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Proc. nº 279/95
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A. intentou, na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, recurso directo de anulação do despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que indeferiu o recurso hierárquico necessário por ele interposto da sua exclusão do concurso documental para provimento de vagas nos quadros de despachantes oficiais.
Alegou o recorrente que o acto de exclusão se encontrava ferido do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos, e ainda que a sua exclusão configurou violação dos princípios consignados nos artigos 13º e 277º, nº 1 (na versão ao tempo em vigor) da Constituição da República Portuguesa, o que configura vício de violação de lei constitucional.
Considerou o recorrente, na sua petição, que, tendo obtido em Moçambique a classificação de 12,3 valores no exame para despachante oficial, detém aprovação nos exames de habilitação exigidos para a nomeação dos despachantes oficiais das ex-colónias, nos termos do respectivo Estatuto (constante do Decreto nº 43.999, de 29 de Setembro de 1960). Assim, terão sido admitidos no concurso candidatos com qualificações qualitativamente inferiores às suas, já que, nos termos do aviso do mesmo (constante do Diário da República, II Série, nº 16, de 19.01.89), 'poderão concorrer os despachantes oficiais de outros quadros, os ajudantes de despachantes oficiais, os despachantes privativos e os agentes aduaneiros que possuam aprovação no exame de provas públicas a que se refere o artigo 441º da mencionada Reforma [Reforma Aduaneira, constante do Decreto-Lei nº 46311, de 27.4.65, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 513-F1/79, de 27.12], bem como todos aqueles que no referido exame obtiveram na prova escrita nota igual ou superior a oito valores'.
Em alegações, veio ainda invocar a inexistência jurídica do acto consubstanciado na acta do júri do concurso.
2. Por acórdão de 4 de Dezembro de 1990, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, por a situação do recorrente, patentemente, não ser igual à dos restantes candidatos, pelo que entendeu que o acto do júri que o excluiu não violou qualquer dos preceitos legais aplicáveis, nomeadamente os artigos 440º, 441º e 450º da Reforma Aduaneira.
É que o recorrente apenas se encontrava habilitado com o exame para despachante oficial, feito em Moçambique, e a sua situação era a de ajudante de despachante oficial. Ora, as disposições referidas diferenciavam esta situação da dos despachantes: enquanto, para estes, se admitia a possibilidade de se socorrerem das classificações obtidas nas ex-colónias, para aqueles - ajudantes de despachante, como o recorrente - excluía-se tal possibilidade, exigindo-se o exame de provas públicas, que o recorrente não possuía. Não estando o recorrente, pois, em igualdade de circunstâncias com os restantes candidatos, não se verificou qualquer discriminação ou violação do princípio da igualdade.
3. Desta decisão foi interposto recurso para o Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, tendo vindo o recorrente, nas suas alegações, a invocar a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 441º, 439º e 450º da Reforma Aduaneira, na interpretação dos mesmos feita pelo STA no acórdão recorrido, por violação do artigo 13º da Constituição.
Na sequência do acórdão do Pleno da Secção que lhe negou provimento ao recurso, interpôs então recurso para este Tribunal, com fundamento na invocada inconstitucionalidade das mencionadas normas , mas referindo o artigo 440º, e já não o artigo 439º, daquele mesmo diploma legal. Conclui as suas alegações pela forma seguinte:
1 - O Recorrente obteve, em Moçambique, aprovação no exame de despachante oficial, o que quer dizer que tem 'aprovação nos exames de habilitação que eram exigidos para a nomeação dos despachantes oficiais das ex-colónias, nos termos do artº 379º do Estatuto Orgânico das Alfândegas do Ultramar, aprovado pelo Decreto nº 43199, de 29 de Setembro de 1960, ou legislação por ele revogada, designadamente o artº 387º do Estatuto Orgânico aprovado pelo Decreto nº 31105, de 15 de Janeiro de 1941', para seguir a formulação do artº 450º, § 3º, da Reforma Aduaneira (na sua actual redacção).
2 - Esta situação é essencialmente igual ou semelhante (senão mesmo qualitativamente superior) à dos candidatos admitidos, aprovados e providos no 'concurso documental...para provimento das vagas...existentes nos diversos quadros de despachantes oficiais, nos termos dos artºs 439º e 450º da Reforma Aduaneira...' aberto por 'aviso' publica- do no D.R., II Série, nº 16, de 19/1/89 (conforme a 'rectificação' publicada no D.R., II Série, nº 28, de
2/2/89).
3 - Assim, 'ex vi' do 'princípio da igualdade', enquanto este reclama que 'recebam tratamento semelhante os que se acham em condições semelhantes', não poderia ter sido 'excluído'.
4 - Deste modo, os normativos em que o douto acórdão sob recurso se funda (e que se se bem surpreende são os artºs 440º, 441º e 450º da Reforma Aduaneira, redacção do Decreto-Lei nº 513-F1/79) são, na interpretação e aplicação deles feita, inconstitucionais por violação do referido 'princípio da igualdade' consagrado no artº 13º da C.R.P..
Nas suas contra-alegações, o Secretário de Estado recorrido sustentou a confirmação do acórdão proferido no tribunal a quo e a improcedência do recurso.
4. Corridos os vistos, cumpre, então, decidir.
II - FUNDAMENTOS
5. As normas cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada são as constantes dos artigos 440º, 441º e
450º do Decreto-Lei nº 46311, de 27 de Abril de 1965, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 513-F1/79, de 27 de Dezembro.
Antes de mais, cumpre assinalar que o recorrente sindicara inicialmente a constitucionalidade das normas constantes dos artigos 439º, 441º e 450º daquele diploma, e que só no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal veio a sindicar a norma do artigo
440º, deixando então de referir aquele artigo 439º.
Faltam, pois, manifestamente, os pressupostos de admissibilidade do recurso quanto às normas constantes dos artigos 439º e 440º.
Com efeito, o presente recurso é interposto nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional. Assim, só pode ter por objecto normas cuja inconstitucionalidade o recorrente tenha suscitado durante o processo.
Ora, desde logo, como resulta do exposto, o recorrente não suscitou durante o processo a questão da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 440º da Reforma Aduaneira, só referindo tal norma no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, ou seja, já após proferido o acórdão recorrido - isto é, quando o tribunal a quo já não podia apreciar essa questão de inconstitucionalidade. Por outro lado, e quanto à norma do artigo 439º do mesmo diploma, verifica-se a situação inversa: o recorrente requereu a sua apreciação no recurso para o Pleno da Secção do STA, mas deixou de fazer qualquer referência a essa norma no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal; não se pode, pois, dela conhecer, sem desrespeito do princípio do pedido, uma vez que é naquele requerimento que se fixa o objecto do recurso.
6. Assim, e em conclusão, o presente recurso tem apenas por objecto a apreciação da inconstitucionalidade das normas dos artigos 441º e 450º da Reforma Aduaneira, do seguinte teor:
Artigo 441º
Sem prejuízo do que estipula o nº 2 do § 2º do artigo 450º, os candidatos que desejarem ser admitidos ao concurso documental a que se refere o corpo daquele artigo deverão ter aprovação em exame de provas públicas para despachantes oficiais, que se regularão nos termos do presente capítulo, na parte aplicável.
§ 1º Os exames referidos no corpo deste artigo serão realizados na Direcção-Geral das Alfândegas, perante um júri designado pelo Director-Geral.
§ 2º Os exames terão a validade de cinco anos, no termo dos quais se realizarão novos exames de provas públicas, nos termos regulamentares, de igual se procedendo quando não haja candidatos aprovados.
Artigo 450º
O provimento das vagas de despachante oficial que se verificarem nos diversos quadros a que se refere o artigo 439º será efectuado por meio de concurso documental, aberto pelo prazo de vinte dias, ao qual serão admitidos os despachantes oficiais de outros quadros, os ajudantes de despachantes oficiais, os despachantes privativos e os agentes aduaneiros que possuam aprovação no exame a que se refere o artigo 441º, com a validade prescrita no seu § 2º.
§ 1º Tratando-se de despachante oficial de outros quadros, não se aplica a prescrição referida no citado § 2º do artigo 441º.
§ 2º Os candidatos ao provimento de vagas de despachante oficial, em cada quadro, instruirão os seus requerimentos com os documentos a seguir indicados:
1) certidão do exame referido no artigo 441º;
2) renovação dos documentos indicados no § 4º do artigo
443º, nas condições nele referidas.
§ 3º Tratando-se de despachantes oficiais de outros quadros que não tenham prestado a prova de exame referida no artigo 441º, a certidão exigida no nº 1 do parágrafo antecedente poderá ser substituída por certidão, ou documento equivalente, comprovativa de ter sido aprovado em quaisquer dos concursos de exames de provas públicas para despachantes oficiais dos quadros privativos das sedes das Alfândegas de Lisboa, Porto e Funchal, ou de aprovação nos exames de habilitações que eram exigidos para a nomeação dos despachantes oficiais das ex-colónias, nos termos do artigo 378º do Estatuto Orgânico das Alfândegas do Ultramar, aprovado pelo Decreto nº 43199, de 29 de Setembro de
1960, ou legislação por ele revogada, designadamente o artigo 387º do Estatuto Orgânico aprovado pelo Decreto nº 31105, de 15 de Janeiro de 1941.
§ 4º .............................
7. No entender do recorrente, estas disposições, na interpretação que delas fez o acórdão recorrido, violam o princípio da igualdade consignado no artigo 13º da Constituição, ao permitirem a admissão e provimento de concorrentes com classificação não inferior a oito valores na prova escrita do exame de provas públicas a que se refere o transcrito artigo 441º, enquanto o recorrente se viu excluído, apesar de deter a classificação final de 12,30 valores no exame para despachante oficial realizado em Moçambique.
Embora não claramente colocada a questão nestes termos, o que o recorrente pretende é a equiparação do exame em que ficou aprovado em Moçambique com o exame de provas públicas a que se refere a Reforma Aduaneira, para efeito de admissão ao concurso em causa.
Em toda a argumentação do recorrente, este se mostra ciente de que se trata de dois exames diversos, logo, de duas situações distintas; pretende é que não existe fundamento para tal distinção, tratando-se de situações no mínimo idênticas, ou sendo, mesmo, a sua situação qualitativamente superior.
8. O recorrente candidatou-se, pois, ao concurso documental aberto para provimento de vagas, 'existentes nos diversos quadros de despachantes oficiais, nos termos dos artigos 439º e 450º da Reforma Aduaneira', conforme consta do Aviso publicado no Diário da República, II Série, nº 16, de 19.1.89, e no qual se pode ler ainda que ao mesmo 'poderão concorrer os despachantes oficiais de outros quadros, os ajudantes de despachantes oficiais, os despachantes privativos e os agentes aduaneiros que possuam aprovação no exame de provas públicas a que se refere o artigo 441º da mencionada Reforma, bem como todos aqueles que no referido exame obtiveram na prova escrita nota igual ou superior a 8 valores'.
Para efeitos do referido concurso, o recorrente juntou certidão comprovativa de ter obtido o aproveitamento final de
12,30 em exame para despachante oficial efectuado em Moçambique, pelo que entendeu deter 'aprovação nos exames de habilitação que eram exigidos para a nomeação dos despachantes oficiais das ex-colónias'.
Ora, esta disposição legal efectua, de facto, uma distinção entre duas situações:
- por um lado, a dos despachantes oficiais de outros quadros, dos ajudantes de despachantes oficiais, dos despachantes privativos e dos agentes aduaneiros que possuam aprovação no exame a que se refere o artigo 441º (exame de provas públicas);
- por outro, a dos despachantes oficiais de outros quadros - e só estes - que não tenham prestado aquele exame, a quem é conferida a faculdade de substituição da respectiva certidão por certidão, ou documento equivalente, comprovativa de ter sido aprovado nos exames de habilitação que eram exigidos para a nomeação dos despachantes oficiais das ex-colónias.
Como salienta o acórdão recorrido, o recorrente possuía a categoria de ajudante de despachante oficial, e não a de despachante oficial, e naquela se apresentou a concurso; assim,
para concluir como o faz, o recorrente põe em confronto situações inteiramente díspares: a sua, de ajudante de despachante oficial com o exame para despachante oficial feito em Moçambique, relevante apenas quanto a concorrentes com a categoria de despachantes oficiais, mas sem o exame a que se refere o artº 441º da Reforma Aduaneira, e a de candidatos com a mesma categoria mas com esta habilitação ou, pelo menos, com 8 valores na respectiva prova escrita.
9. O princípio da igualdade, como é entendimento uniforme deste Tribunal, obriga a que se trate como igual o que for essencialmente igual e como diferente o que for essencialmente diferente; não impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, o que aquele princípio proíbe são as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante. Prossegue-se assim uma igualdade material, que não meramente formal.
Para que haja violação do princípio constitucional da igualdade, necessário se torna verificar, preliminarmente, a existência de uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminação.
Concretizando, importará perguntar se as normas impugnadas possuem uma justificação material para a 'diferenciação' que
(eventualmente) estabelecem. É que, se a tiverem, não importarão qualquer violação do princípio da igualdade.
10. Como resulta claro do anteriormente exposto, a duas situações de facto diferentes - a dos despachantes oficiais e a dos ajudantes de despachantes oficiais - o legislador pretendeu atribuir tratamentos diferenciados, no tocante às habilitações exigidas para a admissão a concurso.
Ora, porque se trata de diferentes categorias profissionais, não se pode estranhar que o legislador haja adoptado um tratamento diverso, provavelmente presumindo que aqueles que já eram despachantes oficiais eram portadores de uma maior experiência profissional que aqueles que nunca haviam passado de ajudantes de despachante.
Não se exclui que o legislador pudesse optar por tratar ambas as situações de forma semelhante, mas a decisão, nessa matéria, cabe inteiramente na sua liberdade de conformação, em nada podendo ser objecto de um juízo de censura, do ponto de vista jurídico-constitucional.
Nestes termos, não se descortina qualquer violação do princípio constitucional da igualdade por banda das normas em crise
(o aviso de abertura do concurso - designadamente na parte em que a ele admite todos aqueles que haviam obtido nota igual ou superior a oito valores no exame de provas públicas - não se encontra aqui em causa).
III - DECISÃO
11. Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 8 de Outubro de 1996 Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Fernando Alves Correia Messias Bento José Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa