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Processo n.º 645/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
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Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que são recorrentes o Ministério Público e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (atual Ministério da Educação e da Ciência) e recorrida A., foram, por cada um dos recorrentes, interpostos recursos de constitucionalidade ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Supremo Tribunal, na parte em que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, na redação dada pelo artigo 46.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro.
2. O recorrente Ministério Público apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«1.º
A recorrida gozava do estatuto de praticante desportivo no percurso de alta competição, estatuído e regulado pelo Decreto-Lei n.º 125/95, de 31 de maio, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 123/96, de 10 de agosto.
Nessa qualidade beneficiava de regime especial de acesso ao ensino superior, estabelecido pelo artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 123/96.
2.º
Dispunha, por outro lado, o Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, nomeadamente, os seus artigos 5.º e 19.º, que o acesso ao ensino superior de tais atletas dependia apenas da comprovação de que eles tinham obtido aprovação nas disciplinas do ensino secundário correspondentes às provas de ingresso exigidas.
3.º
Esse regime foi, no entanto, substancialmente alterado pelo Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro, ao dispor que os praticantes de alta competição podiam “requerer a matrícula e inscrição em par estabelecimento/curso de ensino superior para que tenham realizado as provas de ingresso respetivas e tenham obtido as classificações mínimas fixadas pelo estabelecimentos de ensino superior para as provas de ingresso e para a nota de candidatura no âmbito do regime geral de acesso” (vd. art.º 27.º, n.º 2 e a nova redação que o art.º 46.º deu ao art.º 19.º do DL 393-A/99).
Passaram, assim, os atletas de alta competição, a ter obrigações semelhantes a todos os outros estudantes, que pretendam aceder ao ensino superior.
4.º
Decorre do regime geral de acesso ao ensino superior (Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 25 de setembro, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 90/2008, de 30 de maio), que o ingresso em cada par estabelecimento/curso de ensino superior está sujeito a limitações decorrentes do número de vagas fixado anualmente pelos órgãos legal e estatutariamente competentes, a quem, também, compete fixar quais as provas de ingresso exigidas, bem como as classificações mínimas exigidas e a fórmula da nota de candidatura.
5.º
À data da entrada em vigor da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 272/2009 ao Decreto-Lei n.º 393-A/99, a recorrida, que pretendia ingressar na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, estava a iniciar o ano letivo de 2009/2010 e a frequentar o 12.º ano.
Veio a concluir no ano escolar de 2009/2010 (em julho), o Curso Científico - Humanístico de Ciências e Tecnologias, com a classificação de 16 valores.
6.º
Nesse mesmo ano letivo, em 2010, a recorrida realizou os exames de Biologia e Geologia, onde obteve a classificação de 144 (2ª fase), de Matemática A, onde obteve a classificação de 167, e de Português, onde obteve a classificação de 161.
Mas, no ano anterior tinha efetuado a prova de Biologia e Geologia (classificação de 109) e Física e Química A (classificação de 108).
7.º
As regras de admissão e classificações mínimas, fixadas para o ano de 2010 pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, foram de 140 pontos para as provas de ingresso, e de 150 pontos para a nota de candidatura, calculada em função de 50% da média do Ensino Secundário e de 50% das notas dos exames de ingresso.
8.º
Atendendo ao estatuto de atleta de alta competição regulado pelo Decreto-Lei n.º 125/95, de 31 de maio, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 123/96, de 10 de agosto, a recorrida acederia ao ensino superior, dado poder comprovar aprovação nas disciplinas do ensino secundário correspondentes às provas de ingresso exigidas no ano em causa.
9.º
No entanto, por força da aplicação do novo regime estatuído pelo Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro, e da imposta ponderação das médias dos anos letivos anteriores e da classificação das provas de ingresso realizadas no ano letivo anterior (provas específicas), a recorrida veria inviabilizada a sua candidatura à pretendida Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa (atendendo, sobretudo à classificação obtida no exame de Física e Química, inferior a 140 pontos, realizado no 11.º ano).
10.º
Assim, a mudança superveniente das regras que regulamentavam a situação da recorrida, com a qual esta não podia razoavelmente contar, e surgida em momento que a impossibilitou de, adequadamente, definir metas e estratégias de trabalho em função dessas novas regras de acesso ao ensino superior (dado já se encontrar no início do 12.º ano), destrói o seu investimento de confiança na manutenção do regime legal.
11.º
Por outro lado, a alteração legislativa não terá sido ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes.
12.º
Pelo que, a aplicação à situação da recorrida da norma do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, na redação introduzida pelo artigo 46.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 272/09, de 1 de outubro, afeta de forma demasiado onerosa as suas expectativas, legítima e objetivamente consolidadas, e colide com os princípios constitucionais de confiança e segurança jurídica inerentes ao conceito de Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição.
13.º
Deve, pois, improceder, o presente recurso.»
2. O recorrente Ministério da Educação e da Ciência apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«a) o presente recurso pretende ver apreciada a não inconstitucionalidade das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro, ao regime anteriormente estabelecido no Decreto-Lei n.º 393- A/99, de 2 de outubro, em particular se a nova redação conferida ao artigo 19.° viola, ou não, o disposto no n.º 3 do artigo 18.°’da CRP, designadamente, ofendendo o princípio da proteção da confiança, por decorrer da aplicação retroativa da lei nova gravoso condicionamento, excessivamente oneroso e, portanto, inadmissível, pondo, assim, em causa o direito de acesso ao ensino superior em condições de igualdade, consagrado nos artigos 74.° n.º 1 e 76.° n.º 1 da CRP, conforme decidiu o Douto Acórdão Tribunal a quo, desaplicando aquele norma legal;
b) quando foi operada a questionada alteração legislativa, a Recorrida encontrava-se a frequentar o 12.° ano, pelo que, ainda, não reunia os pressupostos ou requisitos para se poder candidatar ao ensino superior, já que lhe faltava realizar o exame e obter aprovação na disciplina de Matemática, e, assim, concluir o 12.° ano e o grau do ensino secundário;
c) o seu processo de candidatura ao acesso ao ensino superior no ano letivo de 2010/2011 apenas se iniciou no preciso momento em que efetuou a dita candidatura, sendo, deste modo, por força do disposto no n.º 2 do artigo 12.° do Código Civil, aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro, ao Decreto-Lei n.º 393- A/99, de 2 de outubro;
d) a ratio legis que está na base da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 272/2009, de aplicação imediata relativamente aos estudantes atletas desportivos de alto rendimento e candidatos ao ensino superior, consiste na alteração das condições de acesso ao ensino superior imposta pela necessidade de os candidatos deterem as devidas condições de mérito face ao panorama que vinha ocorrendo de estudantes que não demonstravam o nível de conhecimentos devido e, como, tal desqualificavam aquele grau de ensino, pondo em causa a qualidade, dignidade e reconhecimento do ensino superior público e as necessidades do País em deter quadros qualificados;
e) trata-se, evidentemente, de um interesse público relevante.
f) o direito de acesso ao ensino superior não é um direito absoluto, admitindo limites e restrições à luz de outros direitos e valores constitucionalmente protegidos, e com apoio no texto constitucional que prevê que o direito de escolha de uma profissão, não afasta as “restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade”, conforme consagra o n.º 1 do artigo 47.° da CRP, nem as limitações decorrentes das necessidades do País em quadros qualificados, como está, igualmente, consagrado no n.º 1 do artigo 76.° da CRP;
g) o Estado (mormente, o legislador) não encetou comportamentos capazes de gerar na Recorrida “expectativas” de continuidade, porque, quer em abstrato, quer em concreto, a relação jurídica em causa apenas se constituiu com a candidatura de acesso ao ensino superior, ainda que, tenha em conta, é certo, algumas das notas obtidas em momento anterior à sua entrada em vigor, não se tendo, assim, por legítimas, justificadas e fundadas em boas razões as expectativas por aquela detidas;
h) e, admitindo, que a mesma, tenha feito planos de vida a contar com a continuidade do “comportamento estadual”, os mesmos não merecem tutela jurídica;
i) existe interesse público relevante que justifique a continuidade da solução legislativa anteriormente vigente e, assim, a inaplicabilidade imediata da lei nova;
j) de acordo com o princípio da proporcionalidade, ponderando o interesse particular e interesse público relevante, não ocorre um sacrifício excessivo de frustração das expectativas da Recorrida que possa ser considerado arbitrário.
k) improcede, pois, a inconstitucionalidade do artigo 19.° do Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, na redação dada pelo artigo 46.° do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro;
l) deve em conformidade ser aplicada a referida norma ao caso sub judice.
Termos em que,
Deve ser considerada e julgada como não inconstitucional a alteração legislativa sub judice quando aplicada à Recorrida e, em conformidade; ser determinada a reforma da decisão recorrida, aplicando-se a norma em questão.»
3. A recorrida contra-alegou, concluindo da seguinte forma:
«A. O Acórdão recorrido não merece qualquer censura;
B. O art.º 76.° da CRP consagra um direito de igualdade de acesso ao ensino superior, sendo que, no caso sub judice tal igualdade deixou de existir com a introdução da obrigação de realização de exames nacionais aos alunos atletas de alta competição que se encontravam no 12.° ano — passando a tratar-se de forma igual o que é desigual;
C. A aplicação da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 272/2009 no regime especial de acesso ao ensino superior aos alunos que já se encontravam no 12.° ano e que já tinham realizado exames no 11.º constitui uma modificação inconstitucional da representação pelos candidatos das possibilidades de acesso ao ensino superior;
D. A aplicação inesperada das normas do Decreto-Lei n.º 272/2009 não permitiu à Recorrida adequar o seu comportamento em conformidade;
E. O novo regime legal introduzido pelo DL n° 272/2009 não poderá ser aplicado à candidatura da recorrente, sob pena de ocorrer violação da Constituição.
F. A proteção da sua confiança — e, por inerência, a segurança jurídica que lhe está subjacente —, definindo metas e estratégias de trabalho em função das regras que antes lhe eram aplicável, foi irremediavelmente violada, com a aplicação (inconstitucional) da nova norma.
G. No limite, se a Recorrida tivesse sabido antecipadamente desta possível interpretação e aplicação da norma pela DGES e da fixação daquele valor pela Faculdade de Ciências Médicas, da Universidade Nova de Lisboa, é razoável supor que certamente teria optado por melhorar o seu exame de Física e Química, com óbvias e lógicas possibilidades de melhorar a nota obtida;
H. O Decreto-lei n.º 272/2009 visa incidir diretamente não só sobre os exames do 12.° ano mas também sobre os exames do 11.º ano (já realizados à data da sua publicação), atribuindo-lhe efeitos e estatuindo que a sua ausência seria causa de invalidade do ato de admissão ou colocação;
I. Estando em causa uma relação ou situação jurídica duradoura, a aplicação imediata da alteração introduzida pelo Decreto-lei n.º 272/2009 produziu efeitos desproporcionadamente desfavoráveis ou onerosos para a Recorrente, devendo continuar a aplicar-se o Decreto-lei n.º 393-A/99 na sua redação originária; sob pena de inconstitucionalidade;
J. Os três anos letivos que compõem o ensino secundário não podem ser espartilhados e vistos de forma estanque. Isto é, a partir do momento em que um aluno entra para o 10.º ano, configura as suas expectativas e objetivos para os três anos e não para cada ano individual e separadamente, tanto mais que existem disciplinas comuns aos três anos e que serão objeto de uma avaliação final global
K. A restrição dos direitos da Recorrida não foi ditada pela necessidade de salvaguardar quaisquer direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes.
L. É censurável e desproporcional a aplicação imediata, no ano letivo em curso de um novo regime, sem salvaguardar devidamente todas as situações que existiam, bem como fixar critérios restritivos do acesso ao ensino superior após os alunos já terem realizado as provas de ingresso e, portanto, não poderem confirmar a sua conduta.
Termos em que se requer, com o douto suprimento de V.ª Ex.ªs o presente recurso seja considerado improcedente, mantendo-se o douto Acórdão recorrido e a desaplicação da norma normativa.»
Cumpre apreciar e decidir.
II ? Fundamentação
4. O artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro (diploma que regula os regimes especiais de acesso e ingresso no ensino superior), estabelecia o seguinte:
«Secção VI
Atletas com estatuto ou percurso de alta competição
(...)
Artigo 19.º
Cursos para que podem requerer a matrícula e inscrição
Os estudantes abrangidos por este regime podem requerer a matrícula e inscrição em par estabelecimento/curso de ensino superior para que satisfaçam ao disposto no artigo 5.º»
O artigo 5.º, para que remetia o artigo 19.º, previa que os estudantes que requeiram a matrícula e inscrição invocando a titularidade de um curso de ensino secundário português só? o podiam fazer para par estabelecimento/curso para que comprovassem aprovação nas disciplinas do ensino secundário correspondentes às provas de ingresso exigidas no ano em causa.
Por seu turno, o artigo 46.º do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro (que veio estabelecer as medidas específicas de apoio ao desenvolvimento do desporto de alto rendimento), alterou a redação daquele artigo 19.º, bem como a epígrafe da Seção VI do Decreto-Lei n.º 393-A/99, nos seguintes termos:
«Secção VI
Praticantes desportivos de alto rendimento
(...)
Artigo 19.º
Cursos para que podem requerer a matrícula e inscrição
Os estudantes abrangidos por este regime podem requerer a matrícula e inscrição em par estabelecimento/ curso de ensino superior para que tenham realizado as provas de ingresso respetivas e tenham obtido as classificações mínimas fixadas pelos estabelecimentos de ensino superior para as provas de ingresso e para nota de candidatura no âmbito do regime geral de acesso.»
Em causa está a alteração do regime especial de acesso ao ensino superior de que são beneficiários os atletas de alta competição.
Na vigência da redação original do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, os atletas de alta competição (titulares de um curso de ensino secundário português) podiam requerer a matrícula e inscrição no par estabelecimento/curso, desde que tivessem tido aprovação nas disciplinas do ensino secundário correspondentes às provas de ingresso exigidas no ano em causa. Ou seja, o acesso baseava-se apenas na aprovação do curso de ensino secundário, não contando a nota obtida nos exames nacionais das disciplinas específicas.
Com a nova redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 272/2009, passou a ser exigido aos praticantes desportivos de alto rendimento, para a matrícula e inscrição em par estabelecimento/ curso de ensino superior, a obtenção de classificações mínimas nas provas de ingresso respetivas (fixadas anualmente pelos estabelecimentos de ensino superior) e na nota de candidatura (no âmbito do regime geral de acesso). Ou seja, como se salienta no acórdão recorrido, a nota dos exames nacionais passou a ser tomada em linha de conta em duas medidas: (i) a nota obtida tem de ser superior ao limite mínimo fixado pelo estabelecimento de ensino superior; (ii) será ponderada com a média da frequência do secundário, sendo que o resultado dessa ponderação também terá de ser superior ao limite mínimo fixado pelo estabelecimento de ensino superior.
A alteração entrou em vigor no 5.º dia após a publicação do Decreto-Lei n.º 272/2009, ou seja, em 6 de outubro de 2009.
5. Ficou provado nas instâncias que a autora, aqui recorrida, concluiu o 12.º ano, no Curso Científico-Humanístico de Ciências e Tecnologias, no ano letivo de 2009/2010 e nessa data encontrava-se qualificada como praticante desportivo de alta competição, na modalidade de ténis. A aplicação, ao caso da recorrida, da alteração legislativa introduzida pelo Decreto-Lei n.º 272/2009, quando a mesma já se encontrava a frequentar o 12.º ano, significava que a esta era imposto a ponderação das médias dos anos letivos passados e da classificação das provas de ingresso realizadas no ano letivo anterior, isto é, as provas específicas de Biologia/Geologia e Físico-Química realizadas no 11.º ano.
O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, aqui recorrido – que foi proferido em recurso de revista interposto no âmbito de um processo urgente de intimação à proteção de direitos, liberdades e garantias –, negou provimento ao recurso e confirmou o acórdão do TCAS que julgara procedente a intimação, reconhecendo à autora, aqui recorrida, o direito a ser admitida no Curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas da UNL, no ano letivo de 2010/2011 e condenando o Ministério na criação de uma vaga nesse curso.
Para o efeito, considerou aplicável ao caso concreto o regime de acesso ao ensino superior constante do Decreto-Lei n.º 393-A/99, recusando a aplicação da alteração legislativa introduzida pelo Decreto-Lei n.º 272/2009, com fundamento na violação dos princípios da confiança e da segurança ínsitos na ideia de Estado de Direito Democrático (artigo 2.º da CRP), pelas razões assim resumidas: «Essa nova regulação procedimental apresenta-se como excessivamente onerosa, portanto inadmissível, porque afeta, em sentido desfavorável, as expectativas da autora constituindo uma mutação da ordem jurídica com a qual a autora, já na reta final do seu percurso de acesso ao ensino superior não podia razoavelmente contar e que destrói o seu investimento de confiança na manutenção do regime legal e os seus planos de vida, sem que se veja que a afetação da sua relação jurídica já constituída, tenha sido ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes». Em suma, entendeu o Supremo Tribunal Administrativo que «a tomada em consideração de factos anteriores à entrada em vigor da lei nova, no procedimento concretizador do direito especial da autora de acesso ao ensino superior, agravando o respetivo condicionamento, ofende os princípios da confiança e da segurança ínsitos na ideia de Estado de Direito Democrático (art. 2.º da CRP)».
O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional pronunciou-se no mesmo sentido, salientando que «a mudança superveniente das regras que regulamentavam a situação da recorrida, com a qual esta não podia razoavelmente contar, e surgida em momento que a impossibilitou de, adequadamente, definir metas e estratégias de trabalho em função dessas novas regras de acesso ao ensino superior (dado já se encontrar no início do 12.º ano), destrói o seu investimento de confiança na manutenção do regime legal.»
A recorrida contra-alegou em consonância.
O recorrente Ministério da Educação e da Ciência contrapõe que a Recorrida encontrava-se a frequentar o 12.° ano quando foi operada a questionada alteração legislativa, pelo que ainda não reunia os requisitos para se poder candidatar ao ensino superior. Apesar de relevarem as disciplinas cujos exames tinha efetuado no ano letivo anterior, também integrava os requisitos de acesso o exame nacional da disciplina de Matemática, que realizou no final daquele ano letivo de 2009/2010, já depois da entrada em vigor da alteração legislativa. Entende, assim, que a relação jurídica em causa apenas se constituiu com a candidatura de acesso ao ensino superior, ainda que tenha em conta algumas das notas obtidas em momento anterior, não sendo legítimas, justificadas nem dignas de tutela jurídica, quaisquer expectativas da recorrida na imutabilidade do regime legal de acesso. Mais refere que a mencionada alteração legislativa tem subjacentes razões de relevante interesse público, traduzidas na necessidade de assegurar que os candidatos ao ensino superior têm as devidas “condições de mérito”, uma vez que vinha a verificar-se que os estudantes (desportistas de alta competição) não demonstravam o nível de conhecimentos devido e, como tal, desqualificavam aquele grau de ensino, pondo em causa a qualidade e reconhecimento do ensino superior público e as necessidades do País em formar quadros qualificados.
O Ministério recorrido conclui pela não verificação dos requisitos que a jurisprudência constitucional tem apontado como indispensáveis para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da confiança.
6. A alteração legislativa que vem questionada não coloca diretamente em causa a garantia constitucional de acesso ao ensino superior, que se pode inferir, não do disposto no artigo 76.º, n.º 1, da Constituição, onde se estabelecem as regras, diretivas e objetivos a que deve subordinar-se o regime de acesso ao ensino superior, mas do disposto nos artigos 74.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), da Constituição, na medida em que daqui se extrai, ainda que essencialmente como tarefa constitucional do Estado, um «direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso» e uma garantia de «acesso aos graus mais elevados do ensino» de acordo com as capacidades de cada um (v., neste sentido, o Acórdão n.º 353/2007 e doutrina aí citada).
No caso em apreço, não só esse direito de acesso se encontra intacto, como a recorrida beneficia de um regime diferenciado – mais favorável – de acesso ao ensino superior.
O problema é que a alteração legislativa em causa tornou mais exigente esse regime especial de acesso ao ensino superior dos praticantes desportivos de alto rendimento. Enquanto que, no anterior regime, apenas se impunha que concluíssem o ensino secundário, o que implicava, além do mais, ter aprovação nas disciplinas que correspondem às provas de ingresso, agora exige-se que obtenham as classificações mínimas fixadas pelos estabelecimentos de ensino superior para as provas de ingresso e para nota de candidatura no âmbito do regime geral de acesso. Cumpre dizer, todavia, que a alteração em causa não descaracteriza este regime especial de acesso como um regime mais benéfico relativamente ao regime geral, pois, ao contrário do que sucede neste, o regime especial de acesso ao ensino superior para os praticantes desportivos de alto rendimento continua a não estar limitado ao número de vagas disponíveis (numerus clausus), embora o número de estudantes a admitir em cada par estabelecimento/curso para o conjunto dos regimes especiais não possa exceder, em cada letivo, 10% das vagas aprovadas para o concurso nacional (cfr. artigo 22.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 393-A/99).
É também seguro que não estamos perante uma lei retroativa em sentido próprio, uma vez que não veio afetar uma posição da recorrida já estabilizada ou resolvida. À data da entrada em vigor da alteração legislativa (outubro de 2010), a recorrida encontrava-se a frequentar o 12.º ano de escolaridade e, como tal, ainda não reunia a primeira das condições gerais de apresentação ao concurso nacional de acesso e ingresso no ensino superior público (cfr. artigo 7.º do regime geral de acesso e ingresso no ensino superior, fixado pelo Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 25 de setembro, alterado, à data, pelo Decreto-Lei n.º 90/2008, de 30 de maio).
Antes estamos perante uma alteração “retrospetiva”, na medida em que a nova lei veio exigir o preenchimento de condições anteriormente não exigidas, cuja verificação se afere por factos em parte já ocorridos (no caso, parte das provas de ingresso foram realizadas no ano letivo anterior à entrada em vigor da alteração). Tratando-se da formação sucessiva de requisitos do concurso de acesso, um deles reporta-se a um facto passado (os exames do 11.º ano de escolaridade), facto que, por aplicação das novas regras, ainda não em vigor no momento em que foi praticado, é, no presente, submetido a exigências restritivas da sua valência concursal.
Daí a questão de constitucionalidade a decidir nos presentes autos, que se resume a saber se é compatível com o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, dedutível do artigo 2.º da Constituição, a alteração ao regime especial de acesso ao ensino superior dos atletas de alta competição constante do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, operada pelo Decreto-Lei n.º 272/2009, na parte em que passa a exigir aos estudantes abrangidos por este regime que «tenham obtido as classificações mínimas fixadas pelos estabelecimentos de ensino superior para as provas de ingresso e para nota de candidatura no âmbito do regime geral de acesso» quando aplicável a casos, como o da recorrida, em que parte dessas provas de ingresso foi realizada antes da mencionada alteração legislativa.
7. Estando envolvida, como está, a proteção da confiança dos particulares relativamente ao Estado legislador, deparamo-nos com um confronto entre dois valores igualmente acolhidos na Constituição: por um lado, a proteção da confiança dos particulares em não verem frustradas expectativas legítimas quanto à manutenção de um determinado quadro legislativo; e, por outro, a exigência de que o legislador, democraticamente eleito, disponha de uma ampla margem de conformação (e revisibilidade) da ordem jurídica infraconstitucional, com vista à prossecução do interesse público a que está vinculado (neste sentido, v. Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, 263-264).
A jurisprudência deste Tribunal Constitucional tem entendido que – para além das regras que estabelecem proibições expressas de retroatividade, quanto a leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, leis penais e leis criadoras de impostos – a afetação de legítimas expectativas dos cidadãos é violadora do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, quando seja de reputar “inadmissível e arbitrária”, devendo a “ideia geral de inadmissibilidade” ser aferida pelo recurso a dois critérios: (i) afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e (ii) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição desde a 1.ª revisão (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 158/2008, que retoma as formulações do Acórdão n.º 287/90).
Estes apertados critérios foram estabelecidos para situações em que os cidadãos detinham apenas meras expectativas legítimas, como é o caso da aqui recorrida.
Já vimos que a norma aqui sindicada constitucionalmente afeta desfavoravelmente as expectativas daqueles que, como a recorrente, frequentavam o 12.º ano de escolaridade à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 272/2009 e eram titulares do estatuto de atleta de alta competição. Resta saber em que medida essas expectativas são dignas de tutela.
Já foi acentuado que a revisibilidade das leis é inerente às mesmas e a matéria em causa – estabelecimento de um regime especialmente favorável para um determinado grupo de estudantes – insere-se na ampla margem de conformação do legislador ordinário.
Acresce que as razões invocadas para a mencionada alteração legislativa não são constitucionalmente irrelevantes. O Decreto-Lei n.º 272/2009 veio estabelecer as medidas específicas de apoio ao desenvolvimento do desporto de alto rendimento, referindo-se no seu preâmbulo, que um dos objetivos visados é o de «suprir a principal fraqueza do regime atualmente vigente, o qual assenta numa definição demasiado permissiva do que deva ser considerado desporto de alto rendimento, com as inerentes consequências ao nível dos apoios públicos concedidos pelo Estado». Concretamente no que respeita ao regime especial de acesso ao ensino superior de que beneficiam os atletas de alta competição, refere o recorrente Ministério da Educação e da Ciência que a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 272/2009 é «imposta pela necessidade de os candidatos deterem as devidas condições de mérito face ao panorama que vinha ocorrendo de estudantes que não demonstravam o nível de conhecimentos devido e, como tal, desqualificavam aquele grau de ensino, pondo em causa a qualidade, dignidade e reconhecimento do ensino superior público e as necessidades do País em possuir quadros qualificados».
Entendendo que o regime de acesso ao ensino superior de que beneficiavam os desportistas de alto rendimento, por baseado apenas na nota de conclusão do ensino secundário (cfr. artigos 19.º e 5 .º do Decreto-Lei n.º 393-A/99), afetava a qualidade desse grau de ensino, o legislador decidiu introduzir uma prova de mérito mais exigente, condicionando o acesso à obtenção das classificações mínimas fixadas pelos estabelecimentos de ensino superior para as provas de ingresso e para nota de candidatura. Decisão inteiramente legítima, até porque não desprotege inteiramente o interesse no fomento do desporto de alto rendimento e da motivação para a sua prática, antes estabelece um novo ponto de equilíbrio entre a salvaguarda desse interesse e o de resguardar o ensino superior do acesso de estudantes sem as qualificações suficientes.
Mas o que está questionado não é a bondade do sentido da alteração legislativa, mas a sua aplicação imediata aos casos, como os da recorrida, em que os estudantes já realizaram os exames (ou parte deles) para os quais se passa a exigir que tenham obtido as classificações mínimas fixadas para as provas de ingresso e para a nota de candidatura.
Nesta situação, quando o estudante se apresentou aos exames nacionais do 11.º ano, realizados no ano letivo anterior (2009/2010), não lhe era possível estabelecer metas e estratégias conformes e adequadas ao cumprimento de uma exigência de classificações mínimas que, à data, não lhe era aplicável. Pelo contrário, a lei então vigente não incentivava um especial cuidado com tais provas, uma vez que apenas exigia aos atletas de alta competição a aprovação nas disciplinas do ensino secundário correspondentes às provas de ingresso. Uma gestão do tempo (e a sua repartição na preparação dessas disciplinas e no treino desportivo) que tenha procurado tirar proveito desse regime mostra-se razoável e justificada. E o interessado não tinha qualquer razão para se precaver contra a possibilidade de o regime em vigor deixar, quanto a este ponto específico, de o beneficiar, por força da aplicação retrospetiva de um outro, tanto mais que esse regime se encontrava estabilizado por uma vigência normativa de largos anos.
Forçoso é, por isso, concluir que estamos perante uma alteração legislativa com que, razoavelmente, os destinatários da norma não podiam contar, na medida em que essa alteração implica ter em consideração factos já parcialmente realizados (classificações obtidas em provas realizadas antes da entrada em vigor da referida lei). E não se diga, em contrário, que aos estudantes colocados nesta situação sempre teria sido possível efetuar novos exames para melhoria da nota. Ainda que assim fosse, mantém-se a razão, determinante, de tais estudantes não contarem, justificadamente, com uma posterior modificação do valor de tais provas no âmbito do seu regime especial de acesso ao ensino superior. Essa modificação é sempre causa de uma prejudicial afetação de expectativas, pois o eventual exercício do direito de repetir as provas do 11.º ano representaria sempre uma notória sobrecarga de esforço, com riscos para o rendimento escolar nas disciplinas do ano letivo em curso.
Da análise precedente resulta que estamos perante uma situação de confiança legítima, cuja afetação por uma mutação legislativa provoca consequências gravosas na esfera do confiante, não sanáveis por medidas ao alcance do próprio, dentro dos limites da razoabilidade e da proporcionalidade.
Nessa situação, como se deixou dito, por último, no Acórdão n.º 396/2011, «há que proceder a um balanceamento ou ponderação entre os interesses particulares desfavoravelmente afetados pela alteração do quadro normativo que os regula e o interesse público que justifica essa alteração».
Nessa ponderação, ganha relevo decisivo a consciencialização de que a satisfação dos interesses particulares não requeria a continuidade normativa, mas apenas, mais mitigadamente, a emissão de uma disposição transitória, que ressalvasse da aplicação da lei nova os praticantes que já houvessem efetuado as provas do 11.º ano. A tutela, nesses termos, do investimento de confiança não comprometeria significativamente o propósito prosseguido pela mutação do regime especial de acesso ao ensino superior dos atletas de alta competição, entrando também em linha de conta com o limite de entradas ao abrigo de regimes especiais, fixado em 10% das vagas aprovadas para o concurso nacional (artigo 22.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 393-A/99). Só uma premência absoluta do interesse público, que não se descortina, poderia justificar a aplicação imediata e universal do novo regime.
A ponderação do peso relativo dos bens em confronto e do seu grau de afetação por cada uma das soluções em alternativa depõe no mesmo sentido, de salvaguarda da posição de confiança dos particulares. De facto, se é de atribuir um peso significativo ao interesse no fomento e preservação da qualidade e dignidade do ensino superior, a situação que se quis corrigir, pela sua natureza específica e alcance “periférico”, bem circunscrito, não tinha potencialidade lesiva do espaço nuclear, de proteção mais intensa e eficaz, de tal interesse.
Tudo ponderado, é de concluir que o interesse geral que não se nega estar subjacente à alteração legislativa questionada deve ceder nos casos e na medida acima delimitados, sob pena de se frustrarem, em violação do princípio da proteção da confiança, expectativas legitimamente fundadas.
III ? Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, dedutível do artigo 2.º da Constituição, a norma do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, na redação dada pelo artigo 46.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro, quando interpretada no sentido de exigir a estudante abrangido por este regime que obtenha as classificações mínimas fixadas pelos estabelecimentos de ensino superior para as provas de ingresso e para nota de candidatura no âmbito do regime geral de acesso, quando parte dessas provas foi realizada antes da mencionada alteração legislativa;
Consequentemente, julgar improcedente o recurso.
Sem custas.
Lisboa, 28 de março de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.