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Proc. nº 194/92
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A instaurou no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa acção declarativa de condenação, em processo comum, sob a forma sumária, contra B - Grupo Segurador, S.A.', pedindo a condenação desta no pagamento do montante de 1.109.524$00 (um milhão cento e nove mil quinhentos e vinte e quatro escudos) acrescido de juros legais, nos termos do artigo 805º do Código Civil, pedindo ainda que fosse relegada para execução de sentença a fixação dos 'danos não apurados'.
Tal pedido visava a indemnização dos danos alegadamente sofridos pelo A. na sequência de um acidente de viação ocorrido em 18 de Junho de 1988, em que interveio o seu veículo automóvel e um outro conduzido por C, tendo a responsabilidade civil decorrente de acidentes causados pela circulação deste último veículo sido, por contrato, transferida para a Ré B'.
Na contestação, a Ré, para além de se defender por impugnação, alegou que o litígio a que os autos se reportam, sendo de natureza disponível, foi, por acordo dos condutores dos veículos e respectivas seguradoras, submetido a decisão arbitral na Câmara de Arbitragem de Sinistros Automóveis, sendo, em 16 de Outubro de 1989, proferida decisão considerando o A. responsável pelo sinistro, decisão esta que, por não ter sido objecto de recurso ordinário, transitou em julgado.
2. No despacho saneador proferido em 6 de Fevereiro de
1991 (fls. 55v e 56) foi julgada procedente a invocada excepção peremptória do caso julgado, tendo sido, consequentemente, absolvida a Ré do pedido.
3. Desse despacho recorreu o Autor para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando, desde logo, a inconstitucionalidade da Lei nº
31/86, de 29 de Agosto, nomeadamente das disposições constantes dos artigos 1º a
26º, no que diz respeito à resolução dos litígios por acidente de viação, por violação do artigo 20º da Constituição. Tal violação adviria, tanto quanto se pode entender, de se atribuir força de caso julgado à decisão arbitral.
O Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão que proferiu em 21 de Novembro de 1991 (fls. 85 a 89) negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
No que respeita ao problema da inconstitucionalidade invocada, limitou-se a dizer que 'neste ponto também carece de razão o recorrente, sendo absolutamente reprovável o abuso que, na vigência da constituição actual, se tem feito do artifício da inconstitucionalidade para, em desespero de causa, se fazer vingar a tese pretendida. No caso sub judice, a todas as luzes, não se verifica a arguida inconstitucionalidade, até porque a própria Constituição, em seu artigo 211º, nº 2, prevê e autoriza a existência dos tribunais arbitrais'
4. Desse acórdão recorreu o Autor para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando, na mesma data, um outro requerimento no qual interpôs recurso para este Tribunal, dizendo que 'este recurso é requerido sob a condição da não admissão do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça'. Tendo apenas sido admitido pelo relator o recurso de constitucionalidade, veio o Autor a apresentar, na mesma data, dois requerimentos, solicitando, num deles, que sobre a matéria do despacho do relator, na parte em que não tinha admitido o recurso, fosse proferido Acórdão e reclamando, no outro, para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça da não admissão do recurso. O primeiro daqueles requerimentos foi indeferido pelo relator (fls. 970). No apenso respectivo, por Acórdão de 30 de Janeiro de 1992
(fls. 103 a 105), foi, em conferência, mantido o despacho que não tinha admitido o recurso, na sequência do que o apenso foi remetido ao Supremo Tribunal de Justiça, cujo Presidente indeferiu a reclamação e manteve o despacho de não admissão do recurso.
Só após esta tramitação foi o processo remetido para este Tribunal.
5. O recorrente, nas alegações juntas, na parte relativa ao âmbito deste recurso, limita-se a dizer que:
- 'é facultada a protecção jurídica e recorrer ao tribunal para que defenda os seus direitos (artigo 20º da CRP);
- as disposições da Lei 31/86, nomeadamente as constantes no art. 1º a 26º, são inconstitucionais, no que diz respeito à resolução dos litígios por acidente de viação, cuja inconstitucionalidade se invoca para todos os efeitos legais;
- os doutos acórdãos proferidos pela 1ª e 2ª instâncias infringiram também o princípio da igualdade previsto no art. 13º da Constituição da República Portuguesa';
pedindo que se revogue
'o Acórdão da Relação e se considerem inconstitucionais as disposições constantes nos arts. 1º a 26º da Lei 31/86, no que diz respeito à resolução dos litígios por acidente de viação, nomeadamente no momento em que foi aplicada pela comissão de arbitragem'.
Por sua vez, a recorrida B concluiu as suas alegações dizendo que:
- 'A CRP prevê, no seu art. 211º, nº 2, a existência de tribunais arbitrais;
- A organização e competência de tais tribunais depende do diploma da Assembleia da República, por força da alínea q) do art. 168º da Constituição;
- A Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, porque diploma elaborado e aprovado pela Assembleia da República, está de acordo com a disposição citada;
- E foi devidamente regulamentada pelo DL nº 425/86, de 27 de Dezembro;
- Os litígios emergentes de acidentes de viação não estão, por diploma especial, sujeitos a exclusiva apreciação e decisão dos tribunais judiciais, podendo, pois, ser submetidos a arbitragem'.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II Fundamentação
A Delimitação do objecto do recurso
6. O recorrente apresentou neste Tribunal alegações em quase tudo idênticas às produzidas perante o Tribunal da Relação de Lisboa, no agravo por si interposto. Em tais alegações, o problema da constitucionalidade das normas eventualmente aplicadas na decisão recorrida não é abordado senão na parte final e de forma breve.
Em primeiro lugar, importa fazer notar que, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 71º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, 'os recursos de decisões judiciais para o Tribunal Constitucional são restritos à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade suscitada'. Assim sendo, este Tribunal tem os seus poderes cognitivos restringidos à questão da inconstitucionalidade suscitada, não se podendo pronunciar sobre todas as outras matérias a que as alegações juntas se referem.
7. Continuando a delimitar o objecto deste recurso, importa ainda lembrar que a questão de constitucionalidade que o Tribunal pode conhecer se há-de reportar necessariamente a uma norma e não directamente a uma decisão judicial. Não pode, assim, o Tribunal, ao contrário do que pretende o recorrente, sindicar se 'os doutos acórdãos proferidos pela 1ª e 2ª instância infringiram também o princípio da igualdade previsto no art. 13º da Constituição da República Portuguesa'.
É matéria que fica completamente fora do âmbito do recurso de constitucionalidade tal como ele é desenhado na própria Constituição e na Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
8. Por outro lado, importa averiguar se todas as normas arguidas de inconstitucionalidade devem ser objecto de apreciação por este Tribunal. Para tanto, é indispensável que hajam sido aplicadas na decisão recorrida, pois só assim podem influir na decisão do processo.
Pretende o recorrente que o tribunal se pronuncie sobre
26 dos 39 artigos que integram a Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, diploma que hoje regula a arbitragem voluntária. Mesmo numa visão generosa, não se pode deixar de entender que a decisão recorrida apenas aplicou, explícita ou implicitamente, o artigo 1º, que, admitindo os tribunais arbitrais, regula o seu âmbito de intervenção, o artigo 2º, que estabelece os requisitos da convenção de arbitragem, o artigo 3º, que considera nula a convenção em que se verifiquem determinados vícios, os artigos 15º e 16º, que se referem às regras processuais e aos princípios fundamentais a observar no processo, o artigo 23º, que estabelece os requisitos da decisão arbitral, e o artigo 26º, que atribui força de caso julgado à decisão arbitral logo que não seja susceptível de recurso ordinário. Daí que apenas as mencionadas normas pudessem constituir objecto deste recurso.
Mas, se é verdade que, aparentemente, o recorrente questiona a constitucionalidade de todas estas normas, analisando de uma forma mais profunda a argumentação produzida nas alegações, verifica-se que ele só põe em causa a conformidade constitucional dos artigos 1º e 26º, nº 1, na medida em que admite que a resolução de litígios relativos a acidentes de viação integre a competência dos tribunais arbitrais. Assim sendo, há que concluir que o âmbito do presente recurso se cinge à apreciação das normas contidas nos dois mencionados preceitos, ou seja, os artigos 1º e 26º, nº 1, da Lei nº 31/86, de
29 de Agosto.
B A questão da constitucionalidade das normas sindicadas
9. A Constituição, a partir da 1ª Revisão constitucional, passou a contemplar expressamente os tribunais arbitrais como uma das categorias de tribunais, estabelecendo, no actual nº 2 do artigo 211º, que 'podem existir tribunais marítimos e tribunais arbitrais'. Não impondo a sua existência, o legislador constitucional admite que o legislador ordinário os crie.
Não podendo, dada a expressa referência constitucional, ser questionada a legitimidade dos tribunais arbitrais enquanto tal, pelo menos no que toca aos tribunais arbitrais voluntários (e é apenas a estes que a Lei nº
31/86 se reporta), resta determinar se, por algum motivo, a resolução de conflitos relativos a acidentes de viação deveria ficar excluída da sua jurisdição.
Ora, não se encontra na Constituição nem sequer tal é mencionado pelo recorrente, qualquer fundamento para a pretendida exclusão. Trata-se de um litígio sobre direitos disponíveis, que não contém nenhuma particularidade com relevância constitucional. E, aliás, garantindo a Lei nº
31/86, de 29 de Agosto, a possibilidade de impugnação da decisão arbitral, quer através de requerimento de anulação, dirigido ao tribunal judicial, quer através de recurso, a interpor para o Tribunal da Relação, em nada o tribunal arbitral voluntário contraria o artigo 20º da Constituição. Pode mesmo dizer-se que o tribunal arbitral, como tribunal que é, faz parte da própria garantia de acesso ao direito e aos tribunais.
10. Permitindo a Constituição a existência de tribunais arbitrais voluntários para a resolução de litígios, admite também, necessariamente, que às respectivas decisões não impugnadas tempestivamente seja conferida força de caso julgado, sem ulterior possibilidade de reapreciação da questão por outro tribunal. Para que um tribunal, qualquer que seja, possa dirimir os conflitos de interesses públicos e privados que lhe são submetidos no exercício da função jurisdicional, é indispensável que as suas decisões, reunidos que estejam certos requisitos, sejam dotadas da estabilidade e da força características do caso julgado.
Assim sendo, as normas sindicadas não estão feridas de inconstitucionalidade.
III Decisão
11. Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido, na parte impugnada.
Lisboa, 29 de Fevereiro de 1996
Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Diniz
José Manuel Cardoso da Costa