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Proc. nº 815/93
1ª Secção
Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - Em processo gracioso instaurado na Câmara Municipal de Sintra e
por despacho do vereador competente foi ordenada a notificação de A. para, em
conformidade com o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 10º do Decreto-Lei nº
317/85, de 2 de Agosto, proceder à remoção de um canídeo que mantinha alojado na
sua residência, com a advertência de que, nos termos do nº 4 do mesmo
dispositivo legal, podia recorrer da decisão camarária para o tribunal judicial
da comarca.
Não conformado com tal decisão dela levou recurso ao tribunal
judicial da comarca de Sintra com a alegação de que o acto em causa 'foi
deficientemente fundamentado por insuficiência de factos e falta de
concretização da motivação', requerendo, em consequência, a sua anulação.
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2 - Por despacho de 6 de Maio de 1993, o senhor juiz da comarca
recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação da norma
constante do artigo 10º, nº 4, do Decreto-Lei nº 317/85, declarando depois o
tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objecto do recurso
e absolvendo da instância a entidade recorrida.
Para tanto, suportou-se , no essencial, na fundamentação seguinte:
'A referida decisão camarária constitui um verdadeiro acto administrativo,
tal como vem definido no art. 120º do Código de Procedimento Administrativo e
assim o entendeu o órgão autárquico ao determinar a notificação nos termos do
art. 66º do Código de Procedimento Administrativo.
.............................................................
Ora, o presente recurso interposto para este Tribunal ao abrigo do disposto
no art. 10º, nº 4 do DL 317/85, visa impugnar não a aplicação de uma coima, mas
de uma providência sanitária.
Porém, a norma que atribui competência ao Tribunal judicial da comarca para
conhecer do recurso está viciada de inconstitucionalidade orgânica, pois que o
Governo, legislando ao abrigo da al. a) do nº 1 do art. 201º da Constituição da
República Portuguesa, não podia modificar, quer no sentido material, quer no
sentido territorial, a determinação do tribunal competente para conhecer das
impugnações do acto administrativo.
Com efeito, nos termos do art. 51º, nº 1, al. c) do Decreto-Lei 129/84 de
27.4 (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), compete aos Tribunais
Administrativos de Círculo conhecer dos recursos de actos administrativos dos
órgãos de administração pública, regional ou local e das pessoas colectivas de
utilidade pública administrativa.
E o art. 89º do DL 100/84, de 29.3, permite a impugnação judicial em recurso
contencioso, das deliberações dos órgãos autárquicos preferidas com violação de
lei, sendo tal recurso regulado nos arts. 24º e sgts. do DL 267/85, de 16.7.
O Governo ao legislar sobre organização e competência dos Tribunais, sem
autorização legislativa, violou o disposto no art. 168º, nº 1, al q) da CRP,
pois que tal matéria está incluída no âmbito da reserva relativa de competência
legislativa da Assembleia da República.
É assim, manifestamente inconstitucional o art. 10º, nº 4 do DL 317/85, de
2.8, na parte em que atribui ao Tribunal Judicial da comarca competência para
conhecer do recurso de acto administrativo que não integra qualquer
contra-ordenação, por violar, além do mais o disposto no art. 168º, nº 1, al q)
da Constituição e 3º e 51º, nº 1 al. e) e 54º do DL 14/84 citado'.
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3 - Deste despacho, sob invocação do disposto nos artigos 70º, nº
1, alínea a) e 72º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
interpôs o Ministério Público recurso obrigatório para este Tribunal.
Nas alegações depois oferecidas o senhor Procurador-Geral Adjunto
deixou o seguinte quadro conclusivo:
'1º - Não pode ser qualificada como acto administrativo a resolução camarária
que dirime um conflito de vizinhança, determinando a remoção de um canídeo, como
forma de pôr termo à emissão de ruídos, lesiva do direito ao sossego e
tranquilidade de locatário residente em prédio contíguo.
2º - Na verdade, tal acto não é praticado ao abrigo de normas de direito
público, não se traduzindo no exercício de uma actividade de polícia sanitária,
prevenindo comportamentos susceptíveis de fazer perigar interesses gerais,
visando apenas a tutela de um direito subjectivo, de natureza civil, de pretenso
lesado.
3º - Não representa, consequentemente, qualquer modificação das regras que
repartem a competência em razão da matéria entre tribunais judiciais e
administrativos a atribuição ao juiz do tribunal judicial da comarca de
competência para, pronunciando-se sobre a resolução administrativa tomada,
dirimir definitivamente tal litígio, quando os interessados se não conformem
com aquela.
Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando-se a reforma
da decisão recorrida, em conformidade com o sustentado na presente alegação'.
O entendimento assim delineado, contrário ao que foi adoptado no
despacho sob recurso, parte de um pressuposto fundamental: o de a decisão
camarária não dever ser caracterizada como um verdadeiro acto administrativo,
contenciosamente impugnável.
Em seu abono aduziram-se, no essencial as seguintes razões:
'Não visou, pois, a decisão camarária que ordenou a remoção do animal
causador da perturbação do direito ao sossego e tranquilidade do locatário
queixoso a prossecução de um interesse público ou colectivo - como sucederia
se, pelo contrário, estivesse em causa a defesa da saúde pública, a prevenção
ou cessação de riscos sanitários que afectassem eventualmente uma pluralidade de
pessoas - mas antes a tutela de um direito subjectivo, dirimindo um verdadeiro
conflito de interesses de natureza civil entre dois locatários de um mesmo
edifício...
Tal configuração é mais que suficiente para permitir pôr em causa a natureza
de `acto administrativo' da resolução tomada.
É que - quer perante as habituais definições doutrinais de `acto
administrativo', quer face à sua definição legal, presentemente a constar do
artigo 120º do Código do Procedimento Administrativo - as decisões da
Administração apenas revestem a natureza de `actos administrativos' quando sejam
tomadas `ao abrigo de normas de direito público' (artigo 120º, citado),
implicando consequentemente o exercício de um poder público, de um poder de
autoridade da administração sobre os particulares em cuja esfera jurídica vão
precisamente incidir os efeitos jurídicos da conduta unilateral do órgão
administrativo em que o acto, afinal, se traduz.
.........................................................
(...) a deliberação camarária não se configura como um acto administrativo
definitivo e executório, beneficiando do privilégio da execução prévia e apenas
sendo contenciosamente impugnável perante os tribunais administrativos, mas como
mera resolução provisória e cautelar de um litígio de direito privado,
ressurgindo plenamente a (natural) competência do juiz do tribunal judicial para
o dirimir, no caso de os interessados se não conformarem com a resolução
administrativa tomada, acatando-a espontaneamente'.
Passados os vistos de lei cabe agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - O Decreto-Lei nº 317/85, considerando que a legislação relativa
à profilaxia médica da raiva e às medidas de polícia sanitária se encontra
dispersa por vários diplomas publicados nas ultimas décadas, veio tratar estas
matérias de modo unitário, instituindo para tanto o Programa Nacional de Luta e
de Vigilância Epidemológica da Raiva Animal que 'envolve o conjunto de acções
sanitárias destinadas a manter indemne desta zoonose o espaço territorial
português ou, no caso de eclosão da doença, a dar pronta execução às devidas
medidas de profilaxia e de polícia sanitária à sua extinção' (artigo 1º, nº 1).
À Direcção-Geral da Pecuária compete a orientação das diversas
acções integradas no Programa, pertencendo às autarquias locais, às autoridades
sanitárias veterinárias, regionais e concelhias, à Direcção-Geral das Florestas
e às autoridades administrativas e militares a execução das tarefas e a
prestação do apoio necessárias à sua concretização (artigo 1º, nºs 2, 3, e 4 e
5).
Aquele diploma, no Capitulo II, subordinado à epígrafe (cães),
dispõe de cinco secções reportadas, sucessivamente, às seguintes matérias:
classificação; identificação, registo e licenciamento; alojamento; trânsito,
taxas de registo e de licenciamento de cães.
Na Secção III (Alojamento) inscreve-se o artigo 10º ao qual pertence
a norma desaplicada, importando, em ordem a uma melhor apreensão do tema sob
sindicância, deixar aqui transcrição integral daquele preceito.
Assim:
Artigo 10º
(Remoção de animais por decisão camarária:
processo aplicável)
1 - A permanência de cães em habitações situadas em zonas urbanas fica
condicionada à existência de boas condições de alojamento dos mesmos, ausência
de riscos sob o aspecto sanitário e inexistência nestes animais de doenças
transmissíveis ao homem.
2 - As câmaras municipais, sempre que razões de salubridade ou tranquilidade
da vizinhança o imponham, poderão determinar a remoção de quaisquer cães ou
outros animais de companhia.
3 - A câmara municipal competente, confirmada a existência de situações
referidas no número anterior, notificará o dono ou detentor dos animais para a
remoção dos mesmos no prazo de 8 dias.
4 - Da decisão camarárias pode o interessado recorrer, no prazo de 8 dias,
para o tribunal judicial da comarca, indicando logo os factos que fundamentam o
recurso e os meios de prova que pretende produzir.
5 - O recurso será apresentado na câmara municipal, que facultará ao
interessado a consulta de todos os elementos que determinaram a decisão
recorrida e remeterá o processo para juízo no prazo de 5 dias no caso de
manutenção da decisão recorrida.
6 - O prazo para a decisão judicial do recurso é de 8 dias, devendo ser
sempre ouvida a autoridade sanitária veterinária e o médico veterinário
assistente.
7 - O juiz só poderá atribuir efeito suspensivo ao recurso se, em
função da prova oferecida e dos pareceres das entidades referidas no número
anterior, concluir que o decurso do prazo para a emissão de sentença, sem
execução imediata da decisão camarária, não implicará a possibilidade de riscos
apreciáveis na salubridade e tranquilidade de quaisquer pessoas'.
Em conformidade com este dispositivo, a permanência de cães em
habitações situadas em zonas urbanas fica dependente da existência de boas
condições de alojamento dos mesmos, ausência de riscos sobre o aspecto sanitário
e inexistência nos animais de doenças transmissíveis ao homem.
As câmaras municipais, sempre que razões de salubridade ou
tranquilidade da vizinhança o imponham, poderão determinar a remoção de
quaisquer cães ou outros animais de companhia, organizando para tanto o
respectivo processo de cuja decisão cabe recurso para o tribunal judicial da
comarca.
Qual a verdadeira natureza da decisão camarária que ao abrigo deste
preceito determine, com base nos fundamentos ali previstos, a remoção de um
canídeo alojado em habitação urbana?
Haverá ela de ser entendida como um típico acto administrativo
definitivo e executório gerado no exercício de uma actividade da administração
autárquica - tese propugnada na decisão recorrida - ou, ao invés, como mera
resolução provisória e cautelar de um litígio de direito privado, dirimindo um
verdadeiro conflito de interesses de natureza civil entre dois locatários de um
mesmo edifício - tese defendida nas alegações do Ministério Público?
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2 - Em conformidade com o disposto no artigo 237º, nº 2, da
Constituição, 'as autarquias locais são pessoas colectivas territoriais dotadas
de órgãos representativos que visam a prossecução de interesses próprios das
populações respectivas'.
A função das autarquias locais reporta-se assim à prossecução dos
interesses próprios das populações, que são aqueles que radicam nas comunidades
locais enquanto tais, isto é, que são comuns aos residentes, e que se
diferenciam dos interesses da colectividade nacional e dos interesses próprios
das restantes comunidades locais.
E nos termos do artigo 239º do texto constitucional as atribuições e
organização das autarquias serão reguladas por lei, de harmonia com o princípio
da descentralização administrativa.
Este princípio exige, além do mais, a existência de um conjunto
substancial de atribuições próprias (e não apenas delegadas pelo Estado) e a
transferência para as autarquias das atribuições estaduais de natureza local.
Por outro lado, a lei não goza de total liberdade de conformação. A
garantia constitucional da autonomia local estabelece limites e requisitos.
Primeiro, a lei não pode deixar de definir às autarquias um mínimo razoável de
atribuições. Depois, esses atribuições não podem ser umas quaisquer, devendo
referir-se aos interesses próprios das respectivas comunidades locais. Por
último, se é em princípio livre a ampliação das atribuições autárquicas
(condicionada à dotação de correspondentes meios suplementares de
financiamento), já a redução da esfera de atribuições estabelecida é em
princípio interdita, por atentatória da autonomia adquirida, salvo adequada
justificação à luz dos princípios da necessidade e da proporcionalidade (cfr.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3ª edição, Coimbra, 1993, pp. 886 e 887).
O Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, que procedeu a uma profunda
revisão da Lei nº 79/77, de 25 de Outubro (Lei das Autarquias Locais), traça no
seu artigo 2º uma definição genérica em matéria de atribuição das autarquias,
elencando, a título exemplificativo, alguns dos temas respeitantes aos
interesses próprios, comuns e específicos das populações respectivas.
Todavia, pese embora o facto de o Código Administrativo de 1940
haver sido revogado, em grande parte, depois da Constituição de 1976,
apresenta-se, ainda assim, neste domínio, como diploma fundamental, regendo,
com as correcções exigidas pelo texto constitucional, nos artigos 44º a 57º,
sobre as atribuições do município e nos artigos 253º a 257º, sobre as
atribuições da freguesia.
Deste quadro normativo verifica-se que, no âmbito das atribuições
expressamente cometidas aos municípios se compreende a defesa da 'salubridade' e
'da qualidade de vida do respectivo agregado populacional' [artigo 2º, nº 1,
alíneas a) e i) do Decreto-Lei nº 100/84], pertencendo-lhe deliberar sobre
matérias de salubridade pública, nomeadamente no que respeite a colaboração com
as autoridades sanitárias e de segurança e salubridade das edificações
confinantes com ruas e lugares públicos, bem como sobre a atenuação ou
supressão dos ruídos incómodos adentro das povoações (artigos 49º, nº 16 e 50º,
nºs 5 e 7, do Código Administrativo).
Ora, parece seguro que 'as razões de salubridade ou tranquilidade da
vizinhança' referidas no artigo 10º do Decreto-Lei nº 317/85, como causa
eficiente da decisão camarária de remoção dos animais, se inscrevem no âmbito
da protecção 'da qualidade de vida do respectivo agregado populacional' e
respeitam à salubridade pública, e à sua defesa, segurança e comodidade,
visando em suma, os 'interesses próprios, comuns e específicos das populações'.
O objectivo da autonomia local é o exercício, sob responsabilidade
própria, de um amplo leque de tarefas administrativas.
E a autonomia só existe quando as autarquias locais exercem uma
actividade administrativa, relativa aos interesses das populações respectivas,
que é significativa no conjunto da administração pública e tal só sucede quando
as tarefas de administração pública a nível local cabem, em boa parte, à
administração local e não à administração estadual ou regional autónoma.
Segundo o entendimento de António Cândido de Oliveira, O Direito das
Autarquias Locais, Coimbra, 1993, pp. 295 e ss., apenas se pode falar em
autonomia local, 'quando a actividade exercida pelas autarquias locais é uma
actividade de administração pública, nos termos do artigo 266º da Constituição,
e não uma actividade doméstica (quase privada) resultante de estreitas relações
de vizinhança desligada do conjunto da actividade administrativa desenvolvida a
nível estadual (e regional), como chegou a ser pensada no sec. XIX. A
administração local autónoma deve constituir, como referem certos autores, um
subsistema dentro do sistema da Administração Pública'.
E para este autor, um sector que tradicionalmente faz parte da
administração municipal é 'o da disciplina de actividades que podem pôr em
perigo a vida em comum no aspecto da segurança, comodidade e salubridade'
(ibidem, p. 333).
Não se ignora que no plano das relações ou conflitos de vizinhança
se podem situar direitos de personalidade protegidos no Código Civil (artigos
70º e ss.) envolvendo, nomeadamente, direitos à saúde, ao silêncio e ao
repouso. Simplesmente, à defesa da 'qualidade de vida do agregado populacional',
enquanto atribuição conferida à pessoas colectiva de direito público, subjaz um
interesse público e um correspondente serviço destinado à sua concretização em
nome e em benefício da colectividade.
Quando as câmaras municipais determinam a remoção de canídeos
alojados em casas de habitação, por força de impositivas 'razões de salubridade
ou tranquilidade da vizinhança' é certo que actuam sobre situações individuais e
concretas, visando porém a prossecução e realização de um interesse público e
não já uma mera arbitragem ou composição de conflitos suscitados entre munícipes
desavindos.
O poder que lhes é conferido pelo artigo 10º, nº 2 e 3, integra-se
seguramente no âmbito do poder administrativo, preenchendo o seu exercício a
função administrativa e traduzindo-se, no plano concreto, na prática de actos
administrativos.
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3 - Em conformidade com o Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril
(Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), a jurisdição administrativa
e fiscal é exercida pelos tribunais administrativos e fiscais, competindo aos
tribunais administrativos de círculo conhecer dos recursos dos actos
administrativos dos órgãos da administração pública local [artigos 1º e 51º, nº
1, alínea c)].
Concomitantemente, o artigo 89º do Decreto-Lei nº 100/84, dispõe que
as deliberações de órgãos autárquicos feridas de incompetência, vício de forma,
desvio de poder ou violação de lei, regulamento ou contrato administrativo são
anuláveis pelos tribunais, mediante impugnação em recurso contencioso, recurso
este que há-de obedecer ao regime definido nos artigos 24º e ss. do Decreto-Lei
nº 267/85, de 16 de Julho [Lei de Processo nos Tribunais Administrativos].
Ora, o diploma em que se insere a norma desaplicada pela decisão
recorrida, instituiu um recurso de impugnação da decisão camarária a interpôr
'para o tribunal judicial da comarca', introduzindo deste modo uma alteração no
domínio da distribuição da competência entre os tribunais judiciais e os
tribunais administrativos.
E porque o Decreto-Lei nº 317/85, foi aprovado nos termos do artigo
201º, nº 1, alínea a) da Constituição, a descoberto de autorização parlamentar,
cabe averiguar se o Governo, por si só, dispunha de legitimidade constitucional
para a sua edição.
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4 - A Constituição, na versão actualmente em vigor, como aliás
acontecia na versão saída da revisão constitucional de 1982, dispõe, no artigo
168º, nº 1, alínea q), pertencer à exclusiva competência da Assembleia da
República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre 'organização e
competência dos tribunais'. (A mesma reserva de competência legislativa constava
do artigo 167º, alínea j) do texto originário da Constituição).
A jurisprudência constitucional, teve já ensejo, em diversos
arestos, de se pronunciar sobre o alcance daquela locução normativa (cfr. os
pareceres da Comissão Constitucional nºs 2/77, 6/77, 16/77 e 4/81, Pareceres da
Comissão Constitucional, respectivamente, vol. 1º, pp. 57 e 101 e ss., vol. 2º,
pp. 101 e ss., e vol. 14º, pp. 205 e ss. e os acórdãos do Tribunal
Constitucional nºs 230/86, 32/87, 25/88, 66/88, 101/88 e 126/88, Diário da
República, respectivamente, I série, de 12 de Setembro de 1986,e II série, de 7
de Abril de 1987, e 7 de Maio, 20 de Agosto, 31 de Agosto e 5 de Setembro de
1988).
No campo doutrinal, por todos, cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
ob. cit., pp. 670 e ss.).
Segundo o entendimento destes Autores, o alcance da reserva de
competência legislativa da Assembleia da República não é idêntico em todas as
matérias. Assim:
'Importa distinguir três níveis: (a) um nível mais exigente, em que toda a
regulamentação legislativa da matéria é reservada à AR - é o que ocorre na maior
parte das alíneas; (b) um nível menos exigente, em que a reserva da AR se
limita ao regime geral (als. d, c, h e p), ou seja, em que compete à AR
definir o regime comum ou normal da matéria, sem prejuízo, todavia, de regimes
especiais que podem ser definidos pelo Governo (ou, se for caso disso pelas
assembleias regionais); (c) finalmente, um terceiro nível, em que a competência
da AR é reservada apenas no que concerne às bases gerais do regime jurídico da
matéria [als. f), g), n) e u)].
O 2º e o 3º níveis são bastante distintos, pelo menos quando considerados em
abstracto: naquele, a AR deve definir todo o regime geral ou comum, sem prejuízo
dos regimes especiais (que, todavia, hão-de respeitar as bases gerais do regime
geral devendo a lei indicar os pontos que consentem especialidade), enquanto que
no 3º nível a AR apenas tem que definir as bases gerais, podendo deixar para o
Governo o desenvolvimento legislativo do regime jurídico (do regime geral e dos
especiais a que haja lugar). Não é fácil definir senão aproximadamente o que
deve entender-se por bases gerais. Seguro é que deve ser a AR a tomar as opções
político-legislativas fundamentais, não podendo limitar-se a simples normas de
remissão ou normas praticamente em branco'.
E mais adiante, na concretização destes princípios no plano da alínea q)
do nº 1 do artigo 168º da Constituição, sustentam os mesmos Autores que 'é à AR
que cabe toda a matéria de organização e competência dos tribunais', sendo já
'problemática a questão de saber se a criação e a extinção de cada tribunal em
concreto é reserva da AR, ou se pertence ao Governo (na base da lei, claro)'.
A orientação que, a respeito desta matéria, tem vindo a ser
jurisprudencialmente definida não é, ao menos nos seus traços essenciais,
divergente da solução perfilhada por aqueles constitucionalistas.
Com efeito, ali se firmou o entendimento de que o Governo, a descoberto
de autorização legislativa, não pode legislar sobre a competência dos tribunais
'naquele nível ou grau em que ela entra na reserva da Assembleia da República',
com isto se entendendo que nesse nível ou grau se situam 'as normas que definem
as matérias que, em vez de serem atribuídas aos tribunais de comarca - que são
tribunais de competência genérica - o são aos tribunais do trabalho - que são
tribunais de competência especializada' (cfr. cit acórdãos nºs 101/88 e
126/88).
É que, como ali se entendeu, está em causa uma questão - a da repartição
de competências entre duas espécies de tribunais - que tem relevo ou importância
bastante para dever ser submetida ao debate parlamentar e à regra da maioria,
havendo assim de se inscrever no âmbito da reserva da lei.
Seja qual for a amplitude desta reserva, o certo é que dentro dela não
pode deixar de se incluir a produção de matéria normativa que modifique a
distribuição jurisdicional do País em termos de resultar afectada a competência
material dos diversos tribunais.
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5 - À luz das considerações antecedentes fácil é concluir que a norma do
artigo 10º, nº 4, do Decreto-Lei nº 317/85, ao instituir uma impugnação
contenciosa - verdadeiro recurso administrativo - da decisão camarária para o
tribunal judicial da comarca, veio introduzir uma modificação nas regras de
competência em razão da matéria, alterando o sistema de distribuição
jurisdicional pré-existente.
E ao fazê-lo, sem dispôr do adequado título legitimador, incorreu
irremissivelmente em vício de inconstitucionalidade orgânica por colisão com o
disposto no artigo 168º, nº 1, alínea q) da Constituição.
Neste sentido, em caso similar ao presente, já assim foi decidido pelo
acórdão do Tribunal Constitucional nº 158/95, de 15 de Março de 1995, ainda
inédito.
III -A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar o
despacho impugnado.
Lisboa, 30 de Maio de 1995
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Maria Fernanda Palma
José Manuel Cardoso da Costa