admitir a junção aos autos dos documentos então apresentados pela defesa.
O referido recurso mostra-se motivado de fls. 3009 a 3028 e foi admitido por despacho de fls. 3033 onde se fixou correctamente o seu regime e efeito.
O arguido e recorrido não respondeu à motivação.
Trata-se de um recurso interlocutório sendo certo que a decisão recorrida não constitui decisão final.
Assim sendo, deve ser conhecido antes do recurso interposto da decisão final e compete à conferência o seu julgamento conforme dispõe a alínea c), do nº 4, do art. 419º do Código de Processo Penal.
Nada obstando ao seu conhecimento, requeiro que se sigam os ulteriores termos para que em conferência se julgue esse recurso, que merece provimento, o que determinará a anulação do julgamento, até porque a referida documentação constituiu também fundamento da decisão como se afere de fls. 3200 verso.
Procedente esse recurso, deve decretar-se o reenvio do processo para novo julgamento no Tribunal de categoria e composição idênticas às do Tribunal recorrido, que se encontrar mais próximo, tudo em conformidade com o disposto no art. 436º do Código de Processo Penal'.
Depois, o Ministério Público tratou a temática de duas questões prévias que o arguido suscitara em resposta à motivação do recurso interposto da decisão final. E, finalmente, concluiu:
'Requere-se que em conferência e com os fundamentos expostos sejam desatendidas ambas as questões prévias e que:
Procedente o recurso interlocutório, seja anulado o julgamento e ordenado o reenvio para o tribunal mais próximo como se escreveu supra.
Só por mera hipótese, se aquele recurso não obtiver provimento, deverá prosseguir o recurso da decisão final no qual se renunciou a alegações orais, sem oposição, pelo que haverá que fixar prazo para alegações escritas que, no caso, deverá ser o máximo - 15 dias - enunciando o Exmº Relator as questões que mereçam exame especial'.
O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 10 de Fevereiro de
1994, julgou o recurso interlocutório do despacho do Presidente do Tribunal Colectivo que no momento da audiência admitira a junção de documentos requerida pela defesa. Considerou, então, no essencial:
'O processo penal vigente caracteriza-se por uma filosofia de parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os seus actos e de igualdade material de 'armas' no processo (art. 2º, nº 2, al. 3), da lei de autorização legislativa nº 43/86, de 26.9.1986).
O arguido violou, no entanto, estes princípios da parificação processual e da igualdade de meios e argumentos, colocando o MINISTÉRIO PÚBLICO na desvantajosa situação de não mais poder responder à documentação apresentada pela sua defesa. Por isso se discorda da opinião de MARQUES FERREIRA ('Meios de Prova', in 'Jornadas de Direito Processual Penal', pág. 260), que admite a possibilidade de junção tardia e injustificada, mediante uma simples condenação do apresentante em taxa de justiça. O respeito pelo princípio da verdade material não prevalece, efectivamente, quando o apresentante ofereça injustificadamente documentação para além das fases de inquérito ou instrução, impedindo a contra-prova do sujeito adverso, pois que aí viola outros princípios de igual valor do processo penal, designadamente os da parificação das posições e da igualdade de 'armas' no processo.
Não oferecendo o documento no decurso do inquérito ou da instrução, ao apresentante tardio competirá então o ónus de alegar e provar a impossibilidade tempestiva da apresentação, sob pena de extemporaneidade e de o documento não poder ser admitido.
O princípio da verdade material - como todas as normas da vida humana em sociedade - não tem carácter absoluto. A sua aplicação tem regras e limites, definidos pelas fronteiras de outros princípios igualmente válidos e presentes no processo penal.
A admissão de documentos retardados - deliberadamente ou mesmo sem tal propósito -, pode ofender os princípios, acima referidos, da parificação do posicionamento dos sujeitos e da igualdade de meios e argumentos da relação processual e foi neste caso o que se passou, onde o MINISTÉRIO PÚBLICO se viu desarmado perante a surpresa de uma oferta de documentos da defesa, numa altura em que já não lhe era possível a resposta adequada.
Os 43 documentos oferecidos pelo arguido A não deveriam, pois, ser admitidos. A sua aceitação pelo tribunal colectivo, na linha da doutrina de MARQUES FERREIRA que se rejeita, constituiu, nestas circunstâncias, uma irregularidade traduzida num desvio do formalismo processual seguido em relação ao formalismo processual prescrito no art. 165º, nº 1, do CPP, com os efeitos nefastos para a acusação já aqui relevados.
11..2. Resumindo:
1º A junção de documentos no actual regime do processo penal tem o seu momento próprio: as fases do inquérito ou da instrução;
2º Fora destes períodos, os documentos podem ainda ser juntos até ao encerramento da audiência de julgamento, mas ao apresentante competirá o ónus de alegar e provar a impossibilidade de os juntar no decurso do inquérito ou da instrução.
3º A aplicação do princípio da verdade material não é, com efeito, absoluta, sem regras nem limites, confinando com as fronteiras dos princípios da parificação do posicionamento jurídico dos sujeitos da relação de processo penal e da igualdade de 'armas' no processo.
4º Os documentos oferecidos sem razão atendível, para além do inquérito ou da instrução, devem, pois ser rejeitados por extemporaneidade.
5º A sua admissão, em tais circunstâncias, constitui irregularidade processual juridicamente relevante quando for susceptível de influir na decisão da causa.
11.3. Neste condicionalismo, ao apresentar os 43 documentos naquela oportunidade, o arguido A violou claramente o disposto nos arts. 165º, nº 1
[pretender-se-á referir 'do CPP'], e 2º, al. 3), da Lei nº 43/86, de 26.9.1986, pelo que a sua junção deveria ser rejeitada no tribunal 'a quo'.
A Digna magistrada do MINISTÉRIO PÚBLICO, presente na audiência em que tais documentos foram apresentados e mais tarde admitidos, arguiu imediatamente essa irregularidade, e com legitimidade o fez, por ser manifesto o seu interesse em que a junção seja declarada nula e de nenhum efeito e, por via disso, que os documentos sejam desentranhados do processo e restituídos ao arguido, que os apresentou.
A oposição do Ministério Público foi, por conseguinte, tempestiva, conforme o disposto no art. 123º, nº 1, do CPP, com os efeitos aí também declarados: a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa ter afectado.
11.4. No âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, reconhecidos no art. 433º do CPP, inclui-se a possibilidade de apreciação de recurso com fundamento na inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada (art. 410º, nº 3, do mesmo diploma).
É precisamente o caso contemplado no recurso do MINISTÉRIO PÚBLICO.
E assim sendo, o recurso procede, tendo como consequência a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa ter afectado.
Com vista à salvaguarda do princípio da identidade do juiz, o acto inválido não é somente o da junção dos documentos, que devem ser desentranhados e restituídos ao seu apresentante, como ainda a própria audiência integrada pelas diversas sessões a que foi necessário proceder, por ser previsível que na sua repetição não sejam já os mesmos juízes a efectuá-la. Os termos subsequentes são, por outro lado, todos os termos e actos por ele inquinados: as várias sessões da audiência que se seguiram à junção irregular e todos os termos e actos posteriores, até ao da remessa do processo ao Supremo Tribunal de Justiça, inclusivé'.
E, assim, o Supremo Tribunal de Justiça declarou nulos todos os actos e termos do processo, desde a primeira sessão de audiência de julgamento, e determinou o desentranhamento dos 43 documentos apresentados pelo arguido e a repetição do seu julgamento.
No seguimento deste acórdão, em 24 de Fevereiro de 1994, foram arguidas três nulidades processuais: Sobre a primeira nulidade, centrada no visto do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, de que o arguido não fora notificado, diz-se, no essencial:
'Verifica-se (...) que o Exmo. Magistrado do MP no seu visto defendeu expressamente uma inverdade - a não apresentação tempestiva da Resposta por parte do arguido - e acrescentou algo de substancialmente novo aos motivos até aí defendidos pelo recorrente: a influência da junção dos documentos na decisão da causa.
Mas o STJ não considerou necessário, apesar das circunstancias, ouvir o arguido sobre a nova argumentação deduzida pelo Exmo. Magistrado do MP que, além do mais, era susceptível de agravar a posição do arguido.
O arguido foi pois impedido de exercer o seu direito de resposta, o que pôs em causa o núcleo essencial do seu direito de defesa, com violação expressa do princípio do contraditório e dos agora tão queridos e celebrados
(pelo Acórdão do STJ) princípios da parificação do posicionamento jurídico dos sujeitos da relação de processo penal e da igualdade material de 'armas' no processo.
A omissão praticada pelo STJ não assegurou pois as garantias de defesa do arguido e é lesiva, por conseguinte, dos princípios fundamentais consagrados no artº 32º, nºs 1 e 5 da CRP.
(...)
A não audição do arguido sobre o teor do visto do Exmo. Magistrado do MP constitui sem dúvida 'uma inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada' (artº 410º, nº 3, do CPP)' que cabe
'no âmbito dos poderes de cognição do STJ' (palavras do próprio Acórdão
'sub-judice').
(...)
É inquestionável que a recusa ao arguido do direito de resposta sobre aspectos e razões novas levantadas pelo MP - e que, além de inverídicas e incorrectas, podem pôr em causa a tese da defesa - afecta necessariamente o julgamento imparcial do recurso.
E, conforme já foi decidido pelo Acórdão nº 15093 - Procº nº 128/90, de 2 de Fevereiro de 1993, do Tribunal Constitucional, em sessão plenária, publicado no Diário da República, II Série, de 29.03.1993, a norma do artº 416º do CPP (semelhante à do artº 664º do Código de 1929) só não é inconstitucional
'interpretada no sentido de que, se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar em termos de poder agravar a posição dos réus, deve ser dada a estes a possibilidade de responderem'.
O Tribunal Constitucional confirmou recentemente essa mesma tese, no Acórdão nº 651/93, de 4 de Novembro (...).
Logo, face ao visto do Exmo. Magistrado do MP de fls. 3441, deveria ter sido dada ao arguido a possibilidade de responder ao mesmo, sob pena de o STJ estar, de facto, a aplicar, numa interpretação inconstitucional, a citada norma do artº 416º do CPP, com todas as respectivas consequências que aqui se invocam para os devidos efeitos'.
A segunda nulidade radica-a o arguido no despacho do relator que, no Supremo Tribunal de Justiça, considerou regularmente interposto pelo Ministério Público o recurso da decisão final do Tribunal Colectivo. Assim:
'Colhido o visto do MP o processo foi concluso ao Exmo. Conselheiro Relator que, procedendo ao exame preliminar previsto no artº 417º, nº 1, do CPP, proferiu o seguinte despacho, a fls. 3457:
'1. Os recursos foram interpostos em tempo, o Ministério Público tem legitimidade, o efeito é o próprio'.
O arguido não foi notificado deste despacho pelo que não teve oportunidade dele reclamar para a conferência.
De qualquer modo, a nulidade da omissão da notificação ao arguido do visto do MP - ou a interpretação inconstitucional da norma do artº 416º do CPP - afecta a validade deste despacho, pelo que o mesmo não pode produzir quaisquer efeitos.
Por outro lado, trata-se de um mero despacho de expediente, que não produz efeitos, se atacado, sem que a conferência se pronuncie sobre a questão.
Acresce que qualquer decisão sobre a existência ou não do recurso da decisão final, tendo em conta a posição assumida pelo arguido a fls. e segs., tem de ser fundamentada.
Termos em que aqui se argui a nulidade do referido despacho de fls.
3457 na medida em que o mesmo declarou interposto 'em tempo' o recurso da decisão final.
Na verdade, a conferência deveria ter decidido sobre a referida questão prévia, oportunamente levantada pelo arguido, da existência ou não existência de recurso do MP do Acórdão final do Tribunal Colectivo.
Se, como defende o arguido, não houve, porque não foi sequer interposto, recurso da decisão final, então o STJ não é competente para julgar o recurso interlocutório 'sub-judice'.
Dispõe, efectivamente, o artº 427º que
'Exceptuando os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso de decisão proferida por tribunal de primeira instância interpõe-se para a Relação'.
O STJ não tem pois competência para julgar o recurso interlocutório quando o MP não tenha interposto, em tempo e de forma legal, recurso da decisão final.
Ora, o STJ fugiu a essa apreciação, indispensável para o apuramento da verdade.
Verificam-se, assim, simultaneamente duas nulidades:
. por um lado, a nulidade prevista no artº 119º, alínea e), do CPP:
'a violação das regras de competência do Tribunal'.
. por outro lado, a nulidade prevista no artº 120º, nº 2, alínea d), do CPP: '...omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade'.
É portanto inconstitucional, por violação do princípio da garantia de defesa [esta asserção é explicitada na conclusão do requerimento com uma referência ao artigo 32º, nºs. 1 e 2, da CRP], a interpretação dada pelo STJ à norma dos artºs 427º e 407º do CPP no sentido de que é automática a admissão e julgamento por esse mesmo Tribunal superior de recurso interlocutório, admitido pelo tribunal de 1ª Instância para subir com o recurso da decisão final, sem que tenha havido interposição tempestiva e válida deste último recurso'.
A terceira nulidade era relativa ao número de juízes do Tribunal que decidiu o recurso [artigo 419º, nºs. 1 e 4, alínea c), e artigo 119º, alínea a), do Código de Processo Penal] mas aí não se suscitou um qualquer problema de confronto entre norma e Constituição.
Depois, em 1 de Março de 1994, o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do mesmo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. Invocando o artigo 280º da Constituição e o artigo 70º, alínea a) [por lapso evidente, omite-se o nº 1] da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, afirma, então, que 'a decisão recorrida:
a) recusou implicitamente a aplicação da norma constante do artº
340º, nº 1, do CPP, que consagra o princípio da 'investigação' ou da 'verdade material', por considerar que a mesma viola o princípio da 'igualdade de armas' decorrente do disposto no artº 13º da Constituição;
b) recusou a aplicação da norma constante do artº 165º, nº 2, do CPP, quando conjugado com o artº 340º, nº 1 do mesmo Código, por entender que a mesma é inconstitucional ao assegurar de forma insuficiente o princípio do
'contraditório' consagrado no artº 32º, nº 5, da Constituição'.
O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 21 de Abril de 1994, julgou improcedente o requerimento de arguição de nulidades, e desse acórdão o arguido recorreu para o Tribunal Constitucional, em 11 de Maio de 1994. Invocando, agora, o artigo 280º, alínea b), da Constituição da República e o artigo 70º, alínea b) [de novo, com manifesto lapso de omissão do nº 1] da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, delimitou assim o recurso:
'I - Inconstitucionalidade da norma do artº 416º do CPP
1. O Acórdão violou a norma do artº 416º do CPP na medida em que a interpretou no sentido de não ser necessária audição do arguido nos casos em que o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronuncia em termos de poder agravar a posição do mesmo arguido.
É esta, pois, uma das normas cuja inconstitucionalidade, na interpretação que lhe foi dada pelo Acórdão, se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie - artº 75º-A, parte final, da citada Lei nº 28/82.
2. Com efeito, o Acórdão do STJ interpretou e aplicou a referida norma do artº 416º do CPP com violação do 'contraditório', da 'igualdade de armas' e do 'acusatório', constantes das normas do artº 32º, nºs 1 e 5 da CRP - artº 75º-A, nº 2, da citada Lei nº 28/82.
3. O recorrente tem legitimidade para interpor recurso visto ter oportunamente suscitado a questão da referida inconstitucionalidade no seu requerimento de fls. apresentado neste STJ em 24.02.94 e em que arguiu nulidades do anterior Acórdão deste mesmo Tribunal, de fls. (...)'
II - Inconstitucionalidade dos artºs 427º e 407º do CPP
4. O Acórdão recorrido violou também as normas dos artºs 427º e 407º do CPP na medida em que as interpretou no sentido de o STJ poder julgar recurso interlocutório de decisão proferida por tribunal de primeira instância independentemente de haver ou não recurso da decisão final, isto é, poder julgar recurso interlocutório apesar de a decisão final da 1ª instância ter transitado em julgado em virtude de não ter sido interposto recurso dessa mesma decisão.
São estas normas cuja inconstitucionalidade, na interpretação que lhes foi dada pelo Acórdão recorrido, se pretende também que o Tribunal Constitucional aprecie - artº 75º-A, nº 1, parte final, da citada Lei nº 28/82.
5. Na verdade, o Acórdão recorrido do STJ interpretou e aplicou as referidas normas dos artºs 427º e 407º do CPP com violação dos princípios constitucionais do 'caso julgado', da 'garantia de defesa' e da 'iniciativa processual', constantes, nomeadamente, das normas dos artºs 2º, 29º, nº 5 e 32º, nºs 1, 5 e 7, todos da CRP - artº 75º-A, nº 2, da citada Lei nº 28/82.
6. O recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso, também quanto a esta matéria, visto ter oportunamente suscitado a questão da referida inconstitucionalidade no seu já aludido requerimento de fls., apresentado neste STJ em 24.02.94, de fls'.
Mas nem o primeiro recurso de constitucionalidade - o que foi interposto em 1 de Março de 1994, com invocação do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro - nem este segundo recurso de constitucionalidade foram admitidos pelo Supremo Tribunal de Justiça.
O despacho que o relator proferiu, e depois a conferência confirmou, de 27 de Maio de 1994, é do seguinte teor:
'1. Por ser manifestamente extemporâneo, não recebo o recurso interposto em 1.3.1994, para o Tribunal Constitucional, por A (...)
2. Também a fls. 3518, e agora em tempo, veio o arguido interpor novo recurso para o Tribunal Constitucional, do acórdão deste Supremo Tribunal, de 21.04.1994, que julgou improcedentes, na totalidade, as nulidades arguidas no requerimento de fls. 3476 e segs. invocando para tanto os fundamentos que seguem:
1º O Acórdão violou a norma do art. 416º do CPP, na medida em que a interpretou no sentido de não ser necessária a audição do arguido nos casos em que o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronuncia em termos de poder agravar a posição do arguido.
2º O Acórdão recorrido violou também as normas dos arts. 427º e 407º do CPP, na medida em que as interpretou no sentido de o STJ poder julgar recurso interlocutório de decisão proferida por tribunal de primeira instância independentemente de haver ou não recurso da decisão final, isto é, poder julgar recurso interlocutório apesar de a decisão final da primeira instância ter transitado em virtude de não ter sido interposto recurso dessa mesma decisão.
2.1. No que respeita ao primeiro ponto, já se demonstrou no 5. do acórdão de fls. 3502 e segs., proferido em 21.4.1994, que a intervenção do Exmº Procurador-Geral Adjunto, ao abrigo do disposto no art. 416º do CPP, em nada agravou a posição do recorrente no processo, por se reportar a uma fase que o mesmo não atingiu.
O tema foi tratado com suficiente desenvolvimento no 5. do referido acórdão, e para a sua argumentação de novo se remete o recorrente, com o único propósito de se evitarem repetições tão fastidiosas quanto inúteis.
Não houve, portanto, qualquer interpretação inconstitucional do art.
416º do CPP.
2.2. No tocante ao segundo ponto, também o recurso não merece tratamento diferente.
O Ministério Público interpôs, com efeito, na primeira instância recurso do despacho que está na origem do acórdão de fls. 3462 e segs, subscrito em 10.2.1994.
Oportunamente, também da decisão final da primeira instância, houve recurso do Ministério Público.
No exame preliminar, o relator do processo verificou que a eventual procedência do recurso interlocutório do Ministério público era circunstância que obstava ao conhecimento do recurso da decisão final (art. 417º, nº 1, al. a), do CPP). Neste condicionalismo, o relator deu cumprimento ao preceituado no art. 419º, nº 4, al. c), do mesmo Código, submetendo o processo a julgamento em conferência, porque a decisão recorrida não constituía decisão final.
Os arts. 407º e 427º do CPP não foram, por conseguinte, chamados a este processado. Nem houve recusa inconstitucional da sua aplicação nem interpretação inconstitucional dos seus comandos.
Assim sendo, também neste caso carece de apoio a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
3. Por tudo quanto se deixa escrito, não recebo o recurso interposto em 11 de Maio de 1994, pelo arguido A, para o Tribunal Constitucional'.
O arguido veio então reclamar para o Tribunal Constitucional: primeiro, deste despacho e, depois, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Julho de 1994, que o confirmou. Defendendo a admissibilidade dos dois recursos que pretendia interpor, reitera, sobre o primeiro, a ideia de que o Supremo Tribunal de Justiça recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação das normas conjugadas dos artigos 165º, nº 2, e 340º, nº 1, do Código de Processo Penal, e, sobre o segundo recurso, a ideia de que são inconstitucionais as normas do artigo 416º e ainda dos artigos 407º e 427º, do mesmo Código, interpretadas no sentido em que o fez o acórdão de 10 de Fevereiro de 1994, daquele Supremo Tribunal.
Finalmente, requer o julgamento em plenário da reclamação, atentos os acórdãos do Tribunal Constitucional sobre a norma do artigo 416º do CPP [ou sobre a norma absolutamente idêntica do artigo 664º, do CPP de 1929] e em ordem ao desiderato do artigo 79º-A da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, de 'evitar divergências jurisprudenciais'.
2. No Tribunal Constitucional, o Exmº. Conselheiro-Presidente declarou-se impedido para intervir neste julgamento 'por ter sido ouvido como testemunha em autos de processo penal respeitante exactamente aos factos a que também respeita o processo em que foi apresentada a reclamação' [despacho de 3 de Novembro].
Os autos foram, então, presentes ao Exmº Conselheiro Vice-Presidente que, sobre o que se requeria em ordem ao artigo 79º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, proferiu o seguinte despacho:
'O reclamante solicitou a intervenção do plenário, ao abrigo do disposto no artigo 79º-A da LTC, «a fim de evitar possíveis divergências jurispridenciais».
Poder-se-ia colocar a questão de saber se a intervenção do plenário apenas é admissível nos recursos, isto é, se ela se encontra excluída no caso das reclamações, tendo em conta que a parte final do nº 1 do referido artigo
79º-A, ao prever um prazo de vista de dez dias para os juízes, é manifestamente inaplicável às reclamações, onde o prazo de vista, quando o julgamento compete
às secções já é menor (três dias - artigo 77º, nº 2). Contudo, considerando que a razão de ser da intervenção do plenário - evitar divergências jurisprudenciais
- tanto se justifica no caso dos recursos como no das reclamações, há-de se entender que é possível essa intervenção em hipóteses como a dos autos (embora, como é óbvio, o prazo de vista dos juízes seja o do artigo 77º).
Nestes termos, e dado que, in casu, a possibilidade de divergência jurisprudencial ocorre, uma vez que o Acórdão nº 150/93 foi votado por uma maioria tangencial e, entretanto, foram substituídos dois juízes, determino, com a concordância do Tribunal e ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 79º-A da LTC, que o julgamento do presente processo se faça com intervenção do plenário'.
O Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.
II - A fundamentação
É, pois, da não admissão pelo Supremo Tribunal de Justiça de dois recursos de constitucionalidade que vem deduzida esta reclamação.
1 - O primeiro recurso e o problema da sua tempestividade
1.1 - O primeiro recurso de constitucionalidade fora interposto em 1 de Março de 1994, no seguimento do acórdão daquele Supremo Tribunal, de 10 de Fevereiro de 1994, com invocação do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro. Por via dele se afirmava uma tese de recusa implícita de aplicação por aquele acórdão, com fundamento em inconstitucionalidade, das normas conjugadas dos artigos 165º, nº 2, e 340º, nº 1, do Código de Processo Penal.
1.2 - Este recurso não é extemporâneo, ao contrário do que se afirma na decisão que o não admitiu.
Interposto que foi em ordem ao artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, a ele se não liga um qualquer pressuposto de esgotamento prévio dos meios ordinários de impugnação das decisões judiciais. Não pode e não deve, assim, ver-se no fundamento de extemporaneidade exarado na decisão de que se reclama uma qualquer ideia legitimadora de não admissão do recurso, capaz de se fundar numa 'antecipação' ilegal [no sentido de não satisfazer aos pressupostos da lei de processo] do recurso. Mesmo na pendência de uma arguição de nulidades [nenhuma delas, cabe sublinhar, consubstanciando a concreta questão de constitucionalidade aqui suscitada], a interposição do recurso é regular, no sentido de que não é prematura. O recorrente não tinha que aguardar pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça sobre aquelas nulidades, muito embora a Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, lhe não vedasse o acesso ao Tribunal Constitucional no seguimento dessa decisão [cf. o artigo 70º, nº 4, em interpretação analógica]. Para mais, se a característica de prematuridade se verificasse, ela não obstaria por si ao conhecimento do recurso [cf. os acórdãos do Tribunal nºs. 261/85, 528/89 e 704/93, D.R., II Série, de 18-3-86, 22-3-90 e
20-1-94; na doutrina, José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, reimp., Coimbra, 1981, p. 331].
E se não é uma ideia de antecipação ilegal de interposição do recurso aquela que se pretende significar com o fundamento expresso de
'extemporaneidade' - fundamento único que se afirma para não admitir este recurso para o Tribunal Constitucional - mas antes uma ideia diferente, e mesmo contrária, de que se ultrapassou o prazo de oito dias que a Lei de Processo no Tribunal Constitucional fixa para a iniciativa de recurso, haverá ainda aí de concluir-se no mesmo sentido da regularidade no tempo da sua interposição.
Na verdade, convocando a demonstração empreendida pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal 'o acórdão recorrido foi notificado por via postal ao defensor do arguido em 14 de Fevereiro de 1994 (v. cota de fls.
17, já que o carimbo do registo postal é ilegível), presumindo-se consequentemente a notificação feita no terceiro dia útil seguinte, isto é, em
17 de Fevereiro de 1994 (e não em 27 de Fevereiro de 1994, como, certamente por lapso, se pretende na reclamação de fls. 5) - pelo que o prazo de 8 dias para interpor o recurso de constitucionalidade terminaria efectivamente em 1 de Março de 1994, data em que foi apresentado na Secretaria o respectivo requerimento de interposição'.
1.3 - Mas o artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, exige, no sentido da admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional, que a decisão recorrida haja recusado a aplicação de norma (ou normas) com fundamento de inconstitucionalidade. Se bem que o Supremo Tribunal de Justiça haja decidido não receber o recurso de constitucionalidade em causa, com o argumento único de ele ser 'manifestamente extemporâneo', impõe-se, no entanto, a análise da verificação destoutros pressupostos que por lei lhe são assinalados. É que a decisão do Tribunal Constitucional sobre a reclamação faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso, assim resulta do artigo 77º, nº 4, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pelo que o controlo da regularidade da interposição do recurso haverá de ser um controlo total dos seus pressupostos
[cf. os acórdãos nºs. 276/88, 284/91 e 178/95, D.R., II Série, de 20-11-89,
24-10-91 e 21-6-95].
Retomemos, então, o contexto em que, no processo, são referidos os artigos 165º e 340º do Código de Processo Penal, em que se inscrevem as normas que, segundo a reclamação, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Fevereiro de 1994, recusou implicitamente com fundamento de inconstitucionalidade.
Os artigos 165º e 340º foram invocados pelo arguido para, em audiência, requerer a junção aos autos dos 43 documentos. Com essa junção - disse - pretendia esclarecer o contexto de sentido de um fax, o único dentre muitos, que o Ministério Público, na fase de inquérito, seleccionara para o processo e de que já requerera exibição e leitura em uma das sessões da audiência. O Ministério Público opôs-se àquela junção de documentos, junção que, assim feita na fase de julgamento e não na de inquérito ou instrução, considerava tardia e injustificada, e em violação do princípio do contraditório. Mas o juiz-presidente do tribunal colectivo haveria de deferir o requerimento por [nos termos de que dá conta o acórdão do STJ de 10 de Fevereiro de 1994]
'entender que poderiam vir a ter interesse para a decisão da causa e não resultar dos mesmos que fossem manifestamente desinteressantes ou impertinentes'. E foi esta decisão, de admitir a junção aos autos dos 43 documentos apresentados pelo arguido, que o Supremo Tribunal de Justiça revogou, no acórdão de 10 de Fevereiro de 1994.
1.4 - O primeiro recurso e o problema da recusa implícita de aplicação das normas do artigo 165º, nº 2 e do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal, com fundamento em inconstitucionalidade:
Na reclamação, argumenta-se que o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 10 de Fevereiro de 1994, recusou, implicitamente, por contrárias à Constituição, as normas dos artigos 165º, nº 2, e 340º, nº 1, do Código de Processo Penal. Ao revogar a decisão que admitira, em audiência, a junção requerida dos 43 documentos, reputando-a de inultrapassável por injustificada, aquele Supremo Tribunal afastava o princípio da verdade material e resolvia o caso em orientação única ao princípio do contraditório e da igualdade de armas no processo. E a reclamação toma como paradigmático aquele momento do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que afirma: 'o respeito pelo princípio da verdade material não prevalece, efectivamente, quando o apresentante ofereça injustificadamente documentação para além das fases de inquérito ou instrução, impedindo a contra-prova do sujeito adverso, pois que aí viola outros princípios de igual valor do processo penal, designadamente os da parificação das posições e da igualdade de 'armas' no processo'.
Atentemos, pois, nos artigos 165º e 340º do Código de Processo Penal, visto que é no quadro das suas normas que se desenvolve a questão da admissibilidade do recurso que se pretende interpor.
O artigo 165º:
Inscreve-se no Livro III do Código de Processo Penal [Da prova], Título II [Dos meios de prova], Capítulo VII [Da prova documental]. Sob a epígrafe 'Quando podem juntar-se documentos', dispõe assim:
'1 - O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.
2 - Fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para a realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a pareceres de advogados, de jurisconsultos ou de técnicos, os quais podem sempre ser juntos até ao encerramento da audiência'.
O artigo 340º:
Inscreve-se no Livro VII do Código de Processo Penal [Do julgamento], Título II [Da audiência], Capítulo III [Da produção da prova]. Sob a epígrafe 'Princípios gerais', dispõe assim:
1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
2 - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta.
3 - Sem prejuízo do disposto no artigo 328º, nº 3, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis.
4 - Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
b) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
c) O requerimento tem finalidade meramente dilatória'.
Em termos que já antes aqui se transcreveram, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Fevereiro de 1994, tomou como parâmetro a norma do artigo 165º, nº 1, do Código de Processo Penal, e empreendeu uma interpretação da mesma norma orientada aos princípios 'do contraditório' e da 'parificação do posicionamento jurídico dos sujeitos da relação de processo penal' ou da
'igualdade de 'armas' no processo'. Não chamou a esses princípios de constitucionais, que o são, não tomou, por forma expressa, os enunciados da norma do artigo 165º, nº 2, ou da norma do artigo 340º, nº 1, estas mesmas que são invocadas no primeiro recurso de constitucionalidade que se pretende interpor. Mas afirmou, em vários momentos, que o princípio do contraditório [que
é acolhido na primeira] tem um lugar ineliminável na relação de processo penal, e ponderou o princípio da verdade material [que é acolhido na segunda] para depois proceder a uma incursão nos seus limites. E, de decidir o recurso, denegou afinal uma pretensão - a de junção aos autos dos 43 documentos - que o arguido fundara justamente numa conexão existente entre os preceitos que contêm essas normas.
Mas assim, as normas do artigo 165º, nº 2, e do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal, não se mostram, à partida, estranhas aos fundamentos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Fevereiro de
1994. Delas não pode dizer-se que apresentam um conteúdo material de todo incompatível com os domínios de aplicabilidade normativa que ali se davam à solução do caso. Delas não deve, pois, desde já, dizer-se que não podiam ser recusadas porque não podiam ser aplicadas. Por isso que não é de concluir, sem mais, pelo não preenchimento dos pressupostos contidos no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional.
Impõe-se então proceder a uma análise da interpretação empreendida pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 10 de Fevereiro de 1994, no sentido de averiguar se a aplicação daquelas normas foi ali recusada, e recusada com fundamento em inconstitucionalidade.
1.5 - A norma do artigo 165º, nº 2, do Código de Processo Penal determina que, na junção de documentos, 'fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias' e constitui, assim, no direito ordinário, um momento de incidência optimizada do princípio constitucional do contraditório ou da igualdade de armas no processo.
A norma, com efeito, não distingue entre os dois momentos que se reconhecem na pretensão regulativa da norma anterior, do artigo 165º, nº 1: o do inquérito ou da instrução [o documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução] e o momento subsequente até ao encerramento da audiência [e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência]. Em qualquer caso, assim resulta do seu próprio enunciado, o artigo 165º, nº 2, garante o exercício do contraditório.
Na conexão de significado entre a norma do artigo 165º, nº 1 e a do artigo 165º, nº 2, do Código de Processo Penal e na sistemática conceptual que lhe é subjacente, não há lugar para um conflito de princípios. A primeira norma está a afirmar a possibilidade de junção de documentos ao processo, assim projectando o princípio da verdade, e também a estabelecer ditados de actuação dos sujeitos processuais. A segunda norma, do artigo 165º, nº 2, afirma a omnipresença do princípio do contraditório para a junção de documentos ao processo, e, de afirmar aquele princípio, constitui-se em norma de atribuição de competência ao tribunal para conceder à contraparte um prazo de resposta 'não superior a oito dias'.
Ambas as disposições existem em concordância objectiva, sem lugar para tensões a resolver pelo intérprete.
Não é, assim, possível afirmar que o método de interpretação empreendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 10 de Fevereiro de
1994, internaliza um procedimento argumentativo de concordância prática entre o princípio da verdade material e o princípio do contraditório, recebidos no artigo 165º do Código de Processo Penal. Seja qual for o alcance que na norma do nº 1 se atribui ao primeiro, esse alcance não interfere com a norma do nº 2, que acolhe, sem restrições, o segundo.
À partida, pois, não vale aqui uma tese de rejeição da ideia de recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, a pretender que, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, não seria em boa verdade da remoção de uma norma (ou normas) dos quadros de solução do caso que se tratava, mas antes da limitação recíproca de dois princípios em conflito, ditada por regras de concordância prática. Ou seja, da recusa afirmada na reclamação não pode dizer-se que ela é, afinal e tão-só, o resultado de um balanceamento de valores que sempre incumbe ao intérprete.
1.6 - Ponderando agora a norma do artigo 165º, nº 2, do Código de Processo Penal, que constitui um momento de incidência optimizada do princípio do contraditório em Processo Penal - e que o reclamante diz que foi recusada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Fevereiro de 1994 - logo se vê que não é logicamente possível recusar a aplicação dessa norma com arrimo naquele mesmo princípio. Nem foi esse, como está bem de ver, o procedimento argumentativo do Supremo Tribunal de Justiça.
1.7 - O Supremo Tribunal de Justiça considerou inultrapassável, por injustificada, a junção de documentos ao processo para além do momento que é referido ao decurso do inquérito ou da instrução, e revogou, por isso, a decisão que a admitira. Perante os enunciados do artigo 165º do Código de Processo Penal, quedou-se pela interpretação-aplicação da norma do nº 1. Não abriu espaço ao domínio da vida a que se dirige a pretensão regulativa da norma do artigo
165º, nº 2, que é a pretensão de contraditar, dar resposta a um dado que pré-existe. Pela mesma razão, não determinou também que fosse actuada a competência de fixação de um prazo que, em vista do contraditório, ao tribunal é cometida.
Interpretando assim a norma do artigo 165º, nº 1, do Código de Processo Penal, o Supremo Tribunal de Justiça não deu lugar às condições de operatividade do artigo 165º, nº 2. No sistema do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Fevereiro de 1994 a norma do artigo 165º, nº 2, não foi, com efeito, aplicada. Mas isso é o resultado de um procedimento interpretativo que não assenta em qualquer fundamento de inconstitucionalidade.
Porventura, a tese de recusa implícita do artigo 165º, nº 2, sustentada na reclamação, pretenderá afirmar que a inibição da produção de efeitos dessa norma [fixação de um prazo para resposta da outra parte no sentido do asseguramento do contraditório] é induzida por uma interpretação que pretende inconstitucional e não directamente referida a essa norma, que vem doutro lugar do sistema de processo penal.
A verdade é que nunca é um juízo de censura dirigido à norma, nem muito menos um juízo de censura em razão da Constituição, aquele que se retira dos fundamentos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Fevereiro de
1994. Por isso que aqui se não verificam os pressupostos do recurso de constitucionalidade a que se refere o artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
1.8 - A reclamação afirma ainda uma tese de recusa implícita de aplicação no mesmo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça da norma do artigo
340º, nº 1, do Código de Processo Penal, com fundamento em inconstitucionalidade.
A resposta à pergunta por uma eventual recusa de aplicação da norma há-de ter-se, também aqui, na lógica interna da decisão recorrida e no contexto que a suscita. Não basta, como se afirmou no acórdão nº 315/92 do Tribunal Constitucional, D.R., II Série, de 18-2-1993, 'que o tribunal recorrido proclame a aplicação ou a recusa de aplicação de uma norma para que ela se tenha por aplicada ou 'desaplicada'. É indispensável que a decisão recorrida documente a aplicação ou a recusa de aplicação em causa'.
A resposta à pergunta por uma eventual recusa de aplicação da norma do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal leva assim a uma incursão no contexto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Fevereiro de 1994, e no sistema de argumentos que desenvolve.
O acórdão denega, em via de recurso, uma pretensão do arguido de, em audiência, juntar aos autos 43 documentos, pretensão que se fundara nos artigos
165º, nº 1, e 340º, nº 1, do Código de Processo Penal [acta da sessão de
28-05-1993]. Mas não chama pelo nome do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal. Empreende uma interpretação marcadamente dirigida à norma do artigo 165º, nº 1, do mesmo Código: assenta na separação entre o momento do inquérito ou da instrução, por um lado, e o da audiência, por outro lado, e tem por inultrapassável a não justificação da junção de documentos no momento da audiência. Em nome do princípio do contraditório e dos limites que diz que esse princípio impõe ao princípio da verdade material.
E explicitando este procedimento interpretativo, o Supremo Tribunal de Justiça lembra a doutrina de Marques Ferreira ('Meios de Prova' in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 260) e contraria expressamente essa doutrina. Deixa, então, claro o sentido que atribui à norma do artigo 165º, nº 1 ['o documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência']: é o sentido de que a parte que se propõe a junção de documento para além do inquérito ou da instrução tem o ónus de alegar e provar a impossibilidade de junção em tempo. Se o não faz, e a junção tardia se mostra ou tem como injustificada, a consequência não é a de o tribunal 'admitir a junção tardia injustificada mediante a condenação do apresentante numa soma em UCs (...) por ser a que melhor se adequa ao princípio da investigação ou verdade material' (doutrina defendida por Marques Ferreira) mas a do indeferimento da junção requerida.
Uma interpretação assim afasta, com efeito, o princípio da verdade material. Não concretiza em si, como já se viu, um procedimento de concordância prática pois que, nos quadros do artigo 165º do Código de Processo Penal, não existe um conflito de princípios. Concretiza, antes, um procedimento de derivação unilinear do princípio do contraditório para os termos em que a norma do artigo 165º, nº 1, regula a junção de documentos. De proceder assim, o Supremo Tribunal de Justiça constrói uma norma do caso que não abre espaço, no momento da audiência, ao princípio da verdade material.
Mas, no sistema da lei de processo penal, o lugar de afirmação paradigmática do princípio da verdade material, para o momento da audiência, é o artigo 340º. Foi mesmo na norma do artigo 340º, nº 1, conexa com a do artigo
165º, nº 1, que o arguido fundou a pretensão de juntar aos autos os 43 documentos.
O Supremo Tribunal de Justiça, ao mandar repetir o julgamento, considerou de forma irrecusável que a junção de documentos não é irrelevante no plano da produção da prova. Denegando a prova dos 43 documentos, aquele Supremo Tribunal não pode deixar de recusar o artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal. É por esta norma que o legislador comete ao juiz o poder-dever de atender a todos os meios de prova não irrelevantes para a descoberta da verdade.
A norma do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal era norma apta para a decisão do caso. Os ditados que estabelece podiam conformar o conteúdo da norma de aplicação a criar pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 10 de Fevereiro de 1994: se bem que este acórdão não haja chamado o nome às coisas, recusou a aplicação da norma do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal.
E recusou-a com fundamento de inconstitucionalidade.
1.9 - No procedimento de argumentação do acórdão de 10 de Fevereiro de 1994, o Supremo Tribunal de Justiça retirou efectividade ao princípio da investigação ou da verdade material na fase da audiência. Fez que este princípio, que é afirmado no artigo 340º como princípio conformador da prova em audiência, não tivesse irradiação para a norma do caso. O Supremo Tribunal de Justiça orientou-se numa dimensão única - a do princípio do contraditório na dimensão da igualdade de armas - e com esse princípio marcou indelevelmente o programa da norma do artigo 165º, nº 1, do Código de Processo Penal. Esse programa já não conta com as possibilidades jurídicas do princípio da verdade material na fase da audiência: quebrou-se a articulação com o artigo 340º, nº 1.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, as normas do artigo 165º, nº 1, e do artigo 340º, nº 1 do Código de Processo Penal, deixam de ser normas que se associam numa regulação, em nome do princípio do contraditório entendido como princípio de igualdade de armas.
Mas o princípio da igualdade de armas é um princípio constitucional de processo penal. A irredutibilidade desse princípio a um debate 'nos limites da lei' decorre sempre do postulado da unidade interna da ordem jurídica em conjugação com o nível hierárquico do direito constitucional.
Assim, a recusa de aplicação da norma do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal tem de ser uma recusa com fundamento de inconstitucionalidade, na medida em que a verdade material não é tida como um princípio decisivo nessa fase, sendo aí antes o princípio do contraditório - na dimensão da igualdade de armas - o princípio regulador da prova em audiência.
De todo o modo, numa outra visão das coisas, poder-se-ia dizer que ao invocar, para afastar a aplicação do princípio da verdade material - ou seja do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal -, o princípio da igualdade de armas, sediado na lei de autorização legislativa, o acórdão recorrido reconheceu implicitamente que aquela opção se fundava num juízo de inconstitucionalidade.
É que, como este Tribunal tem afirmado (cfr. acórdão nº 492/94, D.R., II Série, de 16-12-1994), quando uma norma constante de um decreto-lei autorizado - no caso, do Código de Processo Penal - conflitua com o sentido de uma autorização legislativa, essa norma deve ser tida, ela própria, como inconstitucional.
E assim, ao fazer prevalecer a lei de autorização legislativa sobre a norma do Código de Processo Penal, o acórdão recorrido desaplicou-a com fundamento em inconstitucionalidade.
Conclui-se, então, que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
10 de Fevereiro de 1994, recusou a aplicação da norma do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal, com fundamento em inconstitucionalidade, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
2 - O segundo recurso e o problema da aplicação das normas do artigo
416º e dos artigos 407º e 427º, do Código de Processo Penal
2.1 - O segundo recurso de constitucionalidade invoca o artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e é referido ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 1994, que julgou improcedente o requerimento de arguição de nulidades suscitadas sobre o acórdão anterior, o de
10 de Fevereiro de 1994. Naquele requerimento, o arguido impugnou as normas do artigo 416º do Código de Processo Penal, e também as dos artigos 427º e 407º, do mesmo Código.
O recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, 'das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo', pressupõe a exaustão prévia dos recursos ordinários e ainda que a parte haja suscitado a questão de constitucionalidade antes da decisão recorrida e que nesta se aplique a norma (ou normas) sobre que incide a mesma questão.
Na norma do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro [e na que lhe corresponde, do artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição], a locução 'durante o processo' exprime precisamente o desiderato da suscitação na pendência da causa da questão de constitucionalidade, em termos de essa mesma questão ser tida em conta pelo tribunal que decide.
Esta ideia é, afinal, corolário da natureza e do sentido da fiscalização concreta de constitucionalidade das normas e, em especial, do recurso de parte que dela participa. Aí, a questão de constitucionalidade é uma questão incidental, em estreita relação com o 'feito submetido a julgamento'
(CRP, artº 207º), só podendo incidir sobre normas relevantes para o caso. O
'interesse pessoal na invalidação da norma' (G. Canotilho e Vital Moreira) só faz sentido e se concretiza na medida em que a parte confronte, em tempo, o tribunal que decide a causa com a controversa validade constitucional das normas que aí são convocáveis.
E é com esta leitura do sistema de controlo concreto das normas e, em particular, do enunciado do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, que o Tribunal Constitucional vem fixando o sentido da locução 'durante o processo'. Esse sentido - afirma-se em jurisprudência pacífica e reiterada - é um sentido funcional, que não formal: a inconstitucionalidade há-de ter sido suscitada não depois se haver esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria, até à extinção da instância, mas em momento em que o tribunal da causa pudesse ainda conhecer da questão (cf., entre outros, os acórdãos nºs
62/85, 90/85, 94/88, 479/89, D.R., II Série, de, respectivamente, 31-5-1985,
11-7-1985, 22-8-1988, 24-4-1992, e os acórdãos nºs 439/89 e 253/93, inéditos).
Porque é assim, porque a suscitação da inconstitucionalidade não pode ser feita 'ex post factum', ela não se constitui em regra como pressuposto de admissibilidade do recurso previsto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, quando teve lugar em incidentes pós-decisórios, como os de aclaração ou de arguição de nulidade das decisões judiciais. Em tais momentos, por princípio, já está esgotado o poder jurisdicional do juiz a quo sobre a matéria a que respeita a questão de constitucionalidade. Na verdade, como se mostrou nos acórdãos nºs. 62/85 e 90/85 (cits.), 'o pedido de aclaração de uma sentença ou acórdão ou a arguição da sua nulidade não são meios idóneos para suscitar - em vista de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional - uma questão de constitucionalidade'. É que a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui em si erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua.
O pressuposto da suscitação da questão 'durante o processo', faz, pois, recair sobre as partes o ónus de adoptarem uma estratégia processual adequada à criação da possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional.
2.2 - Analisemos, então, o quadro processual em que tem lugar este segundo recurso de constitucionalidade que se pretende interpor.
Desde logo, não está em causa o problema da exaustão prévia dos recursos ordinários, pois que o tribunal recorrido é, aqui, o Supremo Tribunal de Justiça. O que está em causa são os pressupostos da suscitação da inconstitucionalidade durante o processo e da aplicação efectiva pelo tribunal a quo das normas impugnadas.
2. 3 - O recurso de constitucionalidade e a norma do artigo 416º do Código de Processo Penal
Esta norma, que determina que 'antes de ser apresentado ao relator, o processo vai com vista ao Ministério Público junto do tribunal de recurso', foi pela primeira vez impugnada no requerimento de arguição de nulidades do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Fevereiro de 1994.
O arguido, contudo, não podia impugná-la antes de proferido esse acórdão, pois que não foi notificado do visto do Ministério Público. Em boa verdade, o que se reputa de contrário à Constituição no recurso que se pretende interpor não é a própria existência do visto, enquanto vicissitude do processo
[que, por virtude da lei, o arguido podia esperar], mas o conteúdo concreto com que, no Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público o fez propenso a agravar a posição do arguido [e desse conteúdo o arguido não podia conhecer].
Em ordem à verificação dos pressupostos do recurso de constitucionalidade do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o arguido impugnou regularmente a norma do artigo 416º do Código de Processo Penal com o sentido que reputa de contrário à Constituição. Porque o fez no seguimento do acórdão que pela primeira vez lhe deu a conhecer a aplicação daquela norma com aquele sentido e porque, constituindo a falta de notificação uma irregularidade de processo, a questão foi suscitada precisamente no requerimento de arguição de nulidades. E foi do acórdão que desatendeu este requerimento que o arguido pretendeu depois interpor recurso. Nesta vertente da suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça tem de considerar-se recorrível em razão da norma do artigo 416º do Código de Processo Penal [com a mesma linha argumentativa, cf., entre outros, os acórdãos nºs. 80/92 e 270/92, D.R., II Série, de 18-8-92 e
23-11-92]. Falta saber se a norma foi aplicada no modo em que se impugnou.
2.4 - No requerimento de arguição de nulidades, o arguido considerava que o visto do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça era, pelo próprio conteúdo, susceptível de agravar a sua situação no processo, e que isso impunha que dele fosse notificado. Porque assim não foi, porque o arguido não foi notificado desse visto, impugnava então a norma do artigo 416º do Código de Processo Penal, com aquela interpretação-aplicação que - disse - constituía irregularidade de processo e era contrária às garantias de defesa e do contraditório consagradas no artigo 32º, nºs. 1 e 5, da Constituição. E, demonstrando os concretos termos em que suscitava a questão de constitucionalidade, o arguido invocou o acórdão nº 150/93 [D.R., II Série, de
29-03-1993] e o acórdão nº 651/93 [então inédito] para lembrar que aí se decidira que a norma do artigo 416º [absolutamente idêntica à do artigo 664º do CPP de 1929] só não é inconstitucional 'interpretada no sentido de que, se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar em termos de poder agravar a posição dos réus, deve ser dada a estes a possibilidade de responderem'.
Em resposta ao requerimento de arguição de nulidades, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que se não verificava a irregularidade processual de omissão de notificação do visto do Ministério Público, nem também a inconstitucionalidade do artigo 416º do Código de Processo Penal. Fê-lo, como haveria de explicitar no despacho que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, com o fundamento de que o visto do Ministério Público em nada agravou a posição do recorrente no processo 'por se reportar a uma fase que o mesmo não atingiu'. Para o Supremo Tribunal de Justiça, a formulação do visto, não se reportando ao momento processual sobre que o arguido reclamava a notificação, tornaria indevida essa mesma notificação e, por isso, inexistente a irregularidade de processo e a inconstitucionalidade. Todavia, do visto do Ministério Público consta a seguinte passagem: 'Nada obstando ao seu conhecimento [do recurso interlocutório], requeiro que se sigam os ulteriores termos para que em conferência se julgue esse recurso, que merece provimento, o que determinará a anulação do julgamento, até porque a referida documentação constituiu também fundamento da decisão como se afere de fls. 3200 verso'. Mas daqui decorre indubitavelmente que o acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça aplicou a norma do artigo 416º do Código de Processo Penal com um sentido que se arguira de inconstitucional - o de que aquela norma não impõe a notificação do arguido para responder quando, no visto, o Ministério Público se pronuncie pela anulação de julgamento absolutório da primeira instância.
Conclui-se, pois, que a norma do artigo 416º do Código de Processo Penal foi aplicada no modo em que o arguido a impugnou.
Daí que a reclamação procede quanto a essa norma.
2.5 - O recurso de constitucionalidade e as normas dos artigos 427º e 407º do Código de Processo Penal
Também no requerimento de arguição de nulidades do acórdão de 10 de Fevereiro de 1994 o arguido impugnara as normas do artigo 427º [Recurso para a Relação] e do artigo 407º [Momento de subida], do Código de Processo Penal.
Argumentava que o Supremo Tribunal de Justiça interpretara e aplicara aquelas normas com um sentido contrário às garantias de defesa em processo penal, consagradas no artigo 32º, nºs. 1 e 2, da Constituição da República. Esse sentido - dizia - era denotado pelo facto de aquele Supremo Tribunal haver proferido a decisão do recurso interlocutório sem ligação à existência do recurso da decisão definitiva.
Manifestamente, as normas dos artigos 427º e 407º do Código de Processo Penal não foram aplicadas no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de
10 de Fevereiro de 1994, nem, pois, no acórdão que respondeu à arguição de nulidades e de que agora se pretende recorrer.
Do processo resulta que foi interposto recurso da decisão final do tribunal colectivo e resulta também que esse recurso ali foi admitido.
O Supremo Tribunal de Justiça, ao julgar o recurso interlocutório considerando o recurso da decisão final efectivamente interposto e admitido na
1ª instância, e daí derivando uma conexão de julgamentos, aplicou o artigo 432º, alíneas c) e d), do Código de Processo Penal, não os artigos 407º e 427º do mesmo Código, que regulam a competência das Relações e o momento de subida, em matéria de recursos. Estes dois preceitos não podiam ter operatividade ali onde o Supremo Tribunal de Justiça fez funcionar a regra de conexão do artigo 432º, alíneas c) e d), do Código de Processo Penal.
Foi sobre esta regra, que se realiza em primeira linha na competência do sujeito processual que interpõe o recurso ['Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça'] e do tribunal a quo que o admite, que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu o recurso interlocutório. Por isso que não é possível afirmar, como se afirma na reclamação, que o decidiu independentemente de haver recurso da decisão final.
No plano das normas dos artigos 427º e 407º do Código de Processo Penal, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não é, assim, recorrível para o Tribunal Constitucional. Essas normas não foram ali aplicadas, em ordem ao que se determina no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) - Indeferir a reclamação quanto à norma do artigo 165º, nº 2, do Código de Processo Penal;
b) - Deferir a reclamação quanto à norma do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal;
c) - Deferir a reclamação quanto à norma do artigo 416º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de não impor a notificação do arguido para responder quando, no visto, o Ministério Público se pronuncia pela anulação de julgamento absolutório da 1ª instância;
d) - Indeferir a reclamação quanto às normas dos artigos 407º e
427º, do Código de Processo Penal.
Lisboa, 17 de Abril de 1994
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa (vencido quanto à alínea b) nos termos da declaração de voto apresentada pelo Exmº Conselheiro Messias Bento)
Vitor Nunes de Almeida (vencido quanto à alínea a) pelo fundamento constante da declaração de voto do Exmº Cons. Messias Bento, a que adiro).
Guilherme da Fonseca (vencido quanto à alínea a), conforme declaração de voto junta).
1. Vencido quanto à alínea a) da decisão, pois deferiria também a reclamação relativamente à norma do artigo 165º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Não acompanho, pois, a posição do acórdão nos seus pontos 1.5, 1.6, e 1.7, quando aí se procura insatisfatoriamente averiguar se a aplicação daquela norma foi recusada, e recusada com fundamento em inconstitucionalidade, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Fevereiro de 1994, para então se concluir que 'nunca é um juízo de censura dirigido à norma, nem muito menos um juízo de censura em razão da Constituição, aquele que se retira dos fundamentos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Fevereiro de
1994'.
Partindo, e bem, o acórdão da consideração de que 'as normas do artigo 165º, nº 2, e do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal, não se mostram, à partida, estranhas aos fundamentos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Fevereiro de 1994' ('Delas não pode dizer-se que apresentam um conteúdo material de todo incompatível com os domínios de aplicabilidade normativa que ali se davam à solução do caso. Delas não deve, pois, desde já, dizer-se que não podiam ser recusadas porque não podiam ser aplicadas' - acrescenta-se ainda), o acórdão, todavia, perde-se depois num esforço argumentativo pretensamente colhido do 'método de interpretação empreendido pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 10 de Fevereiro de 1994', prescrutando nas entre linhas a perspectiva aí acolhida. Para concluir que o Supremo Tribunal de Justiça 'quedou-se pela interpretação e aplicação da norma do nº 1' e não abriu 'espaço ao domínio da vida a que se dirige a pretensão regulativa da norma do artigo 165º, nº 2, que é a pretensão de contraditar, dar resposta a um dado que pré-existe.'
'No sistema do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Fevereiro de 1994 a norma do artigo 165º, nº 2, não foi, com efeito, aplicada. Mas isso é o resultado de um procedimento interpretativo que não assenta em qualquer fundamento de inconstitucionalidade.'
É exactamente esta última afirmação do acórdão que se contesta, pois, contrariamente ao aí dito, foi recusada implicitamente a aplicação do artigo 165º, nº 2, pelo Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento em inconstitucionalidade.
É o que se segue demonstrar, ainda que muito sucintamente, acompanhando também, no essencial, a declaração de voto da Exmª Consª. Fernanda Palma.
2. O quadro normativo dos nºs 1 e 2 do artigo 165º, dispondo sobre a junção de documentos, no âmbito dos meios de prova, e em especial da prova documental, em processo penal, tem de ser lido conjugadamente entre si e com os princípios gerais reguladores da produção de prova em audiência de julgamento, consagrados no artigo 340º, relevando aqui o princípio da verdade material que decorre do seu nº 1.
Se, como se reconhece no acórdão, o nº 2 do artigo 165º 'afirma a omnipresença do princípio do contraditório para a junção de documentos ao processo', o nº 1 do mesmo artigo, como também se reconhece no acórdão, está a afirmar 'a possibilidade da junção de documentos ao processo, assim projectando o princípio da verdade' (sublinhado nosso). O que vale por dizer que as duas normas têm de ser vistas em íntima articulação e sempre que se trate de hipótese de requerimento de junção de documentos - e é este o caso sub judício, com invocação dos artigos 165º e 340º, em audiência de julgamento - os princípios de que se serviu o Supremo Tribunal de Justiça, seja o 'do contraditório', seja o da 'parificação do posicionamento jurídico dos sujeitos de relação de processo penal' ou da 'igualdade de 'armas' no processo', não podem dissociar-se do princípio da verdade material, pois que este, como eixo central da principiologia, acaba sempre por projectar-se naqueles. Sendo em nome de tal princípio que a junção de documentos é requerida e deferida em primeira instância, desencadeando-se depois o funcionamento dos outros aludidos princípios, se essa junção é recusada todas eles deixaram de ser aplicados, seja uma recusa explícita, seja só implícita, como aqui se verifica.
Por consequência, a demonstração cabal que é feita no acórdão de que o Supremo Tribunal de Justiça considerou inconstitucional, de forma implícita, a norma do nº 1 do artigo 340º, pode transpor-se para o plano do nº 2 do artigo
165º, tendo de reconhecer-se que, ao desaplicar aquele º 1, o Supremo desaplicou igualmente o nº 2 do artigo 165º.
Bravo Serra (vencido quanto à alínea b), pelos fundamentos da declaração de voto subscrita pelo Exmº Conselheiro Messias Bento)
Armindo Ribeiro Mendes (vencido quanto à alínea a), nos termos da declaração de voto junta)
Fernando Alves Correia (vencido quanto à alínea b), pelos fundamentos da declaração de voto do Exmº Conselheiro Messias Bento) Antero Alves Monteiro Diniz (vencido quanto à alínea b), nos termos da declaração de voto agora junta)
1 - Dissentindo da posição que fez vencimento no acórdão, pronunciei-me no sentido do indeferimento da reclamação na parte respeitante à norma do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal.
E tanto, com base nas razões que a seguir se deixam sumariamente expostas.
2 - Muito embora a recusa de aplicação de uma dada norma, com fundamento em inconstitucionalidade, não careça de ser expressamente assumida por parte da decisão em causa, bastando que a desaplicação assuma forma implícita, a jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal sempre tem exigido que para se poder ter por verificada tal rejeição há-de resultar da própria decisão impugnada 'inequivocamente, a expressão de um juízo negativo sobre a conformidade constitucional da aludida norma' (cfr. por todos, o acórdão nº 429/89, Diário da República, II Série, de 21 de Setembro de 1989).
Ora, não é possível extrair do acórdão recorrido e da linha de fundamentação ali desenvolvida que a aplicação da norma do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal haja ali sido explícita ou implícitamente recusada, devendo, ao contrário, afirmar-se que foi ela ali objectivamente aplicada.
Vejamos porquê.
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3 - Importa reter o essencial do acórdão recorrido na parte respeitante a esta matéria.
Escreveu-se assim:
'O processo penal vigente caracteriza-se por uma filosofia de parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os seus actos e de igualdade material de 'armas' no processo [artigo 2º, nº 2, al.3), da lei de autorização legislativa nº 43/86, de 26.9.1986].
O arguido violou, no entanto, estes princípios da parificação processual e da igualdade de meios e argumentos, colocando o MINISTÉRIO PÚBLICO na desvantajosa situação de não mais poder responder à documentação apresentada pela sua defesa. Por isso se discorda da opinião de MARQUES FERREIRA ('Meios de Prova', in 'Jornadas de Direito Processual Penal' pag. 260), que admite a possibilidade de junção tardia e injustificada, mediante uma simples condenação do apresentante em taxa de justiça. O respeito pelo princípio da verdade material não prevalece, efectivamente, quando o apresentante ofereça injustificadamente documentação para além das fases de inquérito ou instrução, impedindo a contra-prova do sujeito adverso, pois que aí viola outros princípios de igual valor do processo penal, designadamente os da parificação das posições e da igualdade de 'armas' no processo.
Não oferecendo o documento no decurso do inquérito ou da instrução, ao apresentante tardio competirá então o ónus de alegar e provar a impossibilidade tempestiva da apresentação, sob pena de extemporaneidade e de o documento não poder ser admitido.
O princípio da verdade material - como todas as normas da vida humana em sociedade - não tem carácter absoluto. A sua aplicação tem regras e limites, definidos pelas fronteiras de outros princípios igualmente válidos e presentes no processo penal.
A admissão de documentos retardados - deliberadamente ou mesmo sem tal propósito - pode ofender os princípios, acima referidos, da parificação do posicionamento dos sujeitos e da igualdade de meios e argumentos da relação processual e foi o que neste caso se passou, onde o MINISTÉRIO PÚBLICO se viu desarmado perante a surpresa de uma oferta de documentos da defesa, numa altura em que já não lhe era possível a resposta adequada'.
4 - A posição que veio a lograr vencimento extraiu desta retórica argumentativa duas distintas conclusões:
a) O acórdão recorrido 'retirou efectividade ao princípio da investigação ou da verdade material na fase da audiência. Fez que este princípio, que é afirmado no artigo 340º como princípio conformador da prova em audiência, não tivesse irradiação para a norma do caso'
Em tal decisão 'as normas do artigo 165º, nº 1, e do artigo 340º, nº
1, do Código de Processo Penal, deixam de ser normas que se associam numa regulação, em nome do princípio do contraditório entendido como princípio de igualdade de armas'.
E, na decorrência deste entendimento, conclui-se que 'a recusa de aplicação da norma do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal tem de ser uma recusa com fundamento de inconstitucionalidade, na medida em que a verdade material não é tida como um princípio decisivo nessa fase, sendo aí antes o princípio do contraditíorio - na dimensão de igualdade de 'armas' - o princípio regulador da prova em audiência'.
b) Por outro lado,'ao invocar, para afastar a aplicação do princípio da verdade material - ou seja do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal
-, o princípio da igualdade de armas, sediado na lei de autorização legislativa, o acórdão recorrido reconheceu implicitamente que aquela opção se fundava num juízo de inconstitucionalidade'.
E assim, 'ao fazer prevalecer a lei de autorização legislativa sobre a norma do Código de Processo Penal, o acórdão recorrido desaplicou-a com fundamento em inconstitucionalidade'.
Nenhuma destas conclusões, nas quais veio a repousar a decisão que concedeu deferimento à reclamação, dispõe de adequado suporte jurídico-material.
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5 - A literalidade do acórdão recorrido e o sentido e alcance que se extrai da respectiva fundamentação consentem a afirmação de que, como suporte normativo, se fez ali apelo, além do mais, à norma do artigo 165º, nº 1 do Código de Processo Penal que rege sobre a junção de documentos e ao princípio da verdade material do qual se contém um afloramento na norma do artigo 340º, nº 1, do mesmo diploma.
E, da apreciação e interpretação conjugada destas referências normativas extraiu-se no aresto a seguinte doutrina: a junção de documentos na audiência acha-se condicionada pela exigência prévia de o seu conhecimento se afirmar necessário à descoberta da verdade, ao que acresce o ónus impendente sobre o apresentante de alegar e provar não lhe ter sido possível o seu oferecimento na fase do inquérito ou da instrução.
No desencadear da fundamentação que conduziu à definição de tal entendimento, afirmou-se, é certo, que a aplicação do princípio da verdade material não se apresenta com um 'valor absoluto', sem regras nem limites,
'confinando com as fronteiras dos princípios da parificação do posicionamento jurídico dos sujeitos da relação de processo penal e da igualdade material de
'armas' no processo'.
Mas, não é legítimo extrair deste enfoque argumentativo, nem dos desenvolvimentos descursivos que o completaram, uma recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma do artigo 340, nº 1.
A não admissão dos documentos apresentados pelo arguido no decurso da audiência, ficou a dever-se à inverificação de razão atendível para uma junção extemporânea, sendo que tal decisão não pressupõe, directa ou indirectamente, explícita ou implícitamente, a inutilização do princípio da verdade material.
Com efeito, da interpretação dos princípios rectores do processo penal a que se alude no acórdão - 'verdade material' e 'parificação do posicionamento dos sujeitos e da igualdade de meios e argumentos da relação processual' - extraiu-se a orientação de que a produção de prova documental na audiência, sem postergar o poder dever de descoberta da verdade material, há-de ater-se à disciplina processual decorrente daqueles outros princípios.
O princípio da verdade material não foi entendido em termos absolutos, sendo articulado e condicionado conjugadamente com outros princípios essenciais do processo penal; mas não pode afirmar-se que o mesmo princípio e a norma que o traduz foram recusadas, com fundamento em inconstitucionalidade.
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6 - Do mesmo modo, não se tem por aceitável a conclusão de que o acórdão recorrido invocou o princípio da igualdade de armas sediado na Lei nº 43/86, de
26 de Setembro (Autorização legislativa em matéria de processo penal), para afastar a aplicação do princípio da verdade material, isto é, para recusar a norma do artigo 340º, nº 1, por inconstitucionalidade.
A alusão que ali se faz 'à filosofia de parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa de todos os seus actos e de igualdade material de 'armas' no processo', transcrevendo-se para tanto, não integralmente aliás, a formulação contida no artigo 2º, nº 2, 3) da autorização legislativa, no qual se define o sentido e extensão da lei delegante, traduziu-se tão somente no propósito de destacar um princípio geral de conteúdo doutrinário (utilizando-se para tanto os dizeres ali vertidos), sem representar qualquer específica rejeição da lei delegada e do seu artigo 340º, nº 1, ou do princípio que nele se contém.
Não existe no acórdão recorrido qualquer referência ou simples sugestão que, mesmo implícitamente, possa ser entendida e interpretada em termos de ali se ter rejeitado a aplicação do princípio da verdade material através da invocação, como norma prevalecente, daquele preceito da lei de autorização legislativa.
Na decorrência do exposto, tendo por inverificado um dos requisitos indispensáveis à admissibilidade do recurso, votei no sentido do indeferimento da reclamação na parte respeitante à norma do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal.
Messias Bento (vencido quanto à alínea b) da decisão, nos termos da declaração de voto junta)
Contrariamente à posição que fez vencimento, entendi que a reclamação, enquanto visa o recebimento do recurso tendo por objecto a questão de constitucionalidade da norma do artigo 340º, nº 1, do Código do Processo Penal, devia ter sido indeferida.
É que, ao invés da conclusão a que se chegou, entendi que o acórdão recorrido aplicou aquele artigo 340º, nº 1.
As razões por que assim entendi são as seguintes:
1. O Supremo Tribunal de Justiça ordenou o desentranhamento de 43 documentos que, a pedido do ora reclamante, tinham sido juntos na audiência de julgamento ao abrigo do disposto nos artigos 165º, nº 1, e 340º, nº 1, do Código de Processo Penal. Fê-lo com fundamento em que o reclamante, ao requerer tal junção naquela fase do processo, não alegou, nem provou que a não tinha podido fazer antes.
Significa isto que o Supremo, tendo que lidar com o artigo 165º, nº
1, do Código de Processo Penal - que dispõe que o documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência - e com o artigo 340º, nº 1, do mesmo Código - que prescreve que o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa - interpretou-os nos termos seguintes: a prova documental deve, em regra, ser produzida no decurso do inquérito ou da instrução, só podendo sê-lo mais tarde ('até ao encerramento da audiência'), se a junção dos documentos não puder ser feita naquelas fases processuais, tendo o requerente, neste caso, o ónus de alegar e provar que a não pôde fazer antes.
Ou seja: o Supremo Tribunal de Justiça aplicou o artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal com o sentido de que, na audiência, o tribunal só deve deferir o pedido de junção de documentos, se estes se lhe afigurarem necessários 'à descoberta da verdade e à boa decisão da causa' e o seu apresentante alegar e provar que não pôde proceder à sua junção durante o inquérito ou no decurso da instrução.
O Supremo entendeu, assim, que, para determinar o sentido deste artigo 340º, nº 1, o intérprete tem que conjugá-lo com o também citado artigo
165º, nº 1. Daí a referência expressa que faz a este último preceito, a contrastar com o silêncio que guarda quanto ao artigo 340º, nº 1 - norma que, estando em causa a fase da audiência, a resolução do caso logo convocava.
Para apurar um tal sentido, o Supremo fez apelo ao princípio da verdade material (a que está endereçado o citado artigo 340º, nº 1) e ao princípio da igualdade de tratamento dos sujeitos processuais (igualdade de armas), que postula a observância da regra do contraditório, designadamente quando se juntam documentos ao processo: fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a 8 dias - prescreve o nº 2 do referido artigo 165º.
Na verdade, escreveu-se, a dado passo do acórdão recorrido: O respeito pelo princípio da verdade material não prevalece, efectivamente, quando o apresentante ofereça injustificadamente documentação para além das fases de inquérito ou instrução, impedindo a contraprova do sujeito adverso, pois que aí viola outros princípios de igual valor do processo penal, designadamente os da parificação das posições e da igualdade de 'armas' no processo.
Insiste-se, pois: o Supremo Tribunal de Justiça considerou aplicáveis na fase de audiência de julgamento, tanto o artigo 165º, nº 1, como o artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal - e aplicou ambos, extraindo deles um sentido (o sentido que atrás se apontou) que é o que, em seu entender, realiza a concordância prática daqueles princípios.
2. Sustenta, porém, a maioria do Tribunal que o Supremo Tribunal de Justiça, ao adoptar uma tal interpretação, recusou aplicação àquele artigo 340º, nº 1 - e 'recusou-a com fundamento de inconstitucionalidade'.
É que, em seu entender, o Supremo 'empreende[u] uma interpretação marcadamente dirigida à norma do artigo 165º, nº 1, do mesmo Código': no acórdão recorrido, 'as normas do artigo 165º, nº 1, e do artigo
340º, nº 1, do Código de Processo Penal deixam de ser normas que se associam numa regulação, em nome do princípio do contraditório entendido como princípio de igualdade de armas'.
De facto - acrescenta-se -, se, 'no sistema da lei de processo penal, o lugar de afirmação paradigmática do princípio da verdade material, para o momento da audiência, é o artigo 340º', então, 'denegando a prova dos 43 documentos, aquele Supremo Tribunal não pode deixar de recusar o artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal'; e essa recusa de aplicação 'tem de ser uma recusa com fundamento em inconstitucionalidade, na medida em que a verdade material não é tida como um princípio nesta fase, sendo aí antes o princípio do contraditório - na dimensão da igualdade de armas - o princípio regulador da prova em audiência'. E à mesma conclusão se chega - diz-se - quando se considere que, 'ao invocar, para afastar a aplicação do princípio da verdade material - ou seja do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal -, o princípio da igualdade de armas, sediado na lei de autorização legislativa, o acórdão reconheceu implicitamente que aquela opção se fundava num juízo de inconstitucionalidade' - ou seja: 'ao fazer prevalecer a lei de autorização legislativa sobre a norma do Código de Processo Penal, o acórdão recorrido desaplicou-a com fundamento em inconstitucionalidade'.
3. Simplesmente - e começando por este último ponto -, nada há no texto do acórdão recorrido que permita a afirmação de que se fez prevalecer a lei de autorização legislativa sobre a norma do Código de Processo Penal ou de que se apelou ao princípio da igualdade de armas, nela sediado, para afastar a aplicação do princípio da verdade material - é dizer do artigo 340º, nº 1, do mesmo Código.
A lei de autorização legislativa foi convocada pelo Supremo para o fim exclusivo de caracterizar o processo penal vigente.
Escreveu-se, com efeito, a propósito: O processo penal vigente caracteriza-se por uma filosofia de parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os seus actos e de igualdade material de 'armas' no processo (artigo 2º, nº 2, alínea 3) da Lei de autorização legislativa nº 43/86, de 26-9-1986).
Por outro lado, do facto de o Supremo Tribunal de Justiça ter denegado 'a prova dos 43 documentos', não é legítimo extrair a conclusão de que ele recusou aplicação do artigo 340º, nº 1, e que o fez com fundamento em inconstitucionalidade, na 'medida em que a verdade material' - que tem o seu lugar de 'afirmação paradigmática' naquele artigo 340º, nº 1 - 'não é tida como um princípio nesta fase'.
É que, do texto do acórdão, não pode extrair-se a ideia de que 'a verdade material não [seja] tida [pelo Supremo] como um princípio nesta fase'. O que nele tão-só se diz é que há que procurar a verdade material sem postergar outros princípios que enformam igualmente o processo penal, quais sejam o da 'parificação do posicionamento dos sujeitos e da igualdade de meios e argumentos da relação processual'. E, para que estes princípios não sejam conculcados no processo, necessário é - diz o acórdão - que o apresentante de documentos que requerer a sua junção depois de findo o inquérito ou a instrução alegue e prove que os não pôde juntar antes.
Escreveu-se, no acórdão recorrido, a este propósito, o seguinte: Não oferecendo o documento no decurso do inquérito ou da instrução, ao apresentante tardio competirá então o ónus de alegar e provar a impossibilidade tempestiva da apresentação sob pena de extemporaneidade e de o documento não poder ser admitido. O princípio da verdade material - como todas as normas da vida humana em sociedade - não tem carácter absoluto. A sua aplicação tem regras e limites, definidos pelas fronteiras de outros princípios igualmente válidos e presentes no processo penal. A admissão de documentos retardados - deliberadamente ou mesmo sem tal propósito
- pode ofender os princípios, acima referidos, da parificação do posicionamento dos sujeitos e da igualdade de meios e argumentos da relação processual [...].
Este Tribunal só pode concluir pela desaplicação de uma norma legal com fundamento na sua inconstitucionalidade, mesmo que implícita, se, do discurso da decisão recorrida, se puder retirar, ao menos, a aparência de um juízo de inconstitucionalidade.
Tal, porém, não acontece no caso, como se mostrou.
Não tendo havido desaplicação, sequer implícita, do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal, com fundamento em inconstitucionalidade, não se verificam os pressupostos do recurso da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, que é o que, no caso, foi interposto.
Por isso, como comecei por afirmar, devia a reclamação indeferir-se nesta parte.
4. Pode, claro é, pretender-se que a interpretação adoptada pelo acórdão recorrido é uma interpretação inconstitucional, por não realizar, em medida satisfatória, os princípios constitucionais - e legais - que atrás se indicaram, antes sacrificando o princípio da verdade material nas aras do princípio da igualdade de armas: 'uma interpretação assim afasta, com efeito, o princípio da verdade material. Não concretiza em si [...] um procedimento de concordância prática [...]' - sustenta a posição que fez vencimento.
Só que, se acaso assim for, o recurso que, então, devia ter-se interposto (suposto, obviamente, que se verificavam os respectivos pressupostos) era o da alínea b) - e não o da alínea a) - do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Eis, pois, em síntese, por que discordei da posição que fez vencimento neste ponto.
Maria Fernanda Palma (vencida quanto à alínea a), nos termos de declaração de voto junta).
Discordei da decisão proferida no Acórdão no que respeita à alínea a).
Entendo, diferentemente do que foi sustentado pela maioria do Tribunal, que o reclamante tem razão quando sustenta que foi desaplicada, de forma implícita, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma do nº 2 do artigo 165º do Código de Processo Penal.
Não tendo o Acórdão do Tribunal Constitucional negado que se verificou uma 'desaplicação' daquela norma, sustenta, todavia, que tal desaplicação é apenas o resultado de um procedimento interpretativo do Supremo Tribunal de Justiça - que não assenta em qualquer fundamento de inconstitucionalidade e que não é nunca um juízo de censura à norma com fundamento na Constituição.
Ora o preceito contido no artigo 165º, nº 2, do Código de Processo Penal prevê o seguinte:
'Fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias.'
É, como se verifica, uma norma incompleta, cujo pressuposto é o estipulado no artigo 165º, nº 1, do Código de Processo Penal, o qual admite que os documentos que não forem juntos no decurso do inquérito ou da instrução (em caso de não ser possível) devem sê-lo até ao encerramento do inquérito.
Todavia, o nº 2 do artigo 165º, apesar da sua dependência da verificação factual de situações previstas no nº 1, tem uma substância normativa que, por si, permite delimitar o seu próprio âmbito do nº 1 e interpretá-lo de acordo com os princípios do processo penal. A essência normativa do nº 2 do artigo 165º é garantir o contraditório no terreno de actuação processual consentido pelo princípio da 'verdade material', permitindo desvendar o próprio sentido último do nº 1.
Assim, a junção de documentos deve, em princípio, contribuir para a fixação do thema decidendi numa fase anterior, mas se tal não for possível, deverá ser admitida em nome da 'verdade material' e da plenitude das garantias de defesa ulteriormente, sem que haja qualquer afectação do contraditório.
Na realidade, a não admissibilidade, em absoluto, da entrega tardia dos documentos apenas se justificaria pela predominância absoluta de um princípio da 'igualdade de armas' inerente a um processo penal de partes. A admissibilidade da entrega tardia com respeito pelo contraditório é, inversamente, a mera mitigação de um valor absoluto do princípio da verdade material.
Quando se 'desaplicou', no caso, o artigo 165º, nºs 1 e 2 entendeu-se que a procura da 'verdade material' com respeito pelo contraditório não correspondia suficientemente à garantia constitucional de 'igualdade de armas', como matriz constitucional da estrutura processual penal.
A desaplicação do artigo 165º, nº 1, é, deste modo, uma decisão que abrange globalmente o nº 2 e as respectivas relações com o princípio da 'verdade material', vertido no artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal. A norma desaplicada, para além dos concretos preceitos legais cuja interpretação não se concretizou no caso, é a norma global dos nºs 1 e 2 do artigo 165º e nº 1 do artigo 340º do Código de Processo Penal.
O Supremo Tribunal de Justiça não fez desencadear, no caso concreto, o expediente do nº 2 do artigo 165º porque entendeu que ele não asseguraria o que entende como ditame constitucional da 'igualdade de armas' (inscrito pelo menos na lei de autorização legislativa), não sendo suficiente para evitar uma predominância ilimitada, ilegítima constitucionalmente, do princípio da 'verdade material'.
Poderá, por isso, concluir-se que é essa concepção da articulação constitucional dos princípios que leva o Supremo Tribunal de Justiça a considerar inaplicável o artigo 165º, nº 2, e não uma simples interpretação restritiva do artigo 165º, nº 1. Na realidade, a interpretação do artigo 165º, nº 1, que impede a aplicação do nº 2, é, em si mesma, uma interpretação justificada por uma certa conjugação de valores constitucionais, em que a posição atribuída ao contraditório pelo nº 2 do artigo 165 tem um papel decisivo.
Por conseguinte, entendo que o Supremo Tribunal de Justiça também recusou a aplicação do artigo 165º, nº 2, do Código de Processo Penal e que o Tribunal Constitucional deveria ter admitido o recurso de constitucionalidade quanto a essa norma.
José de Sousa e Brito (vencido quanto à alínea a), nos termos da declaração de voto junta) Declaração de Voto
1 - Não acompanhei a solução propugnada pelo acórdão no que toca
`alínea a) da sua conclusão.
Indicarei as razões da minha discordância relativamente
à solução que fez vencimento.
2 - O ora reclamante sustentou que haviam sido desaplicadas, de forma implícita, com fundamento em inconstitucionalidade, as normas do nº 2 do artigo 166º e do nº 1 do artigo 340º do Código de Processo Penal, tendo por tal motivo interposto recurso de constitucionalidade, nos termos da alínea a) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Esse recurso não foi admitido. Daí a presente reclamação.
Logrou vencimento a posição da relatora, apresentada no seu projecto, de que apenas havia sido desaplicado, com fundamento em inconstitucionalidade, o disposto no nº 1 do artigo 340º, razão por que foi deferida a reclamação, mas apenas quanto a essa norma.
Muito embora acompanhe a tese maioritária quanto à recusa de aplicação do nº 1 do artigo 340º pelo acórdão recorrido, entendo que houve igualmente recusa de aplicação do nº 2 do artigo 165º com fundamento num juízo de inconstitucionalidade.
Vejamos porquê.
3 - Como se refere no presente acórdão, os artigos 165º e 340º do Código de Processo Penal foram invocados pelo arguido para, em audiência de julgamento no tribunal criminal de 1ª instância, «requerer a junção aos autos dos 43 documentos. Com essa junção - disse - pretendia esclarecer o contexto de sentido de um fax, o único de entre muitos que o Ministério Público, na fase de inquérito, seleccionara para o processo e de que já requerera exibição e leitura em uma das sessões da audiência» (ponto II, nº 1.3, do acórdão). Este pedido foi deferido pelo juiz presidente do tribunal colectivo, seguramente por ter entendido que esses documentos eram relevantes para a descoberta da verdade.
O Supremo Tribunal de Justiça veio a anular a decisão absolutória proferida em 1ª instância em virtude de ter anulado o processado a partir do deferimento da junção desses documentos, que reputou de ilegal.
Para tal, entendeu que o arguido havia violado os
«princípios da parificação processual e da igualdade de meios e argumentos, colocando o Ministério Público na desvantajosa situação de não mais poder responder à documentação apresentada pela sua defesa».
4 - Entendo que, ao assim decidir, o Supremo Tribunal de Justiça considerou inconstitucional, de forma implícita, não só a norma do nº 1 do artigo 340º do Código de Processo Penal (como se demonstra iniludivelmente no presente acórdão) mas também o nº 2 artigo 165º do mesmo diploma.
De facto, nesta norma estabelece-se, com referência ao número anterior, que tendo sido junto aos autos documento até ao encerramento da audiência, por não ter sido possível juntá-lo no decurso do inquérito ou da instrução, «fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias».
O discurso do acórdão recorrido parece apontar para a recusa da aplicação desta norma, por entender (implicitamente) que não dá suficientes garantias de contradição, nomeadamente quando a junção de documentos
é requerida pelo arguido e o Ministério Público se vê confrontado com a apresentação tardia de documentos relevantes, que põem em causa a tese da acusação, em primeira linha, e - ao que se diz no acórdão recorrido - a estrutura acusatória do processo penal, a parificação processual e a igualdade de meios e argumentos. Daí a afirmação feita no acórdão recorrido de que «o respeito pelo princípio da verdade material não prevalece, efectivamente, quando o apresentante ofereça injustificadamente documentação para além das fases de inquérito ou instrução, impedindo a contraprova do sujeito adverso, pois que aí viola outros princípios de igual valor do processo penal, designadamente os da parificação das posições e da igualdade de 'armas' no processo». Deve acentuar-se que o Supremo não distingue entre os sujeitos processuais, tratando do mesmo modo a acusação e a defesa.
Parece-me seguro que o Supremo Tribunal de Justiça se recusou a aplicar o nº 2 do artigo 165º do Código de Processo Penal com fundamento em que tal norma do decreto-lei autorizado contrariava a lei de autorização legislativa [artigo 2º,nº 2, alínea 3), da Lei nº 43/86, de 26 de Setembro], sofrendo por isso de inconstitucionalidade orgânica (cf. artigo 168º, nº 2 da Constituição).
5 - Na tese que logrou vencimento, o Supremo Tribunal de Justiça ter-se-ia quedado pela «interpretação-aplicação da norma do nº 1 (artigo 165º do Código de Processo Penal)», não tendo aberto «espaço ao domínio da vida a que se dirige a pretensão regulativa da norma do artigo 165, nº 2 que é pretensão de contraditar, dar resposta a um dado que preexiste» (ponto II, nº 1.7) não se encontrando qualquer indício de que houvesse um juízo de censura constitucional
àquela norma.
Não teria, assim, chegado a haver desaplicação do nº 2 do artigo 165º do Código de Processo Penal, sendo mesmo logicamente impossível ocorrer tal desaplicação, visto o nº 1 do artigo ter sido aplicado em determinado segmento.
6 - Não me parece que a interpretação feita pela tese maioritária sobre o sentido do acórdão recorrido seja a mais correcta, traduzindo de forma cabal o raciocínio judicial ali desenvolvido.
Não obstante o Supremo Tribunal de Justiça ter entendido que o arguido - sobre quem recaía esse ónus - não havia feito prova da impossibilidade de junção dos documentos na fase de inquérito ou de instrução, parece-me claro que, ao desaplicar o nº 1 do artigo 340º do Código de Processo Penal, desaplicou igualmente o nº 2 do artigo 165º do mesmo diploma, pois, mesmo a considerar-se que o juiz devia determinar a junção oficiosa de documentos relevantes para a descoberta da verdade, o Supremo entendeu que o contraditório aí previsto era insuficiente e que desequilibrava o princípio constitucional e legal (isto é, da lei de autorização legislativa) de «parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os seus actos e de igualdade 'material' de armas no processo» (este entendimento do Supremo, acrescente-se parece afastar-se da jurisprudência firmada no domínio do Código de Processo Penal de 1929 sobre a compatibilização das normas paralelas contidas nos seus artigos 404º e 443º, visto se entender que este último artigo corporizava um afloramento do princípio da verdade material que domina o processo penal, havendo de respeitar-se sempre a contraditoriedade, por não ser admissível que a outra parte fosse colocada perante uma surpresa - cf., entre muitos, os Acórdãos do mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de
1969 e de 28 de Fevereiro de 1973, in Boletim do Ministério da Justiça nºs 183, pp. 171 e seguintes, e 224, pp. 119 e seguintes; o mesmo entendimento afasta-se ainda da solução acolhida para a junção tardia de documentos na audiência de julgamento em processo civil no nº 2 do artigo 523º do respectivo Código, solução que Marques Ferreira preconiza que se aplique em processo penal, mas que o acórdão recorrido afastou expressis verbis, nesse ponto com o apoio doutrinal
(cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, Lisboa, 1993, pp. 160 e 161).
7 - Estas as razões por que teria igualmente deferido a reclamação quanto à não admissão do recurso de constitucionalidade referente à desaplicação do nº 2 do artigo 165º do Código de Processo Penal.
Sousa e Brito e Armindo Ribeiro Mendes
Luis Nunes de Almeida