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Proc. nº 166/95
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No Tribunal Militar Territorial, o Promotor de Justiça deduziu libelo contra A., 1º Sargento Paraquedista imputando-lhe a prática de um crime de insubordinação previsto e punido pelo artigo 79º, nº 1, alínea a), do Código de Justiça Militar.
Recebida a nota de culpa pelo arguido, veio este contestar a acusação suscitando, além do mais, a excepção da incompetência do tribunal pois que, sendo os tribunais militares competentes para conhecer apenas dos crimes essencialmente militares, os factos que lhe eram imputados não consubstanciavam um tipo legal de crime daquela natureza. Assim sendo, a existirem indícios bastantes para ser formulada uma acusação, deveria ela ser deduzida num tribunal ordinário.
No início da audiência de julgamento o tribunal desatendeu a excepção de incompetência invocada pelo arguido e, depois de considerar aquele crime como crime essencialmente militar, julgou-se competente para do mesmo tomar conhecimento.
Contra esta decisão interpôs o arguido recurso para o Supremo Tribunal Militar, depois recebido para subir com o que viesse a ser interposto da decisão final.
Entretanto, por acórdão de 26 de Janeiro de 1995, veio o arguido a ser condenado pela prática de um crime de insubordinação por meio de ofensas ou ameaças em presença de tropa reunida, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 20º, nºs 2 e 11, 26º, nº 4, 39º e 79º, nº 1, alínea a), na pena de 2 anos de presídio militar.
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2 - Deste acórdão, recorreram o promotor de justiça e o arguido para o Supremo Tribunal Militar questionando, este último, além do mais, o alcance interpretativo dado à norma do artigo 16º do Código de Justiça Militar e ao conceito de 'tropa reunida' que nela se contém e suscitando a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 79º do mesmo código, por violação do disposto nos artigos 215º, 37º e 18º da Constituição, com base no entendimento de não ser admissível uma interpretação que particularize como essencialmente militar, crimes resultantes de condutas violadoras da liberdade de expressão.
O Supremo Tribunal Militar, por acórdão de 23 de Março de 1995, negou provimento aos recursos e confirmou a decisão recorrida.
Na parte que importa reter, o aresto suportou-se na fundamentação seguinte:
'Entende, depois o recorrente que a factualidade apurada nos autos integra tão só o crime p. e p. pelo art. 79 nº 1 al. b) do CJM, uma vez que em sua opinião e ao contrário do que foi decidido, não se encontra preenchido o elemento objectivo típico 'tropa reunida', previsto na al. a) do citado artigo, por não bastar para tanto, a simples constatação da presença de dez ou mais militares, mas ser necessário, para além disso, que tal presença esteja numa relação efectiva com o serviço e a este subordinado.
Salvo o devido respeito, não assiste razão ao recorrente.
Em primeiro lugar e ao contrário do que este defende, do teor do citado art. 16 do CJM, tendo em conta a presunção estabelecida no art, 9 nº 3 do C. Civil de que, em matéria de interpretação das leis, o legislador souber exprimir o seu pensamento em termos adequados, resulta que a presença daquele número mínimo de militares não tem, necessariamente, que ter a ver com acto em razão de serviço, podendo ser, perfeitamente, ocasional e furtuito, atento o dispositivo constante do citado preceito.
Em segundo lugar, se fosse necessária a invocada relação entre a presença de dez ou mais militares e o serviço ou o cumprimento dos seus deveres para que se devesse considerar preenchido o elemento típico 'em presença de tropa reunida' constante do art. 79 nº 1 al. a) do CJM, inútil e sem razão de ser se tornaria o citado art. 16, porque as duas situações nele previstas estariam já abrangidas pelo disposto nos artºs 14 e 15 do código em referência.
Assim sendo, forçoso é concluir que o comportamento do réu, ora recorrente, integra, como se decidiu no acórdão recorrido, autoria material de um crime de insubordinação por ofensas ou ameaças p. e p. pelo art.
79 nº 1 al. a) do CJM.
Defende ainda o mesmo recorrente que o artºs 16 e 79 nº
1 al. a) do CJM, na interpretação adoptada no acórdão recorrido e que, como se disse, se perfilha e confirma, são inconstitucionais por violarem os artºs 2,
18, 37 e 215 da CRP, uma vez que permitem enquadrar, como crime essencialmente militar, uma conduta concreta que, embora ocorrida entre militares, não tem essa natureza e, por outro lado, conferindo aos tribunais militares competência para apreciar infracções cometidas no exercício da liberdade de expressão, violam o disposto no art. 37 nº 3 citado.
Também nesta parte, carece de razão o recorrente, sendo a sua argumentação inconsistente e até mesmo incongruente, na medida em que ele próprio admite e sufraga que a sua conduta seja punida quer pelo art. 81 quer pelo art. 79 nº 1 al. b) ambos do CJM os quais obviamente prevêem e punem crimes essencialmente militares da exclusiva competência do foro militar.
Assim sendo, é óbvio que não é a interpretação feita no acórdão recorrido e que, como se disse, se perfilha totalmente, dos preceitos em referência que atribui a natureza de crime essencialmente militar à conduta do recorrente.
Por outro lado, é pura ficção, de todo inaceitável, configurar a conduta do réu dada como provada como o exercício do direito à livre expressão do pensamento, para daí retirar o argumento de que a apreciação de eventuais infracções cometidas numa actividade são da competência dos tribunais comuns, 'ex vi' do disposto no art. 37 nº 3 da CRP. Tal comportamento representa tão só e apenas um ataque à integridade física e moral e ao bom nome e reputação dum seu superior hierárquico, direitos estes constitucionalmente garantidos nos artºs 25 e 26 da Lei Fundamental.
Improcede, portanto, a arguida inconstitucionalidade dos art. 16 e 79 nº 1 al. a) do CJM, na interpretação que lhe foi dada.
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3 - Ainda inconformado com o assim decidido, trouxe o arguido recurso a este Tribunal havendo sido notificado nos termos e para os efeitos do artigo 75º-A, nº 5 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro aditado pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro (Lei do Tribunal Constitucional), vindo depois, como consta de fls. 195, a completar o requerimento de interposição do recurso.
Na alegação entretanto oferecida, concluiu assim:
'1) - O artigo 79º do Código de Justiça Militar prevê e pune o ilícito criminal de insubordinação por meio de ofensas ou ameaças.
2) - Na sua alínea a) a punição prevista é a de presídio de quatro a seis anos se a ofensa for cometida em acto de serviço, razão de serviço, ou em presença de tropa reunida.
3) - O artigo 16º deste mesmo diploma legal precisa o conceito de 'tropa reunida' referindo 'considera-se o crime cometido em presença de 'tropa reunida' quando praticado em formatura ou estando presente, dez ou mais militares, não se compreendendo neste número os agentes do crime'.
4) - Os conceitos 'acto de serviço', 'razão de serviço' e 'tropa reunida' previstos nos artigos 14º, 15º e 16º do Código de Justiça Militar, respectivamente, estão todos eles construídos tendo por base o facto de as situações que neles se prevêm resultarem em actividade militar ou outra com ela conexa.
5) - Relativamente a qualquer um deles, inclusive o de
'tropa reunida' é necessário, para que o mesmo seja elemento qualificativo, que exista uma relação, um elo ou um nexo (o S.T.J. referiu-se-lhe como 'nexo de causalidade') com a actividade militar.
6) - É essa característica que distingue as situações de 'tropa reunida' das outras que constituem o quotidiano dos cidadãos que são militares.
7) - Não se pode conceber que caiba no conceito de
'essencialmente militar' toda e qualquer conduta quando praticado por militar na simples presença de dez ou mais militares.
8) - A interpretação que o douto Acórdão em recurso faz
é susceptível de enquadrar como 'essencialmente militar' uma conduta concreta que, mesmo ocorrida entre militares, não tem essa natureza.
9) - tal interpretação, porque excede o âmbito do preceito constitucional (artº 215º) é, dele mesmo e nessa medida, violador.
10) - É inconstitucional a interpretação jurídica do artigo 16º do Código de Justiça Militar que faz depender a existência ou não de
'tropa reunida' da presença, mesmo ocasional ou fortuita, de mais de 10 (dez) militares o que viola o artigo 215º da Constituição da República Portuguesa, ofendendo os mais elementares princípios jurídicos, sendo o mesmo inconstitucional em termos materiais, por exceder o âmbito do 'essencialmente militar'.
11) - Em face do exposto e atenta a matéria assente no douto Acórdão recorrido, o arguido não pode ser condenado pela prática de ilícito criminal previsto e punido no artigo 79º a) do Código de Justiça Militar.
12) - É que, independentemente de estarem mais ou menos de 10 militares no restaurante, fardados ou á civil há que atentar na natureza qualificativa da sua presença naquele restaurante, uma vez que os presentes não estavam reunidos no cumprimento de uma ordem hierarquicamente superior e ali se encontravam de forma voluntária, sem obediência a qualquer tipo de ordens decorrentes da hierarquia militar, mas sim em acto de puro trato social, isto é, num jantar de confraternização.
13) - As infracções cometidas no exercício do direito constitucional de liberdade de expressão estão submetidas aos princípios gerais de direito criminal sendo a sua apreciação da competência dos Tribunais Judiciais, conforme resulta do artigo 37º nº 3 da Constituição da República Portuguesa.
14) - Por esse motivo a atribuição que o artigo 79º faz e a qualificação como crime essencialmente militar, ofendem o artigo 215º da Constituição com referência ao artigo 37º referenciado.
15) - Uma vez que as leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias não podem diminuir a extensão e alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (ver - artigo 18º C.R.P.), não é admissível uma interpretação que particularize como essencialmente militar, os crimes resultantes de condutas, violadoras da liberdade de expressão.
16) - Mostram-se violados os artigos 1º, 2º, 12º, 13º
(enquanto princípios basilares do sistema) 18º, 37º e 215º da Constituição da República Portuguesa.
Por seu turno, o senhor Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido do provimento do recurso, havendo sustentado assim a sua contralegação:
'1º - Ter a ofensa sido 'cometida em presença de tropa reunida' é uma circunstância qualificativa do crime de insubordinação por meio de outras ofensas ou ameaças (artigo 79º, nº 1, alíneas a) e b), do Código de Justiça Militar).
2º - O que caracteriza um crime essencialmente militar
é a natureza especificamente militar dos bens jurídicos violados (artigo 215º da Constituição e 10º do Código de Justiça Militar), pelo que qualquer circunstância qualificativa de um crime daquela natureza tem de significar necessariamente uma lesão mais intensa daqueles bens jurídicos militares.
3º - A interpretação do artigo 16º do Código de Justiça Militar, segundo o qual preenche o conceito de 'tropa reunida' a simples presença - no local da prática do crime, mesmo que não seja local de serviço - de dez ou mais militares, ainda que ocasional ou fortuita, é inconstitucional, por violação dos artigos 18º, nº 2 e 2º da Constituição.'
Os autos correram depois os vistos de lei, cumprindo agora apreciar e decidir.
4 - E porque, quer a petição de recurso, quer o requerimento que a complementou não apresentam a linearidade desejável, importa previamente, definir com exactidão qual o objecto do recurso.
E dir-se-á, por força da exigência procedimental que decorre das normas dos artigos 70º e 75º-A, da Lei do Tribunal Constitucional, que a única questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente em consonância com os requisitos e pressupostos ali exigidos, é a que se reporta à interpretação da norma do artigo 16º do Código de Justiça Militar, na parte em que aí se define o conceito de 'tropa reunida' e enquanto este conceito funciona como circunstância agravante do crime de insubordinação por meio de outras ofensas ou ameaças a que se refere o artigo 79º, nº 1, alínea a) do mesmo código.
É certo que, durante o processo, se questionou também a norma do artigo 79º ainda daquele código, por qualificar como crime essencialmente militar uma infracção cometida no exercício do direito constitucional de liberdade de expressão, o que representaria violação dos artigos 215º, 18º e 37º da Constituição.
Só que, quanto a esta específica questão não existe qualquer referência expressa na petição de recurso e no requerimento que a completou, como era legalmente exigido para se poder verificar a abertura da via de impugnação constitucional.
E assim sendo, não obstante a referência que a esta matéria se faz nas alegações produzidas perante o tribunal recorrido, e também perante este Tribunal, há-de concluir-se no sentido de não poder ela integrar o objecto do recurso.
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II - A fundamentação
1 - O Código de Justiça Militar no Livro I (Dos crimes e das penas), Título II (Disposições especiais), Capítulo único (crimes essencialmente militares), trata dos crimes de insubordinação, definindo a insubordinação por meio de outras ofensas ou ameaças no artigo 79º, nos termos seguintes:
Artigo 79º
(Por meio de outras ofensas ou ameaças)
1 - A ofensa por meio de palavras, escritas ou desenhos, publicados ou não publicados, ameaças ou gestos, cometida por qualquer militar contra superior será punida:
a) Com presídio militar de quatro a seis anos, se for cometida em acto de serviço, em razão de serviço ou em presença de tropa reunida;
b) Com presídio militar de seis meses a dois anos, em todos os demais casos.
2 - Os actos praticados pelo superior em qualquer dos casos especificados no nº 2 do artigo 93º não são considerados provocação.
A estrutura essencial do facto punível deste crime de insubordinação é representada por ofensas ou ameaças cometidas por qualquer militar contra superior, às quais corresponde a pena de presídio militar de seis meses a dois anos.
Mas, por força das circunstâncias modificativas previstas na alínea a) do nº1 - ofensa cometida em acto de serviço, em razão de serviço ou em presença de tropa reunida - a responsabilidade penal sofre alteração, em termos de ao crime qualificado dai resultante corresponder a pena de presídio militar de quatro a seis anos.
Como é sabido, o efeito das circunstâncias na determinação da medida da pena é indicado na própria lei. É dentro dos limites mínimo e máximo da penalidade que, em regra, o juiz procede à agravação ou atenuação da pena.
Contudo, circunstâncias há 'cujo efeito atenuante se encontra predeterminado pela lei, mediante uma modificação da própria medida legal da pena. Estas serão circunstâncias modificativas da responsabilidade penal (e da penalidade), enquanto as demais são circunstâncias agravantes ou atenuantes de carácter geral'. E o crime a que acresce uma circunstância modificativa 'será um crime qualificado ou privilegiado, consoante refere a medida legal da pena comum por uma penalidade mais grave ou menos grave' (cfr. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, 1992, pp. 377 e ss).
Na situação em apreço, o acórdão recorrido considerou que as ofensas dirigidas pelo arguido a um superior, pelo facto de terem sido proferidas na presença de dez ou mais militares convivendo num jantar de confraternização, integravam o crime qualificado previsto e punido pelo artigo
79º, nº 1, alínea a) do Código de Justiça Militar, funcionando assim a presença daqueles militares como uma circunstância qualificativa do próprio tipo legal de crime.
Para tanto, lançou-se mão da norma do artigo 16º daquele diploma, segundo a qual 'considera-se o crime cometido na presença de tropa reunida quando praticado em formatura ou estando presentes dez ou mais militares, não se compreendendo neste número os agentes do crime'.
Ora, e é esse o objecto do recurso, cabe averiguar se tal interpretação do conceito de 'tropa reunida', funcionando como circunstância qualificativa do crime de insubordinação por meio de ofensas ou ameaças, dispõe de legitimidade constitucional.
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2 - A Constituição não define o conceito de crimes essencialmente militares a que se reporta, na versão actual, o artigo 215º, deixando tal tarefa para o legislador ordinário que, obviamente, não a pode concretizar de forma arbitrária, devendo adoptar um critério definidor que seja concordante com a função do instituto, isto é, que se traduza na protecção por meios próprios (a justiça e os tribunais) da organização militar. (cfr. neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 816).
Com efeito, apresenta-se aquele conceito como um conceito aberto ou indeterminado cujo preenchimento foi deixado à lei ordinária, a qual, porém, sob pena de inconstitucionalidade, há-de respeitar o sentido da indicação e da função constitucional que ali se contém.
Como tem sido assinalado pela jurisprudência deste Tribunal (cfr. por todos os acórdãos nºs 347/86 e 680/94, Diário da República, II Série, de, respectivamente, 26 de Março de 1987 e 25 de Fevereiro de 1995) pode dizer-se que a ideia fundamental a reter neste domínio, é a de que a Constituição exige que o legislador ordinário se mantenha no âmbito estritamente castrense, só podendo sujeitar à jurisdição militar aquelas infracções que,
'afectem inequivocamente interesses de carácter militar', infracções que, por isso mesmo, hão-de ter com a instituição castrense uma conexão relevante, quer porque existia um nexo entre a conduta punível e algum dever militar, quer porque um nexo se estabeleça com os interesses militares da defesa militar.
Quer isto dizer que a caracterização típica do conceito de crimes essencialmente militares resultará, acima de tudo, da natureza dos bens jurídicos violados, sendo certo que, quando se verifique ofensa dos interesses específicos elencados no artigo 1º, nº 2 do Código de Justiça Militar - violação de algum dever militar ou ofensa da segurança e da disciplina das Forças Armadas ou dos interesses militares da defesa nacional e que como tal sejam qualificados pela lei militar - existirá, em princípio, um crime daquela natureza.
Neste mesmo sentido se pronunciou Figueiredo Dias, Justiça Militar, Colóquio Parlamentar, promovido pela Comissão de Defesa Nacional, Edição da Assembleia da República, 1995, pp. 25 e 26, afirmando, nomeadamente, o seguinte:
'(...) tal como sucede com o direito penal comum, também o direito penal militar substantivo, para passar a prova de fogo da sua legitimidade democrática, tem de ser um direito exclusivamente orientado por e para o bem jurídico. O sentimento de desconfiança democrática, de que ainda hoje padece, entre nós como entre tantas outras ordens jurídicas, o direito penal militar provém precisamente de ele não ter logrado a 'purificação' que o direito penal comum do bem jurídico alcançou já. O que não deixa de ser compreensível, mas nem por isso se torna justificável. A instituição militar segregou ao longo de uma tradição multissecular, um conjunto de valores - a honra, a coragem, a honestidade e a coesão militares - que acabou sempre por constituir o ponto fulcral da tutela jurídico-penal. O que fez com que o direito penal militar - mesmo depois que ele passou de direito penal dos militares a direito penal da função militar - subsistisse como uma espécie de direito de tutela da 'moral' militar e dos seus valores, antes que como um direito de tutela de bens jurídicos militares, e, consequentemente, apesar de todos os esforços, continuasse a surgir como um direito penal predominantemente subjectivado, como um direito penal do ânimo ou da intenção e, nesta precisa medida e sentido, como um direito penal do agente que nas sociedades modernas se tornou insusceptível de legitimação democrática.
Ora, devo dizer - e aqui com uma convicção plena e inarredável - que o direito penal militar não pode ser nada disto. O direito penal militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, isto é, daquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão.'
Adquirido assim que a caracterização dos crimes essencialmente militares há-de ater-se ao critério decisivo da natureza especificamente militar dos bens jurídicos violados, deverá afirmar-se que as circunstâncias qualificativas destes crimes deverão dispor de idêntica natureza, isto é, o elemento que descreve o fundamento da agravação típica (que altera a moldura penal), não pode deixar de estar conexionado com a própria especificidade daqueles bens jurídicos, dela sendo também comparticipante.
Sendo uma variação do tipo fundamental - e não, propriamente, um crime sui generis, - o crime qualificado há-de compartilhar o conteúdo do crime base, desenvolvendo-o num determinado sentido, congruente com tal conteúdo (Cfr. Maria Fernanda Palma, O homicídio qualificado no novo Código Penal Português, Revista do Ministério Público, ano 4º, vol. 15, pp, 59 e ss).
Constituindo o direito penal militar um direito penal de 'tutela de bens jurídicos militares' uma circunstância que qualifica um 'tipo fundamental de crime essencialmente militar e o gradua e agrava em crime qualificado essencialmente militar há-de significar 'uma lesão mais intensa desses mesmos bens jurídico militares'.
Será que, na situação em apreço, a circunstância qualificativa gerada pela comissão do facto 'em presença de tropa reunida', na interpretação que do conceito do artigo 16º do Código de Justiça Militar foi feita na decisão recorrida, se traduz numa lesão mais intensa daqueles bens jurídicos?
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3 - Segundo esta norma considera-se o crime cometido em presença de tropa reunida quando estiverem presentes dez ou mais militares, não se compreendendo neste número os agentes do crime.
Não se apresenta como inteiramente perceptível o exacto alcance deste normativo, que reproduz na íntegra o artigo 17º do Código de 1925.
É desde logo questionável o critério, não explicitado, que conduziu à determinação do mínimo de militares necessários ao preenchimento do conceito de 'tropa reunida'.
No Código de Justiça Militar, anotado por S. Villa Nova, Luciano Patrão, Cunha Lopes e Castel-Branco Ferreira, Coimbra, 1979, em comentário ao artigo 16º, significativamente, escreveu-se assim:
'Foi, porém, debatido na discussão do anteprojecto o número mínimo de dez soldados que, em parte, caracteriza este crime, tendo alguns opinado no sentido de o aumentar ou diminuir, fazendo-o coincidir com o efectivo de uma qualquer das sub-unidades militares. Uma questão prévia, porém, era de pôr e consistia em saber se esse número deveria corresponder a um efectivo determinado ou, pelo contrário, resultava de uma escolha arbitraria, sem qualquer sentido. Dada a falta de tempo para uma análise detalhada do problema, mercê do prazo cominatório fixado no artigo 293º, nº 2, da Constituição, optou-se pela reprodução da regra que vinha do antecedente'.
Se não se suscitam dúvidas quanto ao exacto sentido de tropa reunida 'em formatura', já o mesmo não acontece quando o conceito é reportado à mera presença de 'dez ou mais militares', situação em que se pode questionar qual o nexo de conexão existente entre essa circunstância e o agravamento daí resultante para o tipo de crime essencialmente militar, qualificado por força da sua verificação.
No entendimento da decisão recorrida, decorre do teor do artigo 16º 'que a presença daquele número mínimo de militares, não tem, necessariamente, que ter a ver com acto ou razão de serviço, podendo ser perfeitamente, ocasional e fortuita, atenta a disjuntiva constante do citado preceito'.
Mas, a ser assim, a admitir-se o preenchimento do elemento típico da agravação através da presença ocasional e fortuita de dez militares no local do crime - local inteiramente estranho à instituição militar
- não se tem então por verificado um agravamento do bem jurídico militar protegido pelo tipo fundamental, isto é, pelo crime simples de insubordinação por meio de ofensas ou ameaças.
Independentemente de a comissão do crime ocorrida em presença de outras pessoas, civis ou militares, se poder traduzir numa maior amplitude da medida concreta da pena a aplicar (cfr. artigo 12º), não pode porém ter-se por legalmente consentido, dentro do quadro de referências normativas que os crimes essencialmente militares devem respeitar, que uma circunstância assim objectivada possa ser erigida como circunstância originadora do crime de insubordinação qualificada.
Como bem pondera o senhor Procurador-Geral Adjunto, perfilhar-se uma interpretação da norma em termos idênticos aos do acórdão recorrido, 'seria aceitar que a simples qualidade de militar das dez ou mais pessoas presentes era suficiente para considerar como qualificativa de um crime essencialmente militar uma circunstância agravante, quando é entendimento pacífico que a qualidade de militar do arguido, da vítima, ou dos dois, por si só, não chega para qualificar um crime como essencialmente militar'.
De tudo o exposto deverá concluir-se que a norma do artigo 16º, na interpretação que lhe foi dada pelo Supremo Tribunal Militar, não dispõe de legitimidade constitucional por violação do disposto nos artigos 18, nº2, e 2º da Constituição, pois que, e decisivamente, a circunstância decorrente de tal interpretação, qualificativa de um crime essencialmente militar, não afecta qualquer bem jurídico especificamente militar.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se: a) julgar inconstitucional, por violação dos artigos 18º, nº 2 e 2º da Constituição, a norma do artigo 16º do Código de Justiça Militar, na interpretação do acórdão recorrido, segundo o qual o conceito de 'tropa reunida'
é preenchido pela simples presença, ainda que ocasional e fortuita, no local da prática do crime, de dez ou mais militares, mesmo quando tal local não seja local de serviço - no caso em apreço, num jantar de confraternização entre militares levado a efeito num restaurante de todo alheio à instituição militar.
b) conceder provimento ao recurso e determinar a reforma do acórdão recorrido em consonância com o julgamento da questão de constitucionalidade. Lisboa, 11 de Julho de 1996
Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa