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Processo nº 39/95 ACÓRDÃO Nº 142/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1.1.- A, identificado nos autos, requereu a suspensão da eficácia do acto administrativo emanado do Director do Parque Natural da Ria Formosa, de que foi notificado por ofício de 10 de Março de 1994, a ordenar-lhe a suspensão imediata das obras em curso de reconstrução de uma moradia sita em ....
Articulou, para o efeito, com base no disposto no artigo 76º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho - Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, doravante LPTA - que a execução imediata daquele acto lhe irá causar prejuízos de difícil reparação, senão irreparáveis, além de afectar o seu bom nome e reputação, não determinando a requerida suspensão lesão alguma do interesse público.
Respondeu a entidade requerida entendendo, pelo contrário, que da eventual suspensão resultaria grave lesão para o interesse público, além de negar resultarem, para o interessado, prejuízos de difícil reparação se executado o acto.
Independentemente de assim considerar, mais invocou a inexistência de interesse em demandar por banda do ora recorrente visto que, por não ter acatado o embargo, foi dada ordem de demolição de cuja eficácia também o interessado pediu a suspensão, que viria a ser indeferida e objecto de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (STA). De resto, pondera ainda o autor do acto, verificar-se-ia litispondência ou haveria caso julgado, uma vez transitada a decisão desse Tribunal.
1.2.- Com efeito, para além do acto que viria a originar os presentes autos - recurso nº 36173 do STA - um outro acto da mesma entidade, notificado em 18 de Março de 1994, intimidou o ora recorrente à demolição da obra em causa, de modo a repor a situação anterior.
Pedida também aí a suspensão de eficácia, veio esta a ser indeferida e, interposto recurso para o STA - nº 35 711 - por acórdão de 12 de Julho de 1994 foi negado provimento por inverificação do pressuposto contido na alínea a) do nº 1 do artigo 76º da LPTA - o que originaria recurso para o Tribunal Constitucional, a que corresponde o processo nº 413/94, 1ª Secção.
Ora, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por sentença de 1 de Setembro de 1994, indeferiu o pedido de suspensão de eficácia a que respeitam os presentes autos e, do mesmo passo, condenou o requerente como litigante de má-fé: a lógica da decisão passa pela inutilidade da impugnação autónoma da ordem de embargo radicada no acto recorrido dado já ter sido ordenada a demolição da obra nos outros autos.
O STA, no entanto, para quem o recorrente se dirigiu então, não acolheu essa tese e, assim, a sua 1ª Secção - 1ª Sub-Secção, por acórdão de 30 de Novembro de 1994, após considerar que o próprio trânsito em julgado da decisão de indeferimento da ordem de demolição, sem a efectiva execução desta, não parece determinar a falta de utilidade relevante no deferimento da suspensão dos efeitos do embargo, pois que sempre ligada à vigência do acto, caducando com a sua revogação ou anulação, afastou, consequencialmente, a condenação do requerente como litigante de má-fé, mas manteve a decisão recorrida quanto ao indeferimento do pedido de suspensão, se bem que com fundamento na ausência do requisito da falada alínea a) do nº 1 do artigo 76º da LPTA.
2.- É do assim decidido que o requerente da providência suspensiva interpõe recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1. alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com fundamento na inconstitucionalidade do artigo 76º, nº 1, da LPTA
- anteriormente alegada em sede de alegações do recurso para o STA - 'por violação do direito à tutela jurisdicional efectiva (artºs. 18, 20º e 268º, nºs.
4 e 5, da Constituição)'.
Recebido o recurso, apresentou o mesmo alegações, em termo oportuno, rematando-as com as seguintes conclusões:
'1ª- Com a autonomização, na segunda Revisão Constitucional de
1989, de um preceito especificamente dedicado a garantir o acesso à justiça administrativa, não apenas para o 'reconhecimento' - como se dispunha no texto anterior -, mas também para a tutela de direitos ou interesses legalmente protegidos (art 268º/5 CRP), a Constituição superou decididamente o quadro originário do recurso de anulação dos actos administrativos, consagrando um verdadeiro direito à tutela jurisdicional efectiva, pelo que:
a) abriu caminho a acções de tutela positiva dos direitos dos administrados perante a Administração;
b) reconheceu o particular como legítimo titular de uma posição subjectiva de vantagem em ordem à satisfação ou conservação de um bem jurídico, digna da atribuição dos correspondentes poderes processuais para a sua efectiva realização;
2ª- A elevação do princípio da tutela jurisdicional efectiva a direito fundamental, nos termos dos artºs. 20º e 268º/4 e 5 da Constituição, implica a concretização do seu conteúdo preceptivo mínimo ao nível da Constituição, traduzido nos seguintes vectores:
a) primeiro, a garantia de uma tutela jurisdicional administrativa sem lacunas, consubstanciada no princípio de que a qualquer ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos e a qualquer ilegalidade da Administração Pública deve corresponder uma forma de garantia jurisdicional adequada;
b) segundo, a garantia da existência de meios necessários com vista à sua plena exequibilidade e operatividade, no sentido de que o direito à tutela jurisdicional efectiva se tem de traduzir obrigatoriamente na plena eficácia da decisão jurisdicional na esfera jurídica do particular;
c) terceiro, e em consequência, a paralisação do privilégio da execução prévia inerente à actividade administrativa, no caso da sua violação ou da possibilidade de preclusão da sua tutela eficaz, em obediência ao comando constitucional contido no art. 266º/1 CRP;
3- A Constituição da República Portuguesa consagra o direito fundamental à suspensão da eficácia dos actos administrativos de que haja interposto ou de que se pretenda interpor recurso contencioso de anulação, sendo reconduzível ao núcleo fundamental do direito dos administrados à tutela jurisdicional efectiva, pelo que é de afastar o entendimento segundo o qual a suspensão da eficácia é uma providência de carácter excepcional;
4ª- A presunção de legalidade dos actos administrativos nunca pode funcionar como meio ou critério de prova, ainda que sumária, no quadro do incidente da suspensão da eficácia, sob pena de se violar o núcleo fundamental do direito à tutela jurisdicional efectiva, vertido nos artºs. 20º e 268º/4 e 5 da Constituição;
5ª- O nº 1 do art. 76º da L.P.T.A. está ferido de inconstitucionalidade, porquanto:
a) é, desde logo, redundante, no sentido de que toda a suspensão da eficácia de um determinado acto administrativo lesa sempre o interesse público, tal como é configurado por uma Administração executiva, como
é a nossa, pelo que se constitui, afinal, em cláusula de exclusão ilícita do funcionamento desse meio jurisdicional, denegando, em consequência, o direito à tutela jurisdicional efectiva, previsto nos artºs. 20º e 268º/4 e 5;
b) apela a uma valoração judicial da gravidade da lesão do interesse público contrária à ideia material de Direito prosseguida pela Administração, no sentido de que recorta a actividade por esta desenvolvida numa feição contrária aos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, violando, pois, o preceituado no art. 266º/1 da Constituição;
6- O art. 76º/1 da L.P.T.A. está ferido de inconstitucionalidade material, por restringir desproporcionada e desnecessariamente o direito à tutela jurisdicional efectiva, afectando o conteúdo essencial deste, em clara violação do art. 18º/2 e 3 da Constituição.'
Também o Director do Parque Natural da Ria Formosa alegou, na defesa da improcedência do recurso, assim concluindo:
' I- A suspensão de eficácia dos actos administrativos não consubstância uma garantia constitucional;
II- Não obstante, resulta do artº. 20º, nº 1, da CRP, a obrigação do legislador consagrar o instituto de suspensão de eficácia dos actos administrativos, cabendo-lhe fixar os requisitos para a sua concessão, o que efectivamente faz no artº. 76º, nº 1, da L.P.T.A..
III- A exigência que se faz naquele preceito de os prejuízos serem de difícil reparação para o interessado, não ofende o princípio da proporcionalidade e nem se afigura arbitrária ou desprovida de fundamento bastante.
IV- O artº 76º, nº 1, da L.P.T.A. não se encontra, assim, ferido de inconstitucionalidade.'
Correram-se os vistos legais, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
II
1.- Constitui objecto do presente recurso decidir a questão da constitucionalidade da norma da alínea a) do nº 1 do artigo 76º da LPTA, nos termos da qual:
'A suspensão da eficácia do acto recorrido é concedida pelo tribunal quando se verifiquem os seguintes requisitos:
a) A execução do acto cause provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso.'
É certo que o recorrente impugna todo o nº 1 daquele artigo 76º mas não é menos verdade que a norma efectivamente aplicada pelo acórdão recorrido foi tão só a contida na sua alínea a), nessa medida se circunscrevendo o objecto do recurso.
Na verdade, mostra-se inequívoco o aresto, a este respeito.
Assim, após se propor verificar se se encontram preenchidos os requisitos legais que conferem ao recorrente o direito de ver deferido o pedido formulado, observa-se, a certa altura:
'Atendo o disposto no artigo 76º nº 1 da L.P.T.A. para que seja decretada a suspensão da eficácia do acto administrativo é necessário que se verifiquem, cumulativamente, como é jurisprudência pacífica e uniforme deste Supremo Tribunal, os três requisitos positivos e negativos previstos nas suas alíneas a) b) e c), de sorte que a falta de qualquer deles é suficiente para que a suspensão não seja decretada, e o Tribunal, na apreciação do pedido de suspensão, não está obrigado a seguir determinada ordem, podendo iniciar indiferentemente, a apreciação de qualquer deles (cfr. acs. de 19/9/87, de
17/12/87 e de 9/8/88 - Ad 322, pág. 1257, AD 317, pág. 601, AD 326, pág. 182, respectivamente).'
Ora, para o STA, não se mostra preenchido o requisito da alínea a) do nº 1 do artigo 76º, conclusão que atinge fundamentalmente após se debruçar sobre a matéria fáctica disponível e que, neste momento, não interessa reproduzir, dada a insindicabilidade do decidido a esse respeito no presente recurso de constitucionalidade.
Importa, sim, reter que a suspensão de eficácia foi negada por se ter entendido não verificado o condicionalismo previsto naquela alínea a) que é, assim, a única norma cuja conformidade constitucional há que apreciar.
Dito por outras palavras, atenta a instrumentalidade inerente ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, não tem o Tribunal que se pronunciar sobre a adequação constitucional da exigência de a suspensão não determinar grave lesão do interesse público - acolhida na alínea b) do nº 1 do artigo 76º - como tão pouco tem de se debruçar sobre a da alínea c), uma vez que o acórdão recorrido sobre elas não se chegou a pronunciar. Certamente que a eventual concessão da suspensão requerida obrigaria o Tribunal a apreciar cada um dos requisitos enunciados nas várias alíneas do nº 1 do artigo 76º só que, exigindo-se a congregação de todos eles, a não verificação de uma dispensa, naturalmente, a apreciação dos demais.
2.- O instituto da suspensão da eficácia dos actos administrativos não tem sido encarado convergentemente na jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Com efeito, pode entender-se não ser o mesmo imposto ao legislador ordinário como garantia constitucional decorrente do direito fundamental à tutela jurisdicional - como o ilustra o acórdão nº
187/88, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Setembro de 1988 - ou, sequer, como 'faculdade conatural à garantia de recurso contencioso' ou como pressuposto necessário dela - caso do acórdão nº 173/91, publicado no mesmo jornal oficial, II Série, de 6 de Setembro de 1991 - ou, então, defender-se que o direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos ou interesses legalmente protegidos pressupõe a faculdade de obter a suspensão da eficácia dos actos administrativos - e, nesta linha, citem-se, inter alia, os acórdãos nºs. 450/91, 43/92 e 366/92, publicados no citado Diário, II Série, de
3 de Maio de 1993, o primeiro, e 23 de Fevereiro de 1993 os dois últimos.
Se, neste específico domínio, subsistem divergências opiniativas, o certo é que tem logrado consenso não se vislumbrar como, e em que medida, o mecanismo da suspensão de eficácia afecta aquele direito de acesso uma vez que, como se consignou no citado acórdão nº 450/91, 'a fixação de um determinado condicionalismo fáctico, como necessário para pedir a suspensão da eficácia, nem derroga a tutela judicial efectiva, a exercer-se mediante recurso contencioso de anulação [...]nem implica tarefa que não seja a do legislador ordinário'.
De acordo com o acórdão nº 43/92, confirmado pelo acórdão nº 366/92, citados, a exclusão do poder de suspensão, enquanto elemento co-natural de um sistema de tutela jurisdicional, ou a limitação de área do seu exercício a determinadas categorias de actos ou a certo tipo de vícios, contrasta com o princípio da igualdade sempre que não ocorra uma justificação racional de diversidade de tratamento.
Ora. se o legislador ordinário, com a LPTA, deixou incólume a executoriedade do acto em si e se voltou para a eficácia deste por
- eventualmente - considerar, desse modo, mais adequadamente respeitados os direitos dos cidadãos no seu conteúdo essencial, nomeadamente os dotados de dignidade constitucional, não se colhe censura num regime balanceado entre dois termos de um binómio, em que um deles representa os interesses do requerente e o outro o interesse público, promovendo uma ponderação judicial entre ambos.
Nesta perspectiva, como descortinar vício de inconstitucionalidade ao exigir-se ao requerente da medida de suspensão a demonstração - indiciária - de 'provável prejuízo de difícil reparação?' Não poderá a 'plena exequibilidade e operatividade' da garantia de tutela jurisdicional adequada suportar uma disciplina mínima que estabeleça um determinado condicionalismo fáctico, necessário para fundamentar o pedido de suspensão, sem significar derrogação ou diminuição dessa mesma garantia?
Entende-se, na linha do citado acórdão nº 450/91, por exemplo, que, sendo a suspensão de eficácia uma medida cautelar posta ao serviço do administrado para que, provisoriamente, obste à imediata execução do acto administrativo que o afecte, se esta lhe provocar prejuízo de difícil reparabilidade - o que há-de engraçar-se com a inexistência, por sua via, de grave lesão do interesse público - possa, da consideração dos requisitos estabelecidos para avaliação e ponderação dos interesses em jogo, retirar-se estar afectado o direito à tutela jurisdicional efectiva prevista nos artigos
20º e 268º, nºs. 4 e 5, da Constituição. Ou, então, que se trate de restrição desproporcionada e desnecessária desse direito, com desrespeito do disposto no artigo 18º, nºs. 2 e 3 da Lei Fundamental.
Transcreve-se, a propósito, uma passagem do acórdão nº 631/94, publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Janeiro de 1995:
'A discricionariedade legislativa quanto à enunciação de tais requisitos revela-se conforme os parâmetros constitucionais do acesso à justiça administrativa, não se descortinando uma restrição à garantia do recurso contencioso, pois o interessado não fica impedido, de modo injustificado, de obter protecção para os seus direitos e interesses legalmente protegidos. Como se lê no Acórdão nº 303/94, publicado no Diário da República, 2ª série, nº 198, de 27 de Agosto de 1994, 'sempre será lícito ao legislador conformar, concretizar e modelar o dito instituto, sob pena de, na ausência dessa conformação e modelação, se poder cair num sistema em que a mera interposição de recurso contencioso desencadearia a não executoriedade do acto impugnado, com toda a corte de perigos de paralisação da actividade administrativa a bel-prazer dos administrados e, o que é mais importante, sem que se dilucidassem os casuísmo aconselhadores ou desenconselhadores da suspensão, presente o binómio, tantas vezes contraditório, dos interesses públicos e de garantia dos interesses particulares'.
Não se altera o entendimento que tem vindo a ser adoptado: a exigência da demonstração, pelo requerente da medida, que da execução do acto decorra provavelmente prejuízo de difícil reparação para si ou para os interesses que defenda ou venha a defender no processo, não se configura constitucionalmente censurável, num contexto de ponderação não só do seu próprio interesse como do prosseguido pela Administração, ao pretender executar o acto, sendo certo, para mais, que se trata de uma medida de natureza cautelar, não definitiva enquanto tal.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso confirmando-se o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 7 de Fevereiro de 1996
Ass) Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Dinis Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa